Revista Ensino Superior | Ressignificar é verbo docente

Educação

Colunista

Karina Tomelin

Educadora, psicóloga, pedagoga e mestre em educação

Quando a aula pede mais do que o plano: ressignificar é verbo docente

O cotidiano da docência pode ser um exercício permanente de reinvenção

Docência no divã A professora Adriana foi recomenda ao Docência foi recomendada ao Docência pela capacidade de se ressignificar (foto: arquivo pessoal)

Cheguei à Varginha, Minas Gerais, para conhecer a professora Adriana. Ela me foi recomendada por sua visível capacidade de ressignificar-se enquanto docente e pelo reconhecimento dos seus resultados, em sala de aula e na vida de seus alunos. Esperei por ela na sala dos professores, já era final de uma sexta-feira, o céu começava a escurecer, e havia uma atmosfera de cansaço silencioso no ar.

Adriana Alves Pereira Pinelli é bióloga de formação, com pós-graduação em ciências morfológicas, biologia geral e gestão e mestrado em ciência animal. Está há 33 anos na educação, atuando em diferentes segmentos, da zona rural ao ensino superior, com passagens por escolas públicas, privadas e, hoje, integrando o Grupo Unis, nos cursos da área da saúde. 

Adriana chegou à sala dos professores depois de um longo dia de trabalho. Estava arrumada, de banho tomado — como se o nosso encontro merecesse esse frescor. Trazia no rosto um misto de surpresa e alegria. Achava que haveria outros professores ali, não imaginava que aquele encontro seria só dela. No caminho até o estúdio, vi algo que não se ensaia: estudantes a abordavam com abraços espontâneos e calorosos, compartilhando novidades, como acontece com todo professor que faz da docência encontros íntimos com seus alunos. Dava para ver, nos olhos dela e deles, que havia ali uma relação real, construída com presença, escuta e afeto. Seguimos, então, para a gravação.

Acho que “nasci professora”

“Desde criança eu brincava de escolinha. Reunia a criançada da rua, colocava todo mundo sentadinho, usava um quadro velho e dava aula.” Adriana sorri ao lembrar. A mãe, também professora, organizava planos de aula na mesa da cozinha, ensaiava teatrinhos com alunos no quintal e, sem saber, inspirava profundamente a filha. “Eu me via dando aula desde pequena. Acho que nasci professora.”

Essa vocação, no entanto, encontrou seu primeiro grande teste, quando Adriana iniciou sua carreira na zona rural, dando aulas à noite para turmas de jovens e adultos. Era um cenário exigente: viagens longas em kombis escolares, dificuldades estruturais, alunos que mal sabiam escrever. Mas ali, entre árvores frutíferas, pés de café e pequenos animais ao redor da escola, ela encontrou uma forma concreta e apaixonada de ensinar ciências. “O ambiente era o nosso laboratório.”

A mudança para a cidade foi como chegar a  “um outro mundo”. As distâncias encurtaram, mas os desafios cresceram. O público mudou, a dinâmica de aula também. “Tive de lidar com novas exigências, vestibular, metas de desempenho. E isso gerou muita ansiedade. Eu queria acertar.” Foi nesse ponto que a professora, até então habituada à espontaneidade do rural, precisou reinventar-se. A didática baseada na experiência direta deu lugar à busca por metodologias mais dinâmicas, capazes de capturar o interesse de um aluno urbano, digitalizado e exigente.

Ela não apenas aceitou o desafio – ela se moldou a ele. “O novo me instiga”, diz. E esse movimento de adaptação, que começou na transição do rural para o urbano, se tornaria um dos traços mais marcantes de sua trajetória: a coragem de transformar a prática sem perder a essência.

Uma vida antes e depois da pandemia

Adriana se divide nitidamente entre a professora que era antes da pandemia e a que emergiu depois dela. Para alguém que sempre valorizou o contato direto com os alunos – o quadro, os desenhos feitos à mão, o olho no olho – a súbita transição para o ensino remoto foi, em suas palavras, “um recomeço abrupto, dolorido e solitário”.

