NOTÍCIA
Idade média dos professores está aumentando à medida que as novas gerações se desencantam com a carreira de professor
Publicado em 06/02/2023
De tempos em tempos, o alerta ressurge: o Brasil está à beira do colapso quando o assunto é o número de docentes aptos a lecionar na educação básica. O medo do fenômeno batizado como apagão docente – a falta de professores – estampou manchetes de jornal às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais do ano passado. Realizado pelo Instituto Semesp, órgão ligado às mantenedoras do ensino superior privado paulista, um novo estudo projeta o possível déficit de 235 mil professores no ano de 2040 caso nada seja feito para reverter o quadro atual.
Esse número equivale a 20% dos atuais 2,2 milhões de docentes da educação básica brasileira. A queda projetada se deve a motivos diversos: diminuição da procura dos jovens pelos cursos de licenciatura; alto índice de desistência da profissão nos primeiros anos de carreira; iminente aposentadoria de muitos educadores em atividade e baixa atratividade da docência, fruto do pouco reconhecimento social e da remuneração insuficiente. Fenômenos estes que não comportam solução isolada, exigindo ações articuladas.
“Estamos vivendo um apagão do magistério já faz muitos anos, associado à precarização da formação. É algo para ser enfrentado com absoluta prioridade, pois a qualidade depende de termos bons profissionais”, avalia Cesar Callegari, ex-secretário de Educação Básica do MEC e ex-secretário de Educação do município de São Paulo.
Falar do possível apagão docente ou de sua existência já consumada e suas causas parece sempre notícia requentada. Mas, a cada vez que se acende o fogo, o fundo está mais seco. Ou seja, a situação está pior. Em 2007, um estudo feito por membros do Conselho Nacional de Educação (CNE), assinado por Mozart Neves Ramos, Murílio Hingel e Ibañez Ruiz (Escassez de professores no ensino médio: propostas estruturais e emergenciais) alertava para a urgência de incremento da formação para a etapa. Quatro anos antes, em 2003, apenas 30% da população adulta brasileira (de 25 anos em diante) tinha o diploma do médio, contra 42% dos argentinos e 49% dos chilenos, para ficar apenas nos países da região. Por isso, era preciso formar docentes para a etapa.
Na época, o governo federal estimulou as licenciaturas e a formação adequada de docentes (em especial pela Universidade Aberta do Brasil, via EAD) que lecionavam em áreas distintas daquelas para as quais estavam habilitados e, em alguns casos, ainda sem curso superior. O aumento da oferta de professores, ao lado de outras medidas, fez com que o percentual de formados no médio subisse quase 20 pontos percentuais. Em 2019, eles eram 48,8% dos brasileiros adultos, segundo o IBGE.
É por isso que Callegari defende a criação de “uma espécie de concertación”, uma coalisão que junte vários atores do campo educacional e da sociedade civil com o mesmo objetivo, como ocorreu, no campo político, nos pós-ditaduras da Espanha e do Chile, nas décadas de 1970 e 1980. Esse acordo visaria construir um modelo que ampliasse a formação docente em grande escala e melhorasse as escolas.
“É possível fazer uma carreira nacional, para formar algo como 300 mil professores nos próximos anos”, defende. Para isso, diz ele, a carreira precisaria começar já no ingresso do estudante na faculdade, com remuneração que possibilitasse dedicação exclusiva do aluno.
Haroldo Rocha, coordenador-geral do Movimento Profissão Docente, ex-secretário de Educação de Minas Gerais e do Espírito Santo, defende linha bastante similar. À frente de uma organização formada por sete institutos e fundações empresariais (Península, Natura, Todos pela Educação, Lemann, Itaú Social, Telefônica Vivo e Unibanco), o Profissão Docente prega a construção de uma visão mais sistêmica da formação, tendo em sua bússola a adesão do jovem do ensino médio à carreira de professor.
“Tentamos olhar todo o ciclo, do jovem até a aposentadoria. É preciso fazer com que o setor público saia de uma visão fracionada e realize um planejamento de pelo menos uma década, envolvendo os três níveis de governo, numa iniciativa federal com responsabilidade compartilhada com estados e municípios, um programa como o país nunca teve”, expõe Rocha, depositando no novo governo federal a expectativa de liderar a iniciativa.
O dirigente ressalta ainda um fato que preocupa um grande número de educadores e gestores: a presença da educação a distância na formação docente. “O trabalho do professor tem a ver com a prática no ambiente escolar, é de uma dimensão prática inequívoca”, acrescenta. Hoje, as licenciaturas via EAD já superaram as presenciais, se computadas as ofertas pública e privada.
Apesar de a educação ser sempre citada como prioritária para o país, esse discurso não tem equivalência no prestígio social dos professores, sobretudo na educação básica. Para o estadunidense Martin Carnoy, professor das áreas de economia e educação na Universidade Stanford, a sociedade não se dá conta do quão difícil é a carreira docente.
“Todo mundo pensa que qualquer um pode ensinar. É um trabalho mais difícil que muitos outros, as condições gerais são muito difíceis e os ingressantes são mal preparados, muitos deles formados via EAD.”
Na visão de Carnoy, a sociedade deve considerar efetivamente a docência como a mais importante das profissões, definidora dos rumos do país. Para isso, é preciso melhorar não só a formação inicial como a continuada, na qual há um investimento grande, mas muito fragmentário, com períodos formativos de apenas cinco dias (em geral), muitas vezes com temas que pouco dialogam com as dificuldades da relação de ensino e aprendizagem no dia a dia.
