NOTÍCIA
Com a Inteligência Artificial, as bibliotecas são um órgão vital para circulação de incontáveis livros, revistas e artigos científicos e bases de dados das mais diversas temáticas e nacionalidades
Publicado em 24/09/2024
As novas tecnologias mudaram muitos de nossos hábitos nas últimas décadas. O dinheiro, o trabalho, as amizades, tudo isso hoje pode ser encontrado na esfera virtual, muitas vezes com mais frequência do que no mundo físico. As bibliotecas universitárias, instituições que começaram a tomar forma no mundo medieval em locais como Oxford (1218), Bolonha (1230) e Paris (1250), todas importantes centros do conhecimento, hoje não só estão espalhadas pelo mundo, como também têm, de forma acelerada, aderido à virtualidade. E mais: começam a inverter os fluxos de informação, assumindo uma postura sempre mais ativa em relação à comunidade acadêmica.
É o que vem acontecendo em muitas das cerca de oito mil bibliotecas de instituições superiores brasileiras, segundo dados do Censo da Educação Superior de 2013, último disponível com informações detalhadas sobre o tema. Muitas delas funcionam em redes da própria instituição ou externas, todas submetidas à avaliação do Ministério da Educação nos quesitos acervo, infraestrutura e serviços.
A perspectiva, principalmente com a entrada em cena da inteligência artificial, é que elas são um órgão vital para circulação de incontáveis livros, revistas e artigos científicos e bases de dados das mais diversas temáticas e nacionalidades. Tamanho volume de informações exige conhecimento para um levantamento preciso e oferta bem direcionada.
“Me encantei com a possibilidade de mediar a informação para os usuários. Somos uma extensão da sala de aula e não apenas um local de guarda da informação. Hoje, a biblioteca é um laboratório de construção do conhecimento; temos de ter um perfil educador e entender os processos que acontecem na sala de aula”, diz Alessandra Pattuzo, há seis anos coordenadora da Biblioteca do Centro Universitário Faesa, em Vitória (ES).
O diálogo com os coordenadores de curso é constante, conta. Ela vai às salas de aula no início de cada semestre para falar sobre as ferramentas de consulta, os caminhos para levantar informação verdadeira e dar um panorama sobre o acervo físico e virtual. No que diz respeito à inteligência artificial, a maior demanda é de professores que a consultam sobre como melhorar o processo de ensino-aprendizagem. “Mas só pedem o tema. Sempre passo a dica de olhar a referência”, conta.
Em relação ao livro físico, a demanda tem caído muito. Em áreas como direito, tecnologia e medicina, com alta velocidade de produção científica ou de mudança de regramentos legais, os livros físicos envelhecem rápido. O virtual permite acesso a material atualizado.
Fenômeno semelhante ocorre no Sistema de Bibliotecas de uma das mais tradicionais universidades brasileiras, a da Fundação Getulio Vargas. O sistema congrega, além da Biblioteca da FGV Rio, unidades em São Paulo, Distrito Federal e a Digital, todas interligadas. “A demanda pelo virtual tem sido crescente, principalmente depois da pandemia”, diz Gabriel Leal, gerente da unidade do Rio.
A biblioteca conta com 250 mil títulos físicos, muitas bases de dados para atender às várias áreas, como economia, direito, matemática, inteligência artificial, história e ciência política. Quem mais demanda informação atualizada é a economia, para acompanhar as volatilidades do mercado financeiro. Mas o direito também passa por atualizações constantes. Nesse caso, a biblioteca sempre mantém exemplares das edições mais antigas, necessários no caso de pesquisas acadêmicas que analisem as mudanças relativas aos temas legais e a consequente variação da legislação.
Também ali há oferta de cursos sobre inteligência artificial generativa, a modalidade que gera novos resultados a partir de dados “treinados”, como se diz. Ou seja, a partir da demanda do usuário, ela combina elementos de suas bases para gerar um novo material, como textos, ilustrações, áudios, dados etc.
