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Educadores brasileiros: Maria Nilde Mascellani, Lauro de Oliveira Lima e a liberdade do pensar

Mesmo desvalorizados na educação brasileira, as propostas de Lauro e Maria Nilde continuam vivas e em diálogo com os tempos atuais. Nesta reportagem, família, pesquisadores e ex-alunos compartilham os métodos desses grandes educadores

Publicado em 30/12/2022

por Revista Educação

maria nilde e lauro

Desenvolver a humanidade nas pessoas – esse foi o sonho de dois grandes expoentes da educação brasileira: Lauro de Oliveira Lima e Maria Nilde Mascellani. Viveram com imensa paixão e coerência, imunes às circunstâncias sociais ou políticas, colhendo dissabores e plantando amores. Ele nasceu em Limoeiro do Norte, Ceará, em 1921. Ela em 1931, no bairro do Brás, na capital paulista. Não ficaram conhecidos e estão ausentes nas formações para docentes, talvez porque ousaram enfrentar um sistema contrário à humanidade que pulsa no coração homo sapiens. Foram perseguidos e humilhados durante a ditadura militar imposta em 1964. Mas, do sofrimento, as sementes de uma educação libertária foram lançadas. Décadas depois, é possível recorrer aos ensinamentos de Lauro e Maria Nilde. Não por meio de vagas teorias, mas por testemunhos de vivências concretas, por métodos registrados em livros, teses acadêmicas, relatos, fotos e filmes.

O ensino vocacional de Maria Nilde

Entre 1961 e 1969, Maria Nilde coordenou seis Ginásios Vocacionais (GVs) em escolas públicas do estado de São Paulo – em Americana, Batatais, Barretos, Rio Claro, São Caetano do Sul e São Paulo. Em 1969, todas foram invadidas, simultaneamente, pelo Exército. No céu, helicópteros verdes intimidavam enquanto professores eram trancados em salas, materiais confiscados e queimados. Por que tanto alvoroço? Porque os jovens dos GVs aprendiam a pensar por si mesmos, a buscar a verdade dos fatos em diferentes fontes e a tirar suas próprias conclusões, a fazer conexões, a interpretar e considerar diferentes contextos, a compreender fenômenos pela experimentação. Para alguns, os GVs educavam jovens para serem agentes transformadores – homens e mulheres livres, donos de seus destinos. Para outros, formavam subversivos. 

“Pelos seis GVs, passaram cerca de 10 mil jovens”, afirma Luiz Carlos Marques (Luigy Marks), hoje responsável pela Memória da Associação de Ex-Alunos e Amigos do Vocacional (GVive), fundada em 2005.

Os depoimentos emocionam e trazem indagações: ‘como pôde acabar?’. Considerando os tempos de repressão, melhor perguntar: ‘como ela conseguiu implantar?’. Com a coragem de sua personalidade inquieta e criativa. No final dos anos 1940, a jovem Maria Nilde ainda cursava a Escola Normal Padre Anchieta, na capital paulista, e era conhecida por gostar de chegar o mais perto possível do objeto do conhecimento. Deu aulas para crianças no quintal da casa dos pais, no Brás. Observou que aprenderiam melhor se usasse elementos do cortiço onde moravam. Com as mães, discutia uma pauta all inclusive: higiene pessoal das crianças, em que momento faziam as lições de casa, de que brincavam…

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Em 1957, graduada em pedagogia pela USP, ela vai trabalhar em Socorro, em uma das 50 escolas do país onde havia as Classes Experimentais, criadas pelo Ministério da Educação entre 1959 e 1962, que seriam o embrião dos Ginásios Vocacionais. O personalismo de Emmanuel Mounier (1905-1950), a Escola de Sèvres, na França, e Escola Compreensiva Inglesa ajudaram nessa formatação. Maria Nilde foi convidada para coordenar os GVs, como projeto piloto de ensino renovado no estado de São Paulo.

Maria Nilde em sua formatura
Fotos: arquivo GVive

Daniel Chiozzini é professor doutor da PUC-SP e filho de ex-professores dos GVs. Movido pela memória afetiva dos pais, abraçou o tema e fez dele sua tese de doutorado. Ele conta que um dos pilares dos GVs era a formação e regime de trabalho dos professores. Todos faziam um curso preparatório de seis meses e só eram contratados após avaliação. A jornada semanal de 40 horas tinha mais da metade do tempo destinado às reuniões semanais de planejamento, preparo de aulas e aplicação das técnicas pedagógicas. Muito do que hoje se considera metodologia inovadora já era praticado nos GVs, tais como interdisciplinaridade, período integral, estudo de meio, avaliação ao longo dos anos letivos, formação contínua do professor, trabalho em equipe, vínculo entre escola e comunidade, etc.

