NOTÍCIA
Ainda que a formação de profissionais capazes de liderar projetos seja altamente relevante, as instituições não podem descuidar da diversidade de perfis. Há muitas outras competências para serem desenvolvidas
Publicado em 20/10/2018
De todas as competências socioemocionais trabalhadas no ensino superior, a liderança é certamente a mais incensada. Muitos cursos de graduação e pós dedicam horas ao seu desenvolvimento, pois seus coordenadores acreditam que, ao despertar o espírito de liderança em seus alunos, estarão desenvolvendo também a capacidade de resolver problemas, de se comunicar, de trabalhar em equipe, entre tantas outras características valorizadas pelo mercado.
Porém, enquanto alguns são líderes natos, outros só conseguem desenvolver parcialmente tal capacidade. Há ainda aqueles que não desejam ou mesmo não têm o perfil de um líder, dentre as muitas nuances nessa zona cinzenta que envolve a personalidade e os anseios humanos.
“Esse papo que todo mundo pode ser líder é uma falácia. E excesso de líderes não funciona. Tribo com dois caciques não existe”, indica Victor de La Paz, supervisor do laboratório de recursos humanos da ESPM. Fato posto, estariam as IES falhando ao se dedicarem com tanto afinco à formação de líderes? A resposta é sim e não.
Sim, se elas pretenderem ensinar apenas um tipo de liderança para diferentes perfis. E não, quando ensinam o autoconhecimento e valorizam os pontos fortes de cada indivíduo, num ensino mais integral e inteligente.
A emergência desse tema nas faculdades brasileiras é recente. De acordo com Luiz Felippe Mata Ramos, pesquisador e professor do Centro Universitário Senac, a importância das habilidades socioemocionais e, mais especificamente, da capacidade de liderança surgiu no mercado de trabalho e, como sempre acontece, extravasou para a formação profissional e acadêmica.
“Não é algo casual; é decorrente de um processo histórico da pós-modernidade, que passou a ser enxergada e discutida do final dos anos 1980 e durante a década de 1990”, diz Ramos.
Em 1995, a publicação do livro Inteligência emocional, de Daniel Goleman (Ed. Objetiva), popularizou definitivamente as habilidades socioemocionais, complementa Paulo Vieira de Campos, professor de liderança corporativa da ESPM. Também no mesmo período, tivemos o surgimento de um mercado de trabalho global, mais dinâmico e altamente especializado — algo que primeiro foi notado nos Estados Unidos e Europa.
Esse novo contexto criou um lapso entre a formação e o emprego. “Era uma geração de pessoas carentes de experiências profissionais e sem nenhum contato com práticas corporativas”, prossegue o pesquisador Ramos.
Para suprir essa carência profissional, surgiram os MBAs. E com os MBAs, técnicas e processos utilizados em corporações multinacionais entraram definitivamente nas salas de aula, como a ênfase na liderança.
Processo seletivo do Insper: avaliadores medem competências socioemocionais já no processo seletivo (foto:divulgação)
Hoje, a relevância que se dá às características socioemocionais e à personalidade dos alunos é tão grande que algumas faculdades — como a FGV, o Insper e a Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, por exemplo — já utilizam avaliações presenciais, entrevistas e dinâmicas de grupo para escolher seus futuros alunos.
Similares aos processos de seleção utilizados por grandes empresas, essa forma de triagem pode ser muito útil para garimpar determinados perfis, mas não são perfeitas. Como todos os processos coordenados por humanos, estão sujeitos a falhas, geralmente provocadas pela ampla margem de subjetividade envolvida na tarefa.
Para Marcelo Haegenbeek, CEO da Apponte, empresa de gestão de RH, com esse modelo de seleção, há o risco de tanto as IES como as empresas contratarem pessoas com perfis muito parecidos. “Isso muitas vezes ocorre e afeta a diversidade de personalidades e de forma de pensamento”, avalia.
Os prejuízos da falta de diversidade tendem a aparecer no médio e longo prazo, comprometendo metas e o próprio desempenho de uma sala de aula ou de uma companhia. “Empresas precisam buscar a complementaridade, sempre. A diversidade propicia a inovação no ambiente organizacional. Equipes bem estruturadas têm pessoas com diferentes habilidades e competências; e um bom gestor para direcionar os trabalhos e dirimir os conflitos”, opina Marco Antônio Lovizzaro, professor de Liderança e Gestão de Pessoas da Fiap.
