NOTÍCIA
Com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular, esperava-se que os cursos de formação de professores adotassem o novo conteúdo. Na prática, porém, isso ainda não ocorreu
Publicado em 15/08/2018
O impacto que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) terá sobre a formação inicial de professores ainda é incerto. O documento para a educação infantil e ensino fundamental, aprovado no final do ano passado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), foi alvo de polêmicas durante o processo de elaboração. A parte do ensino médio, que ainda não foi aprovada, enfrenta ainda mais resistências por ter como ponto de partida uma reforma feita por Medida Provisória, com alterações radicais na estrutura da etapa de ensino.
A discórdia é tão grande que levou César Callegari, então presidente da comissão de elaboração da BNCC, a deixar o cargo em julho deste ano. Portanto, não chega a causar surpresa que a incorporação desse novo marco legal aos cursos de pedagogia e licenciaturas seja também um palco de disputas.
Para alguns, a BNCC deveria mudar o perfil do novo docente. Para outros, a mudança ficará circunscrita a incluir mais um documento nos estudos de legislação educacional. O ponto com que todos parecem concordar é que os futuros professores devem ser encorajados durante sua formação inicial a ler a Base de maneira crítica, em vez de ter nela um manual a ser seguido passo a passo.
Callegari, que deve se manter no CNE como relator da comissão de Formação de Professores, defende que a BNCC tenha um impacto imediato nas licenciaturas e cursos de pedagogia, mas acredita que ainda não é a hora de promover mudanças nos cursos. “A partir da Base vai derivar uma revisão das diretrizes curriculares. Mas este será um trabalho longo, cuidadoso, que está apenas começando no CNE”, afirmou à reportagem antes de deixar o cargo.
Não é o momento de alterações estruturais até porque houve uma mudança nas Diretrizes Curriculares para os cursos de formação de professores aprovada pelo CNE em 2015, com o prazo de três anos para total implementação. Grande parte das instituições, portanto, acabaram de se adequar a uma maior carga horária e maior exigência de atividades práticas.
Em que pese que uma nova mudança nas diretrizes curriculares ainda leve um tempo, muitas coisas já podem começar a acontecer dentro dos cursos, argumenta Callegari. “A Base para a educação infantil e fundamental já está em vigor, portanto nenhum curso pode ignorá-la. As mudanças devem começar considerando os direitos de aprendizagem previstos. Recomendo que os responsáveis pela formação de professores façam adequações e desenvolvam conhecimentos sobre a Base, para que os próximos professores a serem formados dominem o documento”, diz.
Mais do que esperar a boa vontade das instituições de ensino, segundo Callegari, o MEC deve usar o grande poder de avaliação que tem nas mãos e incluir conhecimentos sobre a BNCC já na próxima edição do Enade para pedagogia e licenciaturas.
Embora seja “matéria obrigatória de estudo”, o próprio Callegari ressalta que a preparação do professor deve ser crítica. “A Base não versa sobre a metodologia, tecnologias empregadas, formas de avaliação. Tampouco está colocando um arcabouço teórico. A intenção é que os estudantes sejam capazes de estabelecer uma visão crítica e criativa sobre o documento”, afirma.
No Instituto Singularidades, na capital paulista, a Base tem sido tema de aulas, discussões, palestras com convidados externos e inúmeras atividades. Mesmo a parte do ensino médio está sendo debatida pelos graduandos. “Estamos muito envolvidos em todas as discussões. E tenho visto muitos outros grupos também preocupados, se movimentando, participando de seminários”, afirma Miguel Thompson, presidente da faculdade.
Para ele, a adoção da Base como documento norteador da educação implica uma mudança do perfil do professor, que precisa se deslocar da posição de trabalhar com conceitos para desenvolver habilidades. “O documento é muito focado em competências e habilidades, em substituição à ideia mais linear de conceitos. O professor deve passar a trabalhar mais com a resolução de problemas. Para isso, além de ser especialista em certa área, terá de abordar outras questões também”, explica Thompson sobre o que considera a mudança mais profunda vinda com a Base.
O documento, reconhece o presidente do Singularidades, não é perfeito. E por isso mesmo precisa ser levado às salas de aula para ser aperfeiçoado. “Como todas as reformas educacionais recentes ao redor do mundo, é interessante que a Base já se proponha a uma revisão. Não é o documento que a gente gostaria, mas precisa da participação dos professores e das redes para melhorar”, diz.
Uma de suas críticas é que a visão da educação integral defendida como princípio acaba não se concretizando no corpo da própria Base. “Os componentes curriculares até incorporaram um pouco a questão das competências, mas não aderiram à interdisciplinaridade. A necessidade de formação integral significa tratar os assuntos de forma integrada. Por exemplo, a energia tem de ser vista nas ciências de forma a unificar o ponto de vista da química, física e biologia”, cita.