O planejamento começava com um diagnóstico político, econômico e cultural de cada cidade e culminava com a definição de temas centrais a serem integrados em todas as disciplinas: artes industriais, práticas comerciais, práticas agrícolas e educação doméstica – para meninos e meninas. Os conteúdos eram praticados na horta, na cantina, no banco escolar e no governo estudantil, administrados por alunos e professores.

Em meio às densas nuvens da ditadura, ela foi chantageada para declarar uma mentira sobre uma de suas professoras. O chantagista disse: “se a senhora não falar, sua cabeça vai rolar”. Ela responde: “então, a cabeça vai rolar”. Foi demitida, presa e torturada psicologicamente, pois tinha um laudo médico que atestava artrite severa, desde a infância. Manteve-se firme e sã, trabalhando com educação até o fim, quando seu coração descansou aos 68 anos, em 1999.

Alunos dos Ginásios Vocacionais em atividade. À esq. praticam banco vocacional e na foto à dir. estudo de meio
Fotos: arquivo GVive

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A inteligência afetiva de Lauro de Oliveira Lima 

Foi na criação de várias escolas que Lauro praticou as ideias organizadas no seu Método Psicogenético. Seus 32 livros são uma herança preciosa, mas foi no dia a dia que o carisma de sua presença mais brilhou. Antes de ter notícia da Teoria Cognitiva de Jean Piaget, Lauro já estava em sintonia com suas descobertas, na rotina do Colégio Agapito dos Santos, que fundou em Fortaleza, em 1952, quando descobriu a paixão pela capacitação de professores. Começa a defender uma ideia que virou seu bordão:

“professor não ensina, ajuda o aluno a aprender”. 

Lauro soube das pesquisas de Jean Piaget porque assinava todos os jornais franceses. Encantou-se pela teoria do conhecimento como construção indivi­dual via experiência direta, e direcionou suas pesquisas para o universo da didática ativa e operatória. Mandou carta para Piaget contando que aplicava os ensaios piagetianos em sala de aula. Piaget respondeu com reconhecimento e congratulações. Anos depois, aceitaria o convite de Lauro para vir ao Brasil e deu-lhe autorização para o uso de seu nome no Centro Experimental e Educacional Jean Piaget, fundado em 1972, quando vai com a família para o Rio de Janeiro e abre a escola A Chave do Tamanho. 

Antes de ir ao Rio, Lauro, sua esposa Elisabeth e os sete filhos viveram alguns anos em Brasília, onde trabalhou com Anísio Teixeira, que soube dele por meio do livro Escola Secundária Moderna. Envolveu-se com as Escolas Parques e foi um período produtivo, até que chega o golpe de 1964. Sem qualquer vínculo com a esquerda, mas conhecido por criticar o sistema educacional, Lauro foi perseguido por militares. Perdeu o emprego e Elisabeth assumiu o papel de provedora. Não quis sair do Brasil, mas isolou-se em casa. Desse retiro nasce Dinâmica de Grupo, livro que gerou palestras em empresas por todo o país.

Em 1994, funda o Colégio Oliveira Lima, em Fortaleza. “Trabalhei 16 anos no Colégio Oliveira Lima, como coordenadora pedagógica. Hoje dou assessoria para a Escola Nova, em Fortaleza, onde três de meus filhos trabalham, continuando o legado de meu pai e refazendo o material pedagógico”, diz Adriana Oliveira Lima, filha de Lauro. Ela descreve seu pai como um homem poderoso, forte, potente na oratória, do tipo encantador mesmo. “As pessoas saíam de suas palestras encantadas pelo jeito peculiar que ele tinha de filosofar sem ser filósofo. Lembro dele sempre cercado de livros. Era um apaixonado por educação e fazia a gente se apaixonar.”

Lauro de Oliveira Lima
Adriana Oliveira Lima, filha do aclamado cearense, revela momentos em família durante a produção das obras do pai
Foto: arquivo pessoal

“Sinto-me um cavalo selvagem preso na cocheira” (Lauro de Oliveira Lima)

A produção de Dinâmica de Grupo revela bem a união da família. “As páginas eram datilografadas e empilhadas em várias cadeiras. Cada filho grampeava e fazia uma linha de montagem”, conta Adriana. Segundo ela, três obras marcam momentos diferenciados. A primeira é Escola Secundária Moderna – no capítulo 22 há um grande resumo do Método Psicogenético; a segunda é Dinâmica de Grupo na Empresa, no Lar e na Escola, que traz as práticas de socialização; e Mecanismos de Liberdade, sobre como a liberdade se dá. 