“Nossas escolas e instituições são pensadas para pessoas extrovertidas. Temos também um sistema de crença, que eu chamo de ‘novo pensamento de grupo’, de que toda a criatividade e produtividade vêm de um lugar muito sociável e comunitário”, escreve a autora americana Susan Cain em seu livro O poder dos quietos (Ed. Agir).
De acordo com a pesquisadora, as sociedades ocidentais sempre favoreceram o homem de ação em detrimento do homem de reflexão e contemplação.
Analisando o desenvolvimento da sociedade ao longo do século 20 e mais acentuadamente agora, no 21, com o culto às personalidades, celebridades e a influência da cultura “corporativa descolada” do Vale do Silício, é perfeitamente compreensível que magnetismo pessoal, carisma e capacidade de influenciar os outros tenham se tornado muito importantes. Sendo assim, não espanta constatar que os youtubers são os atuais ídolos da juventude.
Há atualmente um sistema que privilegia a formação de grupos e o trabalho em equipe, algo muito importante, sem dúvida, mas que pode prejudicar pessoas brilhantes e mais introspectivas.
A psicologia contemporânea já comprovou que as pessoas não conseguem ficar num grupo sem imitar opiniões e comportamentos dos demais, muitas vezes sem mesmo notarem isso. Geralmente, uma ou mais personalidades extrovertidas dominam o ambiente e influenciam os demais, que podem estar seguindo uma ótima ideia, ou não.
Se um jovem decide se afastar e fazer o trabalho sozinho, é geralmente visto como estranho, ou pior, problemático. E a maioria dos professores acredita que o estudante ideal é o extrovertido, mesmo quando introvertidos têm melhores notas e são mais cultos, de acordo com pesquisas.
Pessoas mais reservadas são normalmente rechaçadas de posições de liderança, mesmo que introvertidos sejam muito cautelosos, menos passíveis de cometer erros. Uma pesquisa coordenada por Adam Grant, professor de gestão e psicologia da Wharton School (considerada a escola com o melhor MBA de Administração dos EUA), na Filadélfia, descobriu que líderes introvertidos apresentam melhores resultados que os extrovertidos.
Os introvertidos são melhores ouvintes e deixam seus subordinados mais à vontade, enquanto os extrovertidos têm a característica de ficar tão excitados a ponto de atropelar as ideias de seus subordinados.
Para evitar que problemas assim aconteçam, os especialistas não propõem o fim dos trabalhos em grupo, mas indicam que, paralelamente, é preciso incentivar os “voos solitários”, momentos e atividades que favoreçam a privacidade e a autonomia.
Em tarefas que precisam ser necessariamente feitas em equipe, o ideal é cada integrante gerar suas próprias ideias e depois discutir com os demais, evitando assim a predominância de um falso líder.
É preciso sempre ter em vista que existem maneiras diferentes de liderar, avalia a psicanalista Roberta D’Albuquerque. “Há espaço para pensar as pessoas a partir de suas singularidades, o que as torna quem são e como isso pode contribuir para o grupo social”, completa.
Sofia Esteves, presidente do Conselho da Cia. de Talentos, empresa de consultoria em gestão de pessoas e RH, afirma que a extroversão não é uma característica determinante num líder. “Autoconhecimento e equilíbrio para fazer as escolhas certas são muito mais impactantes”, pensa.
“Ninguém nasce para liderar, não há prova científica disso. Há pessoas com mais capacidade de comunicação, mais expansivas, mais carismáticas, mas isso não necessariamente as torna líderes”, explica Lovizzaro, da Fiap.
Liderar, basicamente, é ter a capacidade de influenciar o comportamento de outras pessoas e isso pode ser treinado e aprimorado. Saber conviver socialmente é uma necessidade de qualquer indivíduo. Ninguém consegue fazer muita coisa sozinho; profissionalmente, muito menos.
Portanto, resta aos tímidos e introspectivos serem incentivados a desenvolver suas próprias formas de exercer a liderança – se assim desejarem.
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