De uma hora para outra, precisou transformar a casa em sala de aula. Comprou equipamentos, testou ferramentas digitais, enfrentou telas silenciosas com câmeras desligadas e estudantes invisíveis. A ausência de retorno gerava insegurança: “Eu não sabia se o aluno estava ali do outro lado. E isso doía.” Faltava o olhar, o gesto, a respiração coletiva, que antes guiavam sua escuta. Sentia que, sem o afeto presente, o elo essencial da educação estava ameaçado.

Mais difícil ainda era perceber, de forma fragmentada, o quanto os alunos também estavam fragilizados. Muitos retornaram depois de meses com a autoestima abalada, retraídos, inseguros. “Tinha aluno que voltava calado, isolado, sem brilho nos olhos. A gente percebia que algo tinha se rompido.”

 

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Ela, porém, não ficou paralisada. Criou, dentro do caos, um novo modelo de aula – uma metodologia própria, resultado da reflexão intensa sobre sua prática e do desejo profundo de resgatar o vínculo com seus estudantes. Passou a organizar suas aulas em três momentos estruturais, que marcariam profundamente sua docência no cenário pós-pandêmico:

  1. Antecipação e preparação: muitas vezes, por meio da sala de aula invertida, os alunos recebiam previamente textos, vídeos ou provocações para estudo. Era o início da reconexão, uma tentativa de despertar o desejo de aprender antes mesmo do encontro. “Eu provocava a curiosidade deles. Queria que chegassem na aula com vontade de conversar.”

  2. Desenvolvimento criativo e participativo: no momento da aula ao vivo, abandonou o roteiro tradicional. Incorporou jogos, quizzes, dinâmicas em grupo, seminários, dramatizações. “Eu queria que o aluno construísse o conhecimento junto comigo. Nada de ficar só ouvindo.” Mais do que ensinar conteúdos, buscava devolver aos alunos o sentimento de pertencimento, de serem parte ativa do processo.

  3. Fechamento com feedback e significado: o terceiro momento tornou-se o mais importante. Adriana passou a encerrar as aulas perguntando: o que vocês levam dessa aula para a vida de vocês? Era o instante em que escutava os ecos do que foi vivido. Alguns respondiam de forma tímida, outros com entusiasmo. Muitos se emocionavam. “Ali, naquele final, eu sabia se a aula tinha chegado.”

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Esse novo formato não apenas reconectou os alunos com o conteúdo, mas também os reconectou consigo mesmos – e com ela. A sala de aula, antes estruturada para a transmissão, passou a ser espaço de escuta, acolhimento e criação. 

“Hoje, eu sou outra professora. Mais atenta, mais criativa, mais sensível. Porque eu sei que posso perder o aluno em segundos, se não conseguir tocá-lo.”

A pandemia, embora devastadora, foi também o catalisador de uma reinvenção afetiva. E Adriana, como tantas professoras pelo país, escolheu continuar – não da mesma forma, mas com um novo olhar, mais humano e mais consciente da importância de cada encontro.

Reinvenção e autorreflexão

A força da fala de Adriana está na capacidade rara de se perceber em processo – como alguém que nunca está pronto, mas sempre em formação. Ela se observa, analisa sua atuação com um rigor ético e emocional que revela uma educadora em constante construção.

“A gente sabe quando a aula foi boa ou ruim. E isso me entristece. Eu chego em casa pensando no que não funcionou. Fico remoendo, tentando entender onde eu poderia ter feito diferente.”

Sua autorreflexão não é pontual, mas um hábito. Um traço de personalidade, talvez, aliado a mais de três décadas de estrada e à convivência com diferentes gerações de estudantes. Ela descreve um tipo de escuta interna que não depende de avaliação externa – embora essa também tenha chegado, principalmente por meio dos próprios alunos, cada vez mais críticos e exigentes. “Hoje eles têm tudo na palma da mão. Se não gostam da aula, comparam. Se não se conectam, se desligam. Eles me forçaram a mudar.”

A mudança, todavia, não foi solitária. Adriana destaca a importância das trocas com colegas, especialmente no contexto da pandemia, quando passou a integrar um grupo colaborativo de professores da área da saúde dentro do Grupo Unis. Ali, práticas foram compartilhadas, estratégias discutidas, ferramentas testadas — tudo sem competição, sem vaidade, com espírito de comunidade. “A gente se ajudava mesmo. Ninguém estava ali para se mostrar. Era um lugar de partilha, e isso fez toda a diferença.”