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O Método Psicogenético

Como ele dizia, “o fundamental é fazer com que a inteligência chegue em sua plenitude”. Por isso seu método concilia os vários níveis de desenvolvimento da inteligência com ações que favoreçam a evolução contínua da inteligência. Os três pilares são: situação-problema – desafio que, aos poucos, ganha complexidade; dinâmica de grupo – interação em todas as situações; tomada de consciência – o alcance do conhecimento depende da consciência.

Lauro de Oliveira Lima
Entre os bordões de Lauro: “professor não ensina, ajuda o aluno a aprender”
Foto: arquivo familiar /Adriana Oliveira Lima

Foi professor de latim, português, francês, alemão, filosofia, criador da Dinâmica de Grupo, atuou como jornalista, bacharel em direito, contador e ativista apartidário pela educação que emancipa seres humanos. Ele dizia: “é preciso logicizar o amor e amorizar a lógica”. Intenso, sem meias palavras. Assim viveu Lauro de Oliveira Lima.

Os GVs de Maria Nilde e as obras de Lauro podem reacender a vocação de educadores desmotivados. São referências para promover boa educação nas escolas – públicas ou não, mas comprometidas com a liberdade do pensar. Se ainda não existe apoio nas esferas de governo para isso acontecer, façamos acontecer. O primeiro passo é reanimar o vocacional no próprio coração. É a partir desse espaço que toda transformação é possível. 

Depoimentos sobre Lauro de Oliveira Lima

“O prof. Lauro é o mentor pedagógico da minha vida de professor. Devo ao seu paradigma a capacidade de reforçar o protagonismo da educação física na escola, continuar o trabalho na Escola do Futuro da USP e criar o Centro Esportivo Vir­tual (http://cev.org.br), produto da primeira tese da Unicamp transmitida pela internet, há 26 anos no ar como ONG.”

(Laércio Elias Pereira, doutor em educação física e criador do CEV)

“Estudava psicologia e a escola A Chave do Tamanho era atrás da PUC. Precisei fazer umas fotos de escola e me encantei com as crianças se divertindo com atividades pedagógicas na hora do recreio. Era a escola em que eu gostaria de ter estudado. Logo estaria trabalhando lá, como supervisor pedagógico. Foram três anos inesquecíveis de convívio com Lauro – uma pessoa interessada no outro, no bem-estar social, sensível, humanista. Seu método não ensina, mas cria condições para que o aprendizado se dê. Passei a perceber o ser humano como uma unidade, sem separar o cognitivo da afetividade.”

(Irineu E. Jones Corrêa, doutor e mestre em letras pela UFRJ, psicólogo pela PUC-Rio, e pesquisador sênior da Fundação Biblioteca Nacional-FBN)

Depoimentos de ex-alunos dos GVs

“Fui feito pra essa escola e ela pra mim. Éramos trabalhados para despertar nosso potencial, com atividades em equipe, sem precisar competir ou derrubar o outro. Uma vez por mês a escola se reunia para lidar com os projetos. Cada aluno procurava se aproximar de seus interesses e vocação. Creio que o forte da professora Maria Nilde era a generosidade. Ela permitia e esperava que cada professor desse tudo de si e entrasse de cabeça. E esperava o mesmo dos alunos.”

(Luiz Carlos Marques/Luigy Marks, atuou por mais de 25 anos  em educação, é responsável pela Memória da GVive)

Lauro de Oliveira Lima
Luigy Marks é responsável pela Memória da Associação de Ex-Alunos e Amigos do Vocacional (GVive)
Foto: arquivo pessoal

“Os anos no GEVOA (Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha – São Paulo) ajudaram a moldar minha personalidade, meu caráter, minha forma de pensar e agir. Se sou contestador, é porque lá aprendi a perguntar o porquê das coisas; se sou solucionador de problemas, é porque lá aprendi a analisar situações, buscar respostas em várias fontes e tirar conclusões; se sou democrático, é porque lá aprendi que há o tempo de falar e o de ouvir, o de liderar e o de ser liderado.”

(Paulo Ricardo Simon, ex-aluno, engenheiro e atual presidente da GVive)

Autor

Revista Educação


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