“Temos criado alguns trabalhos, visando principalmente demonstrar o uso ético da ferramenta. Temos um programa de competência crítica e informação, em que buscamos fazer com que os alunos entendam como a ferramenta e seus produtos são criados, quais as empresas que estão por trás de tudo isso e seus interesses. Vamos do uso ético ao prático para mostrar como criar prompts de comunicação”, explica Leal. O prompt é o conjunto das informações fornecidas à IA para que o modelo de linguagem saiba o que se pretende gerar como material novo.
A coordenadora de bibliotecas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) é uma bibliotecária dedicada ao mundo digital. Josilaine Cezar está há um ano no cargo de coordenação, mas até há pouco tempo era uma das desenvolvedoras do Pergamum, um programa de gestão da informação que atende mais de dez mil bibliotecas no Brasil e está em outros 49 países. O software também tem aplicações para arquivos, museus, análise e gestão de pesquisas e treinamento.
Além do apoio aos estudantes para que obtenham informações confiáveis via ChatGPT, a biblioteca da PUC também promove oficinas voltadas ao apoio ao ensino, à pesquisa e à cultura em geral. No campo mais prático, há capacitações para utilização das normas da ABNT, preocupação de professores e alunos para referenciar os próprios trabalhos e aqueles citados nos textos acadêmicos.
O órgão oferece, ainda, estudos bibliométricos, com o uso de modelos estatísticos para estudar a relevância das publicações científicas por meio de indicadores. No complemento desse mergulho na busca das melhores evidências científicas, função-chave nas bibliotecas atuais, a unidade da PUC de Curitiba (há outras menores em Londrina e Toledo) também investe para que os estudantes não apenas consultem as bases de dados, mas se façam presentes no espaço físico.
“Criamos uma ‘Bibliotecas das Coisas’, em que emprestamos kindles, notebooks, adaptadores, sacolas retornáveis e até guarda-chuvas. Faz parte de um trabalho para incentivar a leitura e a cultura, estimular que os estudantes consultem o acervo físico”, diz Cezar.
O movimento no espaço de convivência tem crescido por meio de parcerias para realização de shows e eventos conjuntos com o setor de esportes. Além de teatro e de concertos da orquestra da universidade, há oficinas de origami e campeonatos de pebolim e pingue-pongue. De janeiro a maio deste ano, 110 mil pessoas visitaram a biblioteca, que conta com 250 mil títulos e 600 mil exemplares.
Nessa concepção de biblioteca viva, as obras literárias estão presentes. São a busca de um respiro em relação ao mundo acadêmico. Ainda com um pé na adolescência, muitos pedem por Harry Potter ou por best-sellers da série 50 tons de cinza. Mas a preocupação social não fica de fora. Há pouco tempo foi inaugurada uma estante batizada de Carolina de Jesus, homenagem à autora de Quarto de Despejo (1960), que escancarou a realidade de uma mulher negra na São Paulo de meados do século passado. A temática racial, diz a bibliotecária, é objeto de estudos e trabalhos coletivos demandados por estudantes.
O fenômeno se repete na Faesa. “Há grande procura por livros físicos literários de autores como Clarice Lispector e Machado de Assis”, conta Alessandra. Esses livros ficam numa estante logo na entrada e têm de ser repostos todos os dias.
Na FGV Conhecimento, a cultura negra tem falado tão forte que há uma Cátedra voltada ao tema, a Pequena África, em alusão à região portuária do Rio de Janeiro onde houve o desembarque de milhares de escravizados e grande fermentação cultural desses povos. Na cátedra, comandada pela artista plástica Rosana Paulino, pela poetisa Leda Maria Martins e pela professora e cantora lírica Inaicyra Falcão, são promovidos eventos, entre os quais os Diálogos na Biblioteca. Há demanda incipiente para receber a visita, por meio de parcerias, de autores negros de projeção internacional.