 

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O olhar que desenvolveu sobre sua prática também nasce de uma escuta atenta aos sinais do cotidiano. Ao perceber que uma mesma aula não funcionava para duas turmas diferentes, passou a adaptar não só o conteúdo, mas a forma como se comunicava com cada grupo. “Antes eu fazia tudo igual, agora eu olho para os alunos antes de planejar. O que funciona para esse grupo? Como eles aprendem melhor?”

Essa flexibilidade é acompanhada de uma postura de humildade profissional. Ela reconhece seus erros, admite momentos de resistência, especialmente quando se viu desafiada por metodologias mais ativas no ensino superior. 

“Fiquei assustada. Como assim o aluno vai produzir toda a aula? E o conteúdo? E o tempo? Mas fui testando. Copiei o que era bom, adaptei o que precisava e fui criando o meu jeito.”

A reinvenção de Adriana não se resume a técnicas, é uma reinvenção de olhar. Um olhar que reconhece a complexidade de ensinar, que não se acomoda na zona de conforto e que acredita que uma boa aula começa muito antes, começa na escuta sensível do professor sobre si mesmo e sobre os outros.

Resistências que moram na gente

Adriana não nega: já foi resistente. Não com os outros, mas consigo mesma. Quando foi convidada a lecionar no ensino superior e se deparou com metodologias ativas, sentiu um desconforto profundo. Estava acostumada com o roteiro de slides, com o planejamento centrado na sua fala, com o controle total do que seria abordado em aula. 

Essa resistência, segundo ela, não vinha da recusa em aprender, mas do medo de não dar conta. O novo exige exposição. Exige tentativa e erro. Exige escutar o aluno de verdade, inclusive quando ele questiona o formato da aula ou parece entediado. “Eu achava que estava tudo certo. A aula começava, eu seguia o meu roteiro… mas percebi que, muitas vezes, o aluno estava ali só de corpo presente. Algo precisava mudar.”

 

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Reconhecer isso não foi fácil. Implicou rever certezas, abrir mão de práticas consolidadas e, principalmente, aceitar que o que funcionou por muitos anos talvez já não funcione mais. “Eu fui treinada de um jeito, acostumada com um ritmo. Mas hoje eu vejo que cada grupo é um grupo. E o que funcionou ontem pode não funcionar amanhã.”

Ela destaca que a resistência é humana – e, de certa forma, necessária. É ela que sinaliza o desconforto, que nos convida à pausa reflexiva. Mas se não for enfrentada, torna-se estagnação. Por isso, seu movimento foi de escuta e ação: buscou inspiração em colegas, testou novos caminhos e adaptou metodologias com criatividade. “A sorte é que eu sou bem criativa”, brinca. 

Ao falar sobre suas resistências, Adriana desromantiza a ideia da professora “pronta” e mostra que o verdadeiro compromisso com a educação está em não se proteger do novo, mas em mergulhar nele com criticidade, sensibilidade e entrega. Porque reinventar-se não é um sinal de fraqueza — é, talvez, o maior ato de coragem docente.

 

Lições de uma professora que continua aprendendo

Ao fim da conversa, pedi que Adriana deixasse uma mensagem aos professores que, como ela, sentem o peso da profissão, mas também a esperança de reinventar-se. Sua resposta não foi teórica, foi prática, vivida, cotidiana. Um verdadeiro pequeno manifesto sobre como se manter ético, inteiro e apaixonado pela docência, mesmo depois de décadas de sala de aula.

1. Goste do que faz – ou reconsidere.

“Se você não gosta de dar aula, vai ser tudo mais difícil”, diz com firmeza. Para ela, o gosto pelo ensinar não elimina o cansaço, mas muda o modo como se vive o dia a dia. É esse gosto que faz com que ela ainda se emocione ao reencontrar alunos e sorria ao ouvir um “você foi minha melhor professora”, anos depois. “Estar em sala de aula ainda me alimenta. Eu me desligo do mundo quando estou ali.”

2. Planeje sempre – até o que você já sabe.

Mesmo após 33 anos, Adriana não entra em aula sem planejamento. E não se trata de rever apenas os conteúdos. É um exercício de reorganização, de atualização do olhar sobre a turma. “Às vezes, olho para o mesmo conteúdo e penso: o que posso mudar? O que pode ser melhor?” Planejar, para ela, é sinônimo de cuidado — com o próprio trabalho, com o tempo dos alunos, com o processo de aprendizagem como um todo.