Outro ponto que o economista destaca é o ambiente escolar e as condições de trabalho. Os salários, diz ele, devem aumentar em certos casos para melhorar a atratividade, mas a obrigação da isonomia acaba sendo uma amarra. Áreas como matemática e ciências da natureza, mais desafiadoras para o ensino, deveriam ser mais bem remuneradas. No Brasil, porém, é uma ideia rechaçada de pronto pelos sindicatos docentes.
Com a experiência de ter dirigido a rede estadual de Minas Gerais durante quase toda a gestão de Romeu Zema (Novo), a cientista social Julia Sant´Anna lista quatro pontos que julga centrais para melhorar as condições e a atratividade da carreira. O primeiro deles é aquele que quase todos creem óbvio: o de que salário importa e os professores não são bem remunerados. Porém, em sua visão, falta um olhar mais regionalizado para estabelecer os salários, incluso aí o piso docente. “É preciso olhar para o poder de compra local e respeitar as diferenças entre municípios pequenos e grandes.”
O segundo ponto converge para o olhar dos outros entrevistados: a valorização e o reconhecimento da importância do professor. O desafio neste caso é fazer com que a elite, que define as políticas nacionais, mas não é usuária do sistema, conheça melhor a realidade da escola pública, em que estão cerca de 83% dos alunos da educação básica, e o trabalho do professor. “Precisamos trazer essa elite para saber o que faz esse sujeito, como sabe o que faz um médico, um engenheiro ou um policial.”
A definição clara do que ensinar e avaliar é o terceiro ponto. Por isso, Julia considera vital a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Com ela, fica mais fácil saber o que avaliar e ter um diagnóstico mais claro dos resultados escolares, tanto interna como externamente. Por último, o uso da tecnologia de gestão, para equalizar necessidades, seja da compra de insumos ou da alocação de horas/aula para professores, o que daria “transparência na carga horária e celeridade às contratações necessárias”.
Além de uma distribuição de aulas mais equânime, outro ponto consensual é a fixação do professor em uma só escola, o que dá a oportunidade não apenas de criar uma identidade maior com a instituição e sua cultura profissional, como também de elaborar projetos interdisciplinares. Dois fatores têm emperrado, ao longo de décadas, a decisão de fazer com que os professores tenham dedicação exclusiva: a insuficiência de professores e de verbas.
Haroldo Rocha lembra que o movimento que coordena fez um estudo sobre carreiras e remuneração nos estados: 23 deles contam, em algum nível, com educação integral, mas a esse avanço não correspondeu o aumento da dedicação exclusiva.
“Temos como objetivo que o professor esteja, num primeiro momento, em uma só rede e depois em apenas uma escola. Os alunos das classes C, D e E são os que mais demandam a escola integral. E, para isso, o professor precisa estar em uma escola só também”, diz.
Afinal, essa ginástica para lecionar em duas ou três instituições, ganhar pouco e estar num ambiente em que são pouco valorizados ou desrespeitados têm afastado os jovens da profissão.
A pesquisa do Semesp aponta de forma clara o envelhecimento dos docentes em atividade e a queda dos jovens ingressantes na profissão. Entre 2016 e 2021, todas as faixas etárias a partir de 40 anos (40 a 49; 50 a 54; 55 a 59; mais de 60 anos) tiveram crescimento expressivo em seu total de professores, enquanto nas três faixas mais próximas do início da carreira (até 24 anos; 25 a 29; 30 a 39), houve decréscimo em relação a seu total anterior (ver quadro).
Nas duas faixas com maior número de docentes, a tendência é inversa entre si. Enquanto entre aqueles de 30 a 39 anos houve decréscimo de 13,9% (de 769,3 mil para 662,4 mil entre 2016 e 2021), a faixa de 40 a 49 anos engordou 12,3%, de 671,9 mil para 754,7 mil no mesmo período. De 55 anos em diante o crescimento percentual é ainda maior. A conclusão é que muitos desses profissionais se mantêm na ativa à espera da aposentadoria. Já os mais jovens – até 24 anos e de 25 a 29 anos – estão desistindo mais da profissão em busca de outras carreiras.
Os números batem com a percepção dos levantamentos realizados pela Conectando Saberes, instituição que reúne cerca de 900 professores e 10 secretários municipais. “Nós mesmos acabamos sendo os detratores da nossa carreira. Por isso, trabalhamos ouvindo quais são as demandas dos professores”, diz Paolla Vieira, diretora da instituição. O trabalho resultante das pesquisas tem investido em duas linhas: o aumento do repertório docente, tentando desenhar um perfil do ‘educador do futuro’, e propostas de saúde e bem-estar dos corpos docente e discente. Além disso, os professores também mostraram interesse em questões como liderança e engajamento comunitário, em especial após a pandemia.
“Muitos se sentiam responsáveis por fatores que fariam o aluno voltar à escola.”
Uma realidade constatada por ela é bastante preocupante em nível nacional: o não preenchimento das vagas oferecidas em concursos públicos, algo que torna a equação insolúvel sem que haja medidas mais contundentes. Afinal, como elevar os parâmetros de ingresso se o salário e as condições profissionais não são compatíveis com o nível maior de exigência profissional?
Para Callegari, o MEC deveria aumentar sua própria rede e ser mais rigoroso na regulação dos cursos, para que todas as faculdades, públicas ou privadas, tenham parâmetros iguais de formação.
Outra sugestão bem vista pelos gestores é a introdução de um exame nacional de ingresso na carreira docente, tal como planejado em 2007, quando o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estava à frente do MEC. Esse exame seria um serviço para as redes municipais, funcionando como um primeiro balizador para o ingresso, seguido por processos seletivos locais. A ideia, no entanto, caiu num limbo em função de pressões corporativas.
Esta reportagem faz parte da edição janeiro/fevereiro da revista Educação. Leia outros conteúdos sobre educação básica.