A menos que as IES ampliem a sua compreensão do mercado de educação de adultos, serão ultrapassadas por edtechs mais ágeis e flexíveis em suas ofertas
Este artigo é uma continuação da coluna de agosto, “O apagão dos estudantes”, que tratava das mudanças demográficas em curso no Brasil e que causarão mudanças drásticas no perfil do estudante do ensino superior. Uma decorrência natural desse fato é que a arena estratégica em que as instituições de ensino superior atuam também sofra alterações, com consequências igualmente drásticas para a posição competitiva das IES.
Na verdade, essa mudança já está acontecendo e talvez só seja necessário prestar um pouco mais de atenção para perceber com mais clareza o processo em curso. A Tabela 1 apresenta a quebra do volume de entrantes no ensino superior em 2000 e em 2022 , em números absolutos (milhões de entrantes) e em percentual por faixa etária.
Alguns números chamam a atenção nessa trajetória. Em primeiro lugar, em 22 anos o ensino superior presencial cresceu apenas 70%, ou setecentos mil entrantes. Em 22 anos, esse crescimento acumulado equivale a uma taxa anual média de crescimento de 2.4%. O que realmente cresceu nesse período foi o EAD, que em 2022 foi responsável por quase dois em cada três entrantes.
Outro ponto que chama a atenção é a composição etária dessa base de entrantes. Em 2000, ⅔ dos entrantes, todos no presencial, tinham até 24 anos. 22 anos depois, essa proporção se manteve e ⅔ dos entrantes do presencial tinham até 24 anos. No EAD o quadro é diferente, com proporção caindo para 31%. Ou seja, 70% dos entrantes no EAD são de adultos mais velhos e ⅓ de todos os entrantes têm mais de 35 anos. No total do sistema, mais da metade dos entrantes tem mais de 24 anos e um em cada quatro entrantes tem mais de 35 anos. Essa é uma mudança notável em relação à situação do início do novo milênio e que não está sendo devidamente considerada nem pelos players do ensino superior, nem pelo governo.
A primeira fala do 26° Fnesp tratou do novo Plano Nacional de Educação. Representantes do MEC e do Inep falaram sobre a necessidade de crescimento do sistema, de como a nação precisa atingir uma taxa líquida de escolarização comparável à de países mais desenvolvidos, de como os jovens precisam ter mais acesso ao sistema e de como as instituições precisam trabalhar melhor a permanência do jovem.
Todos esses ideais são louváveis e não creio que alguém que tenha ouvido os pronunciamentos se oponha a eles. Pelo contrário, há uma unanimidade com relação a esses anseios. Há um único problema com relação a isso: não vai se realizar da forma como o governo gostaria que acontecesse. O crescimento do sistema talvez aconteça, mas com estudantes muito diferentes daqueles que os representantes do MEC descreveram em seus planos.
Nesse sentido, talvez o novo PNE perca a oportunidade de incluir o que está sendo considerado o principal movimento de educação em prol da competitividade nacional justamente em países desenvolvidos que são a requalificação (do inglês reskilling) e o aprimoramento (do inglês upskilling). Países como Estados Unidos, Reino Unido, Singapura e até mesmo a União Europeia possuem iniciativas governamentais oficiais de reskilling e upskilling (ver 2, 3, 4, e 5 para exemplos de iniciativas oficiais).
Um olhar mais atento a esta questão iria aumentar a inclusão de uma enorme parcela da população brasileira, com benefícios para a competitividade nacional.
Dos cerca de 145 milhões de habitantes com 24 anos ou mais na população brasileira, somente 21% possui ensino superior. ⅓ desse total possui ensino médio e outro ⅓ possui ensino fundamental. Cerca de 100 milhões de pessoas.
Se mesmo as pessoas que tiveram a possibilidade de fazer graduação, ou pós-graduação, precisam continuar investindo em suas formações (a expressão aprendizagem ao longo da vida é um dos mais falados atualmente), o que dizer desse enorme contingente populacional? Quem está atendendo às necessidades de qualificação e requalificação dessas pessoas?
Para o governo britânico, a oferta de competências para adultos e aprendizagem ao longo da vida pode ser definida como “educação, aconselhamento e treinamento para adultos que desejam aprimorar suas habilidades, requalificar-se ou ingressar no mercado de trabalho”. A educação de adultos é uma parte importante da aprendizagem ao longo da vida e atende a uma variedade de alunos de diferentes idades, habilidades, áreas de estudo e motivações (7).
Essa visão para a educação de adultos lembra o que o ex-ministro da Educação Paulo Renato definia como “educação pós-secundária” e isso muda tudo para organizações que hoje se qualificam como instituições de ensino superior.
O mercado de educação de adultos irá, inexoravelmente, se movimentar no sentido da requalificação da força de trabalho e a menos que as IES ampliem a sua compreensão desse mercado, serão ultrapassadas em relevância para a sociedade por empresas de edtechs mais ágeis e flexíveis em suas ofertas.
No entanto, a posição das instituições tradicionais é forte e elas podem se beneficiar de vários ativos competitivos que podem ser utilizados em seu favor. Abaixo são mencionados cinco importantes forças que instituições tradicionais de aprendizagem podem mobilizar para aproveitar novas oportunidades de mercado.
Em um momento de mudança de paradigma como o que está se configurando, as instituições precisam identificar forças que as coloquem em uma melhor posição em relação a novos fornecedores de educação e qualificação. Estas são algumas capacidades competitivas que precisam ser aproveitadas e fortalecidas.
Chegou o momento de elucidar o que é esta sigla, IAPS, que aparece no título. Em linha com a visão de mercado descrita neste artigo, IAPS significa Instituição de Aprendizagem Pós-Secundária.
Antes que alguém diga que mudar a sigla de IES para IAPS vai causar muito mais confusão do que benefício, cabe esclarecer que a proposta é muito mais no sentido de se alterar a visão estratégica da liderança das instituições do que a sigla. De fato, a sociedade está acostumada a denominar o setor de ensino superior e talvez isso não mude, ou demore muito tempo para mudar. Mas nada impede que a liderança das instituições percebam seu próprio negócio como mais amplo, mais abrangente.
Para se ter uma ideia do potencial desse mercado expandido basta estudar os casos de duas edtechs brasileiras que estão fazendo enorme sucesso: Alura e Escola Conquer.
A Alura, fundada em 2011 pelos irmãos Paulo e Guilherme Silveira, começou como uma plataforma de cursos online voltada para a tecnologia, com a missão de democratizar o acesso à educação de qualidade em áreas como programação, design, dados e negócios digitais. Ao longo dos anos, a empresa cresceu significativamente, diversificando sua oferta de cursos e expandindo sua base de alunos para mais de 800 mil, consolidando-se como uma das maiores escolas de tecnologia do Brasil. Em 2023, a Alura alcançou um faturamento de R$ 500 milhões, oferecendo formações alinhadas às necessidades das empresas e dos profissionais em constante reskilling e upskilling. Agora, a empresa planeja atingir o primeiro bilhão de faturamento, mantendo o foco na inovação e na educação acessível (ver (8), (9) e (10)).
Já a Escola Conquer foi fundada em 2016 em Curitiba, com a proposta de oferecer uma educação prática e voltada para o mercado, inspirada no modelo do Vale do Silício. Focada em soft skills, liderança, inovação e negócios, a Conquer se destacou rapidamente por suas metodologias dinâmicas, desenvolvendo profissionais para os desafios reais do ambiente corporativo. Grandes empresas, como Ambev, Boticário, Coca-Cola e iFood, já utilizaram suas formações para capacitar suas equipes. Em 2021, a Wiser Educação, de Flávio Augusto da Silva, adquiriu 100% da Conquer por um valor que não foi revelado, mas que pode chegar a R$180 milhões de reais em dinheiro mais troca de ações, como parte de uma estratégia de expansão que consolidou a escola como referência no setor de educação executiva (ver (11), (12), (13) e (14)).
Conclusão
As mudanças demográficas, a crescente demanda por aprendizagem ao longo da vida e o surgimento de novas tecnologias educacionais estão transformando radicalmente o panorama da educação pós-secundária.
O risco para as IES tradicionais que não se adaptarem a essa nova realidade é de perder relevância para a comunidade. A transição de IES para IAPS representa uma oportunidade estratégica para essas instituições se reinventarem e manterem sua posição de proeminência na educação do século 21.
Esta transição não será fácil. Exigirá uma mudança fundamental na mentalidade, nas estruturas organizacionais e nos modelos de negócios. As instituições precisarão aproveitar suas forças tradicionais – como reputação, conexões locais e expertise em pesquisa – enquanto desenvolvem novas capacidades em tecnologia educacional, design de cursos flexíveis e parcerias com o setor privado.
O sucesso de empresas como Alura e Escola Conquer demonstra o imenso potencial do mercado de educação continuada e requalificação profissional. As IES tradicionais têm a oportunidade de capitalizar esse mercado, combinando sua credibilidade acadêmica com abordagens inovadoras de ensino e aprendizagem.
O futuro do ensino superior no Brasil não será definido apenas por diplomas de graduação tradicionais, mas por um ecossistema diversificado de oportunidades de aprendizagem que atendam às necessidades em constante evolução dos estudantes e do mercado de trabalho. As instituições que abraçarem essa visão mais ampla de educação pós-secundária estarão bem posicionadas para prosperar nas próximas décadas.
Em última análise, a transformação de IES para IAPS não é apenas uma questão de sobrevivência institucional, mas uma oportunidade de reinventar o papel da educação superior na sociedade brasileira. Ao fazê-lo, essas instituições podem desempenhar um papel crucial na construção de uma força de trabalho mais qualificada, adaptável e preparada para os desafios do futuro.
Por: Alexandre Gracioso | 30/09/2024