3. Tenha sempre um plano B.
“A sala de aula é um espaço de imprevisibilidade.” Essa é uma das frases que mais traduz sua experiência. Uma lâmina que não chega, um recurso que falha, um clima emocional delicado — tudo pode acontecer. “Já preparei uma aula prática para 40 alunos e recebi só seis lâminas. A sorte é que eu tinha um plano B.” Ter alternativas não é sinal de insegurança, mas de maturidade pedagógica.

 

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4. Saia da mesmice.

O maior risco, segundo ela, é o da acomodação. A repetição automática da mesma aula, ano após ano, turva o olhar do professor e cansa o aluno. “Tem horas que dá vontade de usar o mesmo slide, a mesma explicação. Mas eu me cobro. Será que isso ainda faz sentido para essa turma?” Renovar-se exige energia, mas também traz vitalidade. Ela acredita que o professor precisa, acima de tudo, manter a curiosidade viva.

5. Seja um professor com atitude.

Por fim, talvez sua lição mais enfática seja: “O aluno precisa ver em você um exemplo.” Para Adriana, atitude não é sobre carisma ou autoridade rígida. É sobre compromisso. É chegar antes do horário, cumprir o que promete, mostrar afeto, mas também firmeza. “Se eu quero pontualidade, eu preciso estar 10 minutos antes. Se eu quero que levem a aula a sério, eu preciso mostrar seriedade. O aluno percebe tudo.”

Para ela, esse conjunto de atitudes constroi não apenas um bom professor, mas uma pessoa ética, confiável e inspiradora. E se há algo que Adriana personifica, é essa coerência entre o que diz, o que sente e o que faz.

Sonho e vocação

Ao falar sobre o futuro, Adriana não esconde a esperança, mas também não foge das contradições. Sabe que sonhar com a educação, hoje, pode parecer um gesto quase utópico. E mesmo assim, sonha. “Deixa eu sonhar um pouco, né?”, diz rindo, como quem sabe que, no fundo, o sonho é o que sustenta a caminhada.

Seu maior desejo é ver a educação verdadeiramente valorizada – não só nos discursos, mas nas práticas cotidianas da sociedade. Valorizar o professor, sim, mas também o conhecimento, a escola, o espaço coletivo de aprendizagem. “Gostaria que a comunidade enxergasse a escola como uma porta para tudo. Porque é isso que ela é: um lugar onde as pessoas se transformam.”

Adriana já ouviu de colegas a pergunta que desanima: “Pra que você faz tudo isso, se não vai ganhar mais por isso?” E sua resposta nunca foi sobre salário ou reconhecimento formal. Ela faz porque acredita. Porque vê sentido. Porque sabe o impacto que uma aula bem dada, um olhar atento, um abraço na hora certa podem ter na vida de alguém.

 

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A vocação, para ela, está ligada a algo que vai além do conteúdo. Está no vínculo com os estudantes, na escuta ativa, no prazer de ver o outro crescer. “Eu já ouvi de muitos alunos: ‘professora, escolhi meu curso por sua causa’. Isso não tem preço.” Ensinar, em sua visão, é um ato profundamente humano – e, por isso mesmo, repleto de emoção, imprevisibilidade e beleza.

Ela reconhece que há dificuldades, que os desafios da profissão são reais e pesados, mas insiste que ainda vale a pena. “Eu aprendo muito com os meus alunos. Eles me desafiam, me inspiram, me ensinam. Prefiro mil vezes isso do que qualquer máquina. O contato humano é o que me move.”

Adriana acredita que o maior motor da educação é o professor que não desiste de ser inteiro em sala de aula. Que se permite falhar, sim, mas também recomeçar, rever, tentar de novo. Que acredita que a escola ainda pode ser um espaço de afeto, criatividade e transformação.

E seu sonho, por mais simples que pareça, é grandioso: 

“Que as pessoas que pensam em ser professoras não desistam antes de tentar. Que entrem em sala de aula, que sintam o que é isso. Porque tem um lado muito bonito. A gente lida com emoção, com humanidade. E isso não tem substituto.”

Por: Karina Tomelin | 30/05/2025


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