NOTÍCIA
O foco da discussão deveria ser como estimular as instituições a usar a IA para resolver problemas crônicos da educação
Publicado em 15/04/2025
Por Maurício Garcia*
Apesar da Inteligência Artificial ser um recurso tecnológico antigo, ela ganhou relevância a partir do lançamento do ChatGPT, em novembro de 2022. Desde então, tem havido bastante apreensão no meio acadêmico, alguns países chegaram a banir seu uso, como foi o caso da Itália no início de 2023, medida que foi revogada no mês seguinte. As preocupações são de várias naturezas, incluindo principalmente fraudes em avaliações, desinformação e precarização do papel do professor.
Tal apreensão tem motivado agentes públicos e privados a propor normas regulatórias com objetivo de criar mecanismos de controle, visando o uso responsável da IA no ambiente educacional. Todavia, em que pese a relevância de tais mecanismos, a maioria dessas normas foca apenas no controle, em detrimento do seu estímulo. Até o momento, o enfoque tem sido em como não usar a IA, deixando de lado a abordagem de como usar a IA e, o mais importante, por que usar a IA.
Claro está que essas são preocupações relevantes, mas a forma como estão se dando ocultam o ponto maior que é o protagonismo do aluno e da qualidade da educação. A IA não é uma nova onda tecnológica. Ela veio para ficar e provocará enormes mudanças em todos os setores, na educação inclusive. A sociedade está, assim, diante da maior oportunidade que a história da tecnologia deu para implementar mudanças profundas na educação.
O foco da discussão deveria ser como estimular as instituições a usar a IA para resolver problemas crônicos da educação, tais como evasão de alunos, burnout de professores, violência nas escolas, bullying, inclusão, acessibilidade e tantos outros, conforme será detalhado a seguir.
Existe espaço para a criação de um grande plano nacional de desenvolvimento da educação com o apoio da IA, alinhado às metas do Plano Nacional de Educação (PNE). O mundo passa por sérios desafios geopolíticos, com alguns países destruindo os seus sistemas nacionais de educação. O Brasil poderia ir em sentido oposto, criando um plano de metas para o uso da IA, combinando ousadia com responsabilidade. Tem tudo para se tornar uma referência mundial e ser copiado por outros países.
Para tanto, as políticas públicas deveriam se pautar em “trilhas indutoras”, as quais consistem na seleção de desafios relevantes da educação brasileira, básica e superior, a serem enfrentados com o auxílio da IA. Inverte-se, assim, a lógica das propostas sobre o uso da IA na educação que têm circulado até o momento. Ao invés de se partir das ferramentas e usos da IA, parte-se dos problemas a serem resolvidos com ela.
Uma vez selecionados os desafios, estabelecem-se mecanismos de estímulo e indução para que a comunidade acadêmica desenvolva projetos de IA para o seu enfrentamento. Dessa forma, busca-se estimular que os diversos agentes relacionados com o ecossistema da educação, sejam pessoas, sejam organizações, concentrem suas iniciativas em busca de soluções para problemas considerados prioritários.
A escolha desses direcionadores concentra os esforços de escolas, universidades, professores, alunos, associações, empresas e todos aqueles que participam do ecossistema da educação, para que implementem projetos de IA em busca de soluções.
Tais projetos podem ser de diversas naturezas, tais como de ensino, de pesquisa e de extensão. Em outras palavras, o foco dessa política é a solução dos problemas com o uso da IA, e não o uso da IA em si.
Neste texto, estão descritos seis problemas relevantes que poderiam ser considerados como direcionadores.
A IA pode ser uma aliada poderosa no enfrentamento da sobrecarga de atividades docentes, um dos principais fatores associados ao burnout entre professores. Ferramentas de IA generativa permitem automatizar tarefas repetitivas e consumir menos tempo na elaboração de planos de aula, oferecendo sugestões alinhadas às diretrizes como BNCC e DCNs, adaptadas ao ano escolar e ao conteúdo desejado. Isso possibilita que o educador dedique mais tempo à reflexão pedagógica e à interação com os alunos, em vez de gastar horas estruturando materiais do zero.