Fernanda Simon, coordenadora da Licenciatura em Ciências da Natureza da Faculdade Sesi-SP de Educação, acredita que a necessidade de abordar os conhecimentos por áreas em vez de disciplinas deverá transformar grande parte das licenciaturas nos próximos anos, para adequar a visão global e metodologias que permitam essa abordagem. “Pensar em área de conhecimento significa lidar com as temáticas de forma integrada sem delimitar fronteiras”, afirma.
Para os cursos do Sesi, contudo, esse aspecto trazido pela BNCC já foi atendido, pois a formação é por áreas. “A instituição é pioneira por estruturar os seus cursos de licenciaturas — Linguagens, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Matemática — com metodologias diversificadas de modo que o futuro professor trabalhe os conteúdos de cada área do conhecimento de forma articulada e integrada. A proposta da instituição desde a sua criação atende ao que foi aprovado pela BNCC.”
A professora Cláudia Coelho Hardagh, da Faculdade de Educação do Mackenzie, concorda que a Base deve entrar na pauta das aulas das disciplinas voltada à legislação educacional e a currículos, mas sem implicações maiores para o curso ou o perfil do docente. “Não vejo mudanças grandes, nada que vá transformar as graduações”, garante.
E, ao ser abordada em sala de aula, deve-se sempre enfatizar o olhar crítico. “O assunto tem de ser pensado pelos estudantes, até para se discutir o retrocesso da Base. Infelizmente, em vez dos avanços que esperávamos — a transformação trazida pelas tecnologias digitais por exemplo —, tivemos retrocessos nas discussões sobre gênero, ensino religioso e orientação sexual”, afirma.
Em suas aulas, a professora conta que apresenta o documento oficial e logo dá uma contraposição, com documentos feitos pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). “Seria ótimo que todos fizessem uma análise crítica, porque o professor precisa saber se posicionar. Mas isso depende da concepção teórica e ideológica da instituição de ensino superior”, pondera.
Claudia ressalta ainda que, por ser uma base, não é para ser seguida ao pé da letra, como um manual. “É importante a escola ou o professor não ver o documento como um tutorial. Mas será que a escola vai interpretar dessa forma?”.
A diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP, professora Madalena Peixoto, é ainda mais radical e diz que a BNCC tem um impacto nulo sobre os cursos da instituição.
“Não vai mudar em nada. Claro que, se existe uma Base, ela vai ter de ser abordada em algum momento do curso. Mas formar um professor vai muito além do que entregar a ele um certo conteúdo para ele passar para os alunos. Ao menos na PUC, a gente forma um professor crítico, que saiba usar sua autonomia”, afirma.
Assim como Claudia, Madalena vê o teor do documento como um retrocesso. “A gente lutou para ter uma base, mas, entre a versão inicial e esta que está aí, mudou completamente o conteúdo. No século 21, só no Brasil aparece que é obrigatório o ensino religioso, com conteúdo de gênero”, critica.
Por mais que não possa ignorar a BNCC, ela diz que o professor tem poder de transformá-la, uma autonomia garantida pela LDB. “O professor deve ser preparado para pegar a Base e transformá-la em algo que tenha a ver com sua realidade. Professor não é alguém para passar conteúdos. Se fosse assim, era muito mais fácil, era só dar uma apostila na mão de cada um.”
Segundo a diretora da PUC, um professor precisa saber defender sua posição teórica e construir sua didática. “Não queremos um professor robô. O debate da Base está simplificando a questão da formação docente”, afirma.
Além da simplificação, a professora do Mackenzie vê na discussão uma responsabilização excessiva do professor. Implicitamente, a mensagem que fica é que a Base vai melhorar a educação. Um eventual fracasso dessa meta seria responsabilidade do docente.
“Há um movimento político de colocar toda a responsabilidade pela educação nas costas dos professores. Mas todos precisam mudar: a escola, o projeto político-pedagógico, as estruturas que dão a base ao professor”, afirma Claudia. Segundo ela, na era tecnológica e do conhecimento atual, a formação docente precisaria enfatizar outros pontos, como a necessidade de trabalhar com outras linguagens.
Mas não é só responsabilização; o Brasil vive um momento de visibilidade do professor, defende Thompson, do Singularidades. “A nação está descobrindo o professor. Já passamos pela fase das avaliações, dos livros didáticos. Agora o país discute a formação docente”, afirma. Mas é preciso olhar para além da formação inicial, assim como para a adequação dos livros didáticos, lembra ele. “A Base não é currículo. O currículo tem de ser feito nos estados, que vão ter de contextualizá-lo para suas realidades locais e formar os professores – não só os novos, mas os que estão em serviço.”