Inovação

Colunista

Marina Feferbaum

Coordenadora do CEPI e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP

Pandemias, eventos extremos e processos internos das IES

Toda solução a ser desenvolvida parte de uma cultura organizada. E, para que funcione na prática, haverá necessidade de instrumentos efetivos

Emergência climática

Patrícia (nome fictício) foi passar uns dias na casa de parentes no interior do Rio Grande do Sul enquanto os pais viajavam a trabalho. Coisa rápida. A volta, no entanto, não ocorreu conforme o planejado. Com as enchentes e deslizamentos em muitas áreas do estado, resultando em bloqueio de rodovias e o fechamento de aeroportos, teve de permanecer com seus parentes por quase um mês. Eventualmente, conseguiu retornar à sua casa e, por conseguinte, retomar as aulas.

Patrícia teve sorte, já que não enfrentou os piores efeitos das águas, mas ainda se esforça para recuperar as horas-aula perdidas durante seu afastamento. Como deve a instituição de educação agir nesses casos?

Não se trata, aqui, de uma questão de atendimento ao aluno, mas de um verdadeiro desafio de gestão. Com a perspectiva de aumento da frequência de situações de afastamentos atípicos – seja em razão de novas epidemias/pandemias, seja de eventos extremos (como altas temperaturas, seca, temporais, enchentes etc.) –, a demanda de atendimento deve se tornar rotina, tornando inviável tratamento ad hoc.

O que chama atenção no caso de Patrícia é a amplitude dos efeitos desses eventos extremos, que ultrapassam os limites territoriais da área afetada. Ou seja, eles podem afetar diretamente mesmo quem não habite os locais atingidos. Consequentemente, os efeitos das mudanças podem acontecer antes do esperado. Daí a necessidade de já desenvolver planos de contingência.

 

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No velho normal, quando o afastamento discente ocorria esporadicamente, medidas personalizadas – como trabalhos extraclasse com prazo alargado, abono de faltas etc. – compensavam as ausências formativas e avaliativas. A prioridade, até então, era evitar a perda do semestre ou ano, admitindo-se toda sorte de prejuízos pedagógicos ante a excepcionalidade da situação.

Durante a pandemia, quando o afastamento ocorreu generalizadamente e por tempo considerável, os “gabinetes de crise” entraram em operação para estabelecer medidas de mitigação, a exemplo do ensino online emergencial. A prioridade, aqui, foi o reestabelecimento do programa na medida do possível, com alguma preocupação pedagógica.
Já, no novo normal que se aproxima, o afastamento encontra-se num meio-termo com, ao menos, duas situações a considerar: numa, similar à de Patrícia, um número de alunos se ausenta (simultaneamente ou não) por tempo suficiente para prejudicar o aproveitamento do período; noutra, aulas são suspensas por poucos dias, sem tempo sequer para convocar um “gabinete de crise” e com alto custo para tratamentos ad hoc. Eis nosso desafio.

Ora, na ausência de uma rotina administrativa para lidar com a questão, surge uma sobrecarga para as coordenadorias dos programas, que têm de remanejar aulas e docentes, analisar e decidir sobre um número de casos individuais, tentando garantir a manutenção da carga horária das disciplinas e a aprovação dos alunos. Tudo isso, sem prejudicar as férias escolares, as quais, além das viagens já planejadas de integrantes da comunidade acadêmica, compreende direitos trabalhistas dos colaboradores, muitos dos quais obrigados a gozar delas durante o recesso acadêmico.

 

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Além disso, diferentemente do velho normal, dada a magnitude de afetados (que se espera ir além da excepcionalidade), não será mais possível ignorar os prejuízos pedagógicos. Sem um projeto de continuidade das disciplinas haverá um desvio do plano de ensino, comprometendo seus objetivos. O docente será obrigado a adaptar o curso sem tempo hábil, comprimindo o conteúdo em menos encontros e/ou substituindo atividades por leituras e trabalhos. O aluno perderá sua rotina de estudo e assumirá para si a tarefa de se ensinar, ao mesmo tempo que tem sua carga “para casa” aumentada significativamente em todas as disciplinas.

Ao final, o saldo será o de um amontoado de insatisfeitos, seja do lado da instituição de educação, seja do alunado. Todos perdem.

Toda solução a ser desenvolvida – que dependerá de muitos fatores, desde a cultura da IES até as tecnologias disponíveis – parte de uma estrutura organizada. E, para que funcione na prática, haverá necessidade de instrumentos efetivos (ou seja, normas adequadas). Tudo isso com a participação de toda a comunidade: corpo discente, corpo docente, gestores e parceiros. Logo, entramos no campo da governança.

 

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Tradicionalmente, as IES contam com estruturas e instrumentos básicos que favorecem estabelecer ou aprimorar modelos de governança, a exemplo das agremiações estudantis (que organizam a representação dos alunos), das coordenadorias e departamentos (que estruturam academicamente o coletivo docente) e comitês de ética em pesquisa (que desempenham função de controle). Um possível próximo passo seria integrar normativamente essas estruturas na gestão de uma rotina de atendimento de alunos e professores em prol da mitigação de prejuízos pedagógicos resultantes de eventos climáticos.

Antes de tudo, porém, é urgente iniciar o debate para conscientizar os membros da instituição. Concomitantemente, é útil desenvolver o repertório metodológico do corpo docente, de maneira a qualificar o debate quanto a estratégias para o ensino. Por fim, é indispensável desenvolver uma cultura de enfrentamento de exceções, de maneira a evitar aquele jogo de empurra, que termina por jogar as dificuldades para debaixo do tapete. Vamos trabalhar para que Patrícias não percam mais suas férias.

Por: Marina Feferbaum | 26/07/2024


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