Além disso, a IA pode auxiliar na criação e na correção de avaliações, reduzindo significativamente o esforço manual envolvido nesse processo. Plataformas que utilizam aprendizado de máquina são capazes de gerar questões objetivas ou dissertativas, corrigir automaticamente provas com base em critérios previamente definidos e fornecer feedback aos estudantes, sob supervisão e revisão docente.
Um dos grandes desafios pedagógicos dos processos de avaliação de aprendizado é a implementação da chamada “avaliação formativa”, em oposição à “avaliação somativa”. Na avaliação formativa, é preciso utilizar múltiplos instrumentos de avaliação ao longo de todo o processo educativo, para que possam ser feitas intervenções tempestivas, fato que não é possível na avaliação somativa, que simplesmente constata se o aluno aprendeu ou não, ao final do processo, quando não há mais tempo para se fazer algo.
O problema da avaliação formativa é o enorme esforço que demanda por conta dos múltiplos instrumentos. Assim, a IA traz uma grande oportunidade para a evolução dos processos avaliativos, permitindo que os docentes acompanhem o progresso dos alunos de maneira mais precisa e eficaz.
A IA pode desempenhar um papel relevante na prevenção e no enfrentamento da violência nas escolas, atuando de forma complementar ao trabalho pedagógico e psicológico. Sistemas de IA podem ser utilizados para analisar dados de interações em plataformas educacionais, redes sociais ou até registros escolares, identificando padrões que indiquem possíveis situações de bullying ou isolamento social. Esses sinais precoces, quando detectados, permitem que a equipe escolar intervenha de forma mais ágil e eficaz, com base em evidências, antes que os conflitos se agravem.
No caso de desvios de comportamento, a IA pode ajudar no monitoramento do engajamento dos estudantes, no reconhecimento de mudanças súbitas no desempenho ou na participação em atividades escolares. Por meio de algoritmos que analisam dados de frequência, notas e interações, é possível criar alertas automáticos para orientar a equipe pedagógica sobre alunos que possam estar enfrentando dificuldades emocionais, sociais ou comportamentais. Assim, a IA não substitui o olhar humano, mas o potencializa, oferecendo informações estratégicas para a construção de um ambiente escolar mais seguro, acolhedor e atento às necessidades dos estudantes.
Com auxílio da IA, é possível empoderar o enfrentamento das dificuldades de aprendizagem, oferecendo suporte à adoção de metodologias ativas que tornam o estudante protagonista do próprio processo. Plataformas educacionais baseadas em IA podem propor desafios, exercícios e trilhas de aprendizagem adaptativas que se ajustam ao ritmo e ao estilo de cada aluno, promovendo maior engajamento e compreensão dos conteúdos. Isso favorece a aplicação de metodologias como sala de aula invertida, aprendizagem baseada em projetos e resolução de problemas, com o apoio de recursos interativos e inteligentes.
Além disso, a IA permite um alto grau de personalização no processo educativo, oferecendo sugestões de materiais e estratégias diferenciadas conforme o desempenho e as necessidades de cada estudante. Sistemas tutoriais inteligentes simulam uma tutoria individual, respondem dúvidas, reforçam conceitos e acompanham o progresso do aluno em tempo real. Essa tutoria automatizada, quando bem implementada, contribui para reduzir lacunas de aprendizagem e garantir que nenhum aluno fique para trás, mesmo em contextos com turmas numerosas e recursos humanos limitados.
Identificar os sinais que antecedem a evasão escolar é um dos maiores desafios das instituições de ensino, e é nesse ponto que os modelos preditivos baseados em dados podem trazer grandes contribuições. Utilizando algoritmos capazes de analisar uma combinação de fatores, tais como frequência, rendimento, engajamento e até indicadores socioemocionais, esses sistemas podem apontar quais alunos estão mais propensos a abandonar os estudos. Isso permite que a escola aja de forma preventiva, com intervenções direcionadas e tempestivas, antes que a desconexão com o processo educacional se torne irreversível.
Além da previsão, a IA também contribui para o fortalecimento de sistemas de apoio ao estudante. Ferramentas com assistentes virtuais podem oferecer ajuda imediata com conteúdos, esclarecer dúvidas e até encaminhar o aluno para suporte pedagógico ou psicológico humano quando necessário. Com isso, cria-se uma rede de cuidado mais ativa e disponível, capaz de manter o vínculo entre aluno e escola, aumentar o sentimento de pertencimento e reduzir significativamente as chances de evasão.
Superar as limitações de acessibilidade na escola é fundamental para garantir uma educação inclusiva e equitativa, especialmente para estudantes com deficiência (PNEs). Tecnologias baseadas em IA podem apoiar esse processo ao adaptar conteúdos didáticos para diferentes necessidades, tal como transformar textos em áudios, traduzir conteúdos em Libras, gerar legendas automáticas para vídeos, ou ajustar a complexidade do vocabulário para alunos com dificuldades cognitivas. Essas ferramentas ampliam a autonomia dos estudantes e facilitam a participação ativa nas atividades escolares, respeitando seus diferentes modos de aprender.
Além disso, sistemas inteligentes podem ajudar educadores a planejar intervenções mais eficazes para PNEs, sugerindo estratégias pedagógicas personalizadas com base no perfil e nas interações do aluno. Plataformas de IA também podem monitorar o progresso individual e alertar os professores sobre dificuldades específicas, permitindo um acompanhamento mais próximo e assertivo. Dessa forma, a tecnologia não só elimina barreiras de acesso ao conteúdo, mas também fortalece o compromisso da escola com uma educação verdadeiramente inclusiva.
Melhorar a empregabilidade dos egressos é um desafio que pode ser significativamente impulsionado com o uso de soluções baseadas em IA. Ferramentas podem realizar análises inteligentes de currículos, sugerindo melhorias em estrutura, linguagem e palavras-chave, aumentando a compatibilidade com os critérios utilizados por sistemas de recrutamento automatizados. Além disso, essas plataformas podem avaliar a aderência entre o perfil do estudante e vagas reais oferecidas por empresas, indicando oportunidades mais alinhadas às suas competências e interesses, o que aumenta as chances de inserção no mercado de trabalho.
Outro recurso valioso são as entrevistas simuladas com assistentes virtuais treinados para fazer perguntas frequentes de processos seletivos, avaliando aspectos como clareza, objetividade, postura e argumentação. Após a simulação, o sistema pode oferecer feedback imediato e personalizado, ajudando os jovens a se prepararem melhor para os desafios do mundo profissional. Com isso, a escola amplia seu papel formador, conectando a formação acadêmica às demandas reais do mercado e preparando seus egressos com mais segurança e competitividade.
A IA configura-se como uma aliada estratégica para o enfrentamento dos desafios históricos da educação brasileira, contribuindo para a melhoria da qualidade do ensino, a promoção da equidade e a valorização dos profissionais da educação. No entanto, para que tais benefícios se concretizem de forma ética, segura e eficaz, é imprescindível que sua utilização esteja firmemente ancorada em valores fundamentais, como o respeito aos direitos humanos, à privacidade, à diversidade e à legislação vigente.
Nesse sentido, torna-se fundamental o estabelecimento de políticas públicas que aliem responsabilidade com inovação, através de diretrizes que orientem o uso ético, transparente e finalístico da inteligência artificial, com vistas à promoção de uma educação centrada no estudante, valorizadora do docente e comprometida com o desenvolvimento humano e social.
A transformação digital da educação deve ser pautada por compromissos éticos e legais, porém no contexto de uma visão estratégica que integre prudência normativa com incentivo à criatividade, à experimentação pedagógica e à produção de soluções orientadas ao bem comum. A elaboração de políticas que promovam o uso qualificado da IA representa uma oportunidade ímpar para reposicionar a educação brasileira como referência internacional em termos de inovação com responsabilidade.
*Maurício Garcia é cientista digital e membro do Conselho Editorial da revista Ensino Superior.