Jovem educadora se destaca destacado pelo olhar criativo e comprometido com a inclusão
A professora da vez no Docência no Divã é jovem na profissão: tem menos de cinco anos de experiência e já carrega no currículo uma história inspiradora. Conheci Caroline durante uma visita ao Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), universidade na qual trabalhei por alguns anos e que segue sendo referência por suas ações afirmativas. Anualmente, a instituição recebe o selo “Direitos humanos e diversidade” da Prefeitura de São Paulo, reconhecimento pelas práticas inclusivas que realiza.
Caroline Ribeiro é professora no curso de fisioterapia da FMU, mestre em neurociências e comportamento pela Universidade de São Paulo (USP), com especialização em fisioterapia neurológica. Sua trajetória na docência é recente, começou em 2021, como preceptora de estágio e, pouco tempo depois, assumiu disciplinas de fisioterapia neurológica e pediátrica. Jovem na profissão, mas já profundamente envolvida com o universo da sala de aula, Caroline tem se destacado por seu olhar sensível, criativo e comprometido com a inclusão.
Foi nesse ambiente de incentivo que, quase uma década atrás, durante minha passagem pela instituição, implementei o programa de formação docente. Dentro dele, criei o projeto Compartilhe docência, voltado à valorização de práticas pedagógicas transformadoras. Para minha alegria, o projeto continua ativo até hoje e foi justamente por meio dele que Caroline foi premiada, recentemente, com uma experiência que merece ser contada.
Caroline não começou sua carreira docente nos moldes tradicionais. Sua estreia foi online, ainda sob os resquícios da pandemia, ensinando neurofisioterapia para turmas noturnas. Pouco depois, foi para a sala de aula presencial e, entendeu que ali, no contato direto com os estudantes, havia encontrado o que a movia. “Estar com os alunos, conectar com eles, entender como aprendem. Isso me faz amar o que faço”.
Mas foi quando uma estudante com deficiência visual ingressou em sua disciplina de fisioterapia neurológica que o conceito de ensinar ganhou novas camadas táteis, sensoriais e afetivas. A aluna, Jéssica, chegava com lacunas significativas no aprendizado, especialmente no que dizia respeito ao sistema nervoso, tema central da disciplina. “Ela me disse que não sabia como era o cérebro, como eram suas estruturas. E aquilo me bateu forte. Como ensinar algo que não pode ser visto, se a maior parte do nosso conteúdo é visual?”, relembra Caroline.
De imediato, começou a buscar soluções. Procurou livros adaptados em diversas bibliotecas, fez contato com instituições especializadas e buscas em acervos para pessoas com deficiência visual, mas não encontrou nada. A escassez de material acessível era gritante.
Foi a partir desse vazio que nasceu uma inquietação: “Como é possível que não exista um único material tátil sobre o cérebro? E, mais ainda, por que eu nunca tinha pensado nisso antes?”. A ausência de respostas prontas virou força propulsora. Caroline decidiu, então, criar com as próprias mãos um livro de neuroanatomia tátil, com texturas variadas representando as estruturas cerebrais.
A construção do livro foi artesanal, investigativa e sensível. Caroline passou a frequentar lojas de tecidos, papelarias e armarinhos com um novo olhar: testava texturas com as mãos, dobrava materiais, tateava superfícies, imaginando como cada uma poderia representar uma parte do cérebro. O cerebelo, por exemplo, precisava ter uma textura distinta do tronco encefálico, algo que permitisse à Jéssica não apenas tocar, mas também diferenciar e memorizar.
Durante o processo, manteve conversas constantes com a aluna para entender melhor seu grau de visão e as possibilidades sensoriais que poderiam ser exploradas. Descobriu, por exemplo, que algumas cores mais vibrantes, como o vermelho, ainda eram visíveis para Jéssica em determinados contextos. Isso a levou a combinar elementos visuais e táteis, compondo um material verdadeiramente multimodal.
Com o apoio do laboratório da faculdade, que forneceu peças anatômicas como referência, Caroline foi estruturando o livro com base em formas, volumes e relevos. A cada nova versão, levava para Jéssica experimentar, corrigia e aprimorava. Aos poucos, o que era ausência virou recurso.
O livro de neuroanatomia tátil não ficou restrito ao uso individual de Jéssica. Caroline percebeu que aquela experiência podia se tornar um recurso pedagógico também para os demais alunos da turma e decidiu ir além. Em uma das aulas, propôs uma vivência sensorial: vendou os estudantes e os convidou a explorar o livro da mesma forma que Jéssica fazia apenas com o tato.
A atividade gerou surpresa, curiosidade e, sobretudo, empatia. Muitos estudantes relataram o quão desafiador era compreender estruturas tão complexas sem o apoio da visão. “Foi um momento muito marcante”, lembra Caroline, “eles começaram a perceber o quanto a aprendizagem pode ser limitada quando não pensamos em outras formas de acessar o conhecimento”.
Mais do que uma dinâmica de aula, aquela experiência se tornou um ponto de virada na relação da turma com a colega. “Os alunos começaram a se aproximar mais, a oferecer ajuda de forma mais natural, respeitosa. Eles passaram a entender melhor o que significava estar no lugar dela, não por pena, mas por compreensão.”
A atividade também serviu para reforçar um princípio pedagógico que Caroline acredita profundamente: todos aprendem quando a inclusão é bem-feita. O que começou como uma adaptação para uma aluna, transformou-se em uma aula viva sobre neuroanatomia, sensibilidade e convivência.
O caso de Caroline ilustra um cenário que tende a se intensificar nos próximos anos. Dados do Inep mostram que as matrículas de estudantes com deficiência no ensino superior saltaram de 37.986, em 2015, para 92.784, em 2023, um crescimento de 144%. Esse avanço é reflexo direto da inclusão progressiva na educação básica, que vem possibilitando a chegada desses estudantes às universidades. No entanto, o acesso não garante, por si só, permanência nem sucesso acadêmico. É justamente aí que reside o maior desafio: transformar as instituições de ensino superior em ambientes realmente inclusivos, capazes de acolher diferentes modos de aprender, viver e se expressar.
Apesar de avanços em acessibilidade digital e apoio pedagógico, ainda há muita desigualdade entre as instituições em relação aos recursos oferecidos, às formações docentes e à presença de equipes especializadas. Muitas vezes, a inclusão acontece de forma improvisada, reativa, dependendo exclusivamente do empenho individual de professores.
Muitos professores, ao se depararem com um aluno com deficiência pela primeira vez, sentem-se inseguros. “O que eu faço? Como adapto minha aula? E se eu errar?” são perguntas legítimas, que revelam o desejo de acertar, mas também o medo do desconhecido. O ponto de partida, no entanto, não está nas soluções prontas, mas na disposição de olhar, escutar e agir com intencionalidade. Incluir é, antes de tudo, um gesto de presença e de abertura para o outro e, é nesse gesto que começa a mudança na prática docente.
A trajetória de Caroline mostra que a verdadeira inclusão começa pela escuta, passa pela abertura e se concretiza na capacidade de aprender junto com o estudante. Ela nos lembra que o caminho para uma educação verdadeiramente acessível não se faz apenas com políticas públicas e normas institucionais, mas também com sensibilidade, criatividade e coragem de sair da zona de conforto.
A experiência com Jéssica despertou em Caroline uma consciência ainda mais aguda sobre os desafios da inclusão no ensino superior. Para além do esforço individual, ela reconhece que há barreiras estruturais profundas, a começar pela própria formação docente. “Na minha graduação, na especialização, no mestrado, nunca ninguém me ensinou como lidar com um aluno com deficiência visual. Eu nunca tinha parado para pensar em como esse aluno aprende neuroanatomia”, exemplifica.
Caroline aponta que esse despreparo não é exclusivo dela, mas comum a muitos professores que, ao se depararem com um aluno com deficiência, se sentem perdidos. “A gente quer fazer o melhor, mas não sabe por onde começar. Falta repertório, falta formação, faltam referências”.
Embora tenha encontrado apoio institucional e entre colegas, não há protocolos ou caminhos claros sobