NOTÍCIA

Edição 289

Revisar políticas para a inclusão efetiva

Ampliar a escuta e viabilizar ações efetivas de acolhimento a grupos que foram historicamente excluídos e vulnerabilizados são premissas para dar conta da pluralidade humana dentro e fora do ambiente acadêmico

Publicado em 06/12/2024

por Gustavo Lima

Coordenação de diversidade e inclusão Coordenação de diversidade e inclusão promove diálogos e capacitações no departamento de direito da PUC-Rio (foto: arquivo pessoal)

Eu queria muito fazer mestrado, mas me questionava: como entrar na faculdade de novo, nesse meu corpo trans? Como serei acolhida dentro da comunidade universitária?” O relato é de Amanda Monteiro, pessoa não binária graduada em ciência política e pedagogia, e atualmente mestranda em estudos da linguagem na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). O início de seu mestrado foi impulsionado pela existência do NuQueer, o Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais da instituição. “Foi o melhor tipo de acolhimento possível dentro de uma universidade. Eu precisei conhecer o núcleo para sentir segurança e dizer ‘vou tentar agora’. O NuQueer não é formado apenas por dissidentes* de gênero, mas por pessoas da comunidade LGBTQIA+ no geral. São pessoas abertas ao aprendizado, que estudam as dissidências de gênero dispostas a ouvir. Que não tratam os dissidentes como objeto de pesquisa, mas como sujeitos”, afirma.

O ensino superior carrega a responsabilidade de promover o pensamento crítico, e isso inclui abrir espaço para debates sobre diversidade e inclusão em suas múltiplas dimensões. Ampliar a escuta e viabilizar ações efetivas de acolhimento a grupos que foram historicamente excluídos e vulnerabilizados são premissas para dar conta da pluralidade humana dentro e fora do ambiente acadêmico. Apesar dos avanços, quando se trata da diversidade sexual e de gênero, ainda há muito o que evoluir.

Ao finalizar a graduação, Amanda Monteiro se especializou em psicopedagogia e coordenação pedagógica, sempre no formato a distância. “Na minha primeira experiência universitária, eu ainda estava me entendendo como pessoa trans, e tive o privilégio da passabilidade cis **. Mais tarde, nas especializações, escolhi o ensino a distância (EAD) não só pela disponibilidade de tempo com relação ao trabalho, mas também porque a minha identidade trans não seria um tópico. Tem vezes que a gente só quer existir, chegar à faculdade e discutir ‘n’ temas, dias em que não queremos necessariamente defender a nossa existência. Queremos um dia regular na universidade”, diz.

 

Leia: O papel da universidade no acolhimento ao aluno

 

“Sim, haverá aqueles dias em que vamos querer discutir a pauta das nossas inserções, mas, mesmo quando só o que queremos é chegar à instituição, assistir aula, discutir um tema diferente e voltar para casa, não temos essa possibilidade. Porque temos uma luta a cada pedacinho da universidade em que literalmente caminhamos. Especialmente se não temos passabilidade.”

O NuQueer é um grupo de ensino, pesquisa e extensão. Com sede na UFRPE, desenvolve atividades acadêmicas em diálogo com diferentes atores de outras esferas sociais, como capacitações para funcionários da universidade, além de receber alunos de outras instituições. Na avaliação de Amanda Monteiro, a ação é de grande importância. “Mas, se esse movimento [da capacitação para funcionários] tivesse sido divulgado de maneira ampla pela universidade no geral, poderíamos ter um impacto bem maior”, pontua. A mestranda destaca que as iniciativas que jogam luz sobre outras realidades precisam ser acolhidas por mais áreas. “Como fazer para que as nossas lutas e busca de inserção por mais corpos trans na universidade cheguem às outras áreas? Precisamos furar essa bolha.”

No campus de Caruaru da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e também no NuQueer, está a atriz e produtora cultural HBlynda Morais. Mestranda em educação contemporânea, pesquisa a recepção e a permanência de estudantes não binários nas escolas. Para a artista, embora as ações de inclusão estejam em progresso na sociedade, é preciso avançar para que essas iniciativas sejam efetivas. “Temos visto uma crescente entrada de alguns corpos e corpas (sic) na universidade. As políticas afirmativas têm atuado na garantia de vagas e isso é algo pelo qual lutamos muito. Mas não basta dizer que há inclusão se não há permanência.”

 

Entrevista | Saúde mental precisa da diversidade

 

HBlynda Morais

Mestranda na UFPE, HBlynda Morais pesquisa sobre a recepção e permanência de
estudantes não binários no ambiente escolar (foto: arquivo pessoal)

HBlynda vê a ocupação de espaços de poder como um caminho para a mudança. A pesquisadora lembra que as pessoas à frente de movimentos sociais e que reivindicam por esses espaços, como os dissidentes de gênero, a população negra, e as pessoas com deficiência, precisam de aliados. “Se não ‘furarmos’ os espaços de poder, não vamos conseguir mudar algo. Precisamos nos alojar e soltar as nossas panes. As panes geram desequilíbrios e distúrbios para que possamos criar uma nova lógica.”

A atriz ressalta a necessidade de um papel pedagógico para aproximar a sociedade da causa LGBTQIA+. “Infelizmente, ainda precisamos ensinar. Há quem não saiba nem mesmo o que é ser heterossexual, tampouco cisgênero. E essa discussão não se torna interessante para as pessoas, mas as afastam. Precisamos adentrar esses assuntos, e as formações e atividades culturais são importantes para isso. Podemos trazer essa discussão através do teatro, por exemplo. São formas de tentarmos capturar as pessoas e ensiná-las”, defende.

 

Revisão institucional

As instituições de ensino superior devem não apenas participar, mas sim liderar esses debates. Elas têm o poder de moldar mentes e comportamentos, preparando indivíduos para o convívio em uma sociedade plural e complexa. Apesar de o senso comum imaginar a academia como um espaço naturalmente diverso e plural, muitas áreas do conhecimento ainda mantêm barreiras e marcadores de gênero e raça que limitam a inclusão plena. É o que afirma Giowana Cambrone, advogada, professora universitária e consultora de diversidade e inclusão da Yduqs.

Giowana Cambrone

Giowana Cambrone, consultora de diversidade e inclusão da Yduqs: “para acolher
efetivamente a diversidade de gênero e de sexualidade, é fundamental adotar uma
abordagem ampla e multifacetada” (foto: arquivo pessoal)

“Para acolher efetivamente a diversidade de gênero e de sexualidade, é fundamental adotar uma abordagem ampla e multifacetada. Isso inclui a revisão de políticas institucionais e de processos”, lista Giowana, que faz coro aos discursos de Amanda Monteiro e de HBlynda Morais ao destacar a implementação de ações de sensibilização e letramentos para professores, coordenadores de curso e funcionários, como iniciativas necessárias para proporcionar segurança e respeito à individualidade.

“Experiências negativas nos processos institucionais, como o desrespeito ao nome social ou à identidade de gênero de um aluno, podem levar essas pessoas à evasão. Algo que pode contribuir para uma experiência positiva é ter um corpo docente diverso. Isso não apenas proporciona uma variedade de perspectivas dentro da sala de aula, mas também oferece uma referência positiva para alunos de grupos minorizados, que se sentem representados e inspirados a ocupar esses espaços no futuro. Sou uma mulher trans, e tenho certeza de que eu me sentiria mais segura se eu tivesse encontrado na minha formação uma pessoa semelhante”, acrescenta Giowana.

 

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A consultora também enfatiza a importância de se revisar a grade curricular das instituições para que sejam incluídas perspectivas e produções de autores diversos, refletindo a realidade plural da sociedade. “Quando uma bibliografia apresenta apenas autores homens e brancos, ela perpetua o apagamento e o silenciamento de cientistas mulheres e negros, promovendo um verdadeiro epistemicídio.”

A Yduqs é signatária dos movimentos “Raça é prioridade” e “Elas lideram,” ambos do Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU). No grupo, há o compromisso de promover ações para ampliar a presença de mulheres e pessoas negras em posições de liderança até 2030. “Além disso, temos um programa interno de diversidade, equidade e inclusão, com iniciativas que incluem a revisão e inclusão de políticas institucionais que respeitem a diversidade de identidades, além de oferecer treinamentos para docentes e colaboradores, promovendo uma cultura de respeito e segurança e assegurando que todos tenham voz. A criação de espaços de apoio psicológico e redes de apoio, como grupos de afinidade, também são fundamentais para essa construção”, comenta.

No primeiro semestre de 2022, o departamento de direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) instituiu a coordenação de diversidade e inclusão, como forma de mitigar os efeitos do racismo, do sexismo, da heteronormatividade, do capacitismo, do classicismo, do etarismo, da intolerância religiosa, entre outras formas estruturais de exclusão, vivenciadas no ambiente universitário.

Vitor Almeida, doutor e mestre em direito civil que integra a coordenação, reforça que uma transformação efetiva se dá dentro de todas as dimensões de uma universidade, porque as discriminações e preconceitos acontecem de muitas formas. É comum que cheguem à mídia, por exemplo, casos de discriminação de professores contra alunos. Mas também há muitos alunos que fazem uma série de atos preconceituosos contra o corpo administrativo. “Há professores que relatam assédio e atos de discriminação. É preciso que todos caminhem juntos porque, se deixarmos alguém para trás, continuaremos dentro de um sistema bastante opressor”, pondera.

 

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Vitor Almeida

Vitor Almeida, do departamento de direito da PUC-Rio, destaca que, para muitos, “o
ambiente acadêmico definitivamente não é acolhedor (foto: arquivo pessoal)

O profissional salienta que a composição heterogênea da coordenação reflete o compromisso com a pluralidade. “A equipe é majoritariamente feminina, são quatro professoras, entre elas uma educadora negra e outra com deficiência. E eu sou homossexual. Ficamos cerca de um ano desenhando a nossa política, um trabalho introdutório de compreender como a coordenação se apresentaria ao coletivo”, detalha.

“A nossa política se tornou uma portaria dentro do departamento e é o nosso principal documento. Nela são colocados os nossos objetivos, de que maneira as denúncias podem ser realizadas e como iremos encaminhá-las. Esse encaminhamento não é feito em uma posição punitivista, mas de acolhimento das vítimas. Também atuamos de maneira coordenada com outros órgãos da PUC para fins de acolhimento, como o encaminhamento psicológico.”

O “encaminhamento” é um dos dois pilares da coordenação, junto à “promoção”, que permite o desenvolvimento de cartilhas, palestras, rodas de conversa e capacitação. Desde sua instituição, a coordenação tem mudado a percepção do departamento de direito acerca dos assuntos abordados. “Muitos professores e alunos achavam que falar sobre racismo, capacitismo, sexismo e homotransfobia não era tema da universidade. Existia uma pretensa ideia, como aquela da ‘democracia racial’, de que a universidade é plural e acolhedora. Quando para muitos o ambiente acadêmico definitivamente não é acolhedor”, avalia Almeida.

“O primeiro passo que estamos conseguindo dar para a sensibilização do corpo universitário em nosso departamento é a percepção de que esses temas importam, de que é importante debatê-los, e de que precisamos enfrentar, combater. Se não houver enfrentamento desses temas, eles continuarão invisíveis, e essa é a pior coisa que podemos fazer em relação a essas pautas.”

Pane no ensino – do básico ao superior

Amanda Monteiro

Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais da UFRPE foi impulso para que Amanda Monteiro
retomasse à sala de aula (foto: arquivo pessoal)

Além dos baixos índices de matrículas e de permanência das pessoas dissidentes de gênero no sistema universitário, há ainda os problemas presentes na educação básica. “Essa população não chega à universidade porque não termina a educação regular. E isso não é uma escolha, mas um reflexo da falta de acolhimento nesses ambientes, do bullying que essas pessoas sofreram ou do fato de terem sido expulsas de casa. Como priorizar a educação se a educação rechaça nossos corpos?”, questiona Amanda Monteiro, que exerce a parentalidade de uma criança de 9 anos.

“Em minha pesquisa de mestrado, estudo como se dá a identidade de gênero dentro do material normativo de uma sala de aula do ensino básico. Como as crianças vão se perceber? É preciso entender quais são as identidades mostradas, porque a minha criança disse ‘olha, a nossa família não está nesse livro’. Com essa consciência da diversidade de identidades, existe maior acolhimento. Se você não conhece ou não sabe que aquela é uma opção, um estranhamento é causado. E esse estranhamento gera um tipo de rechaçamento no corpo da pessoa que não se encaixa no padrão apresentado. A educação e o desenvolvimento da diversidade e das identidades dentro da sala de aula básica podem ajudar a população dissidente de gênero a se manter dentro daquele ambiente”, argumenta.

 

(*) As identidades dissidentes se referem àquelas cujas identificação de gênero e/ou orientação sexual não se enquadram na cisgeneridade, ou seja, nos padrões masculino e feminino, e na heterossexualidade.

(**) As pessoas cisgênero são aquelas que se identificam com o sexo biológico com o qual nasceram. Ao dizer que uma pessoa trans tem a passabilidade de uma pessoa cisgênero, indica-se que essa mesma pessoa tende a ser mais aceita diante da sociedade por aparentar ser uma pessoa cis.

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Gustavo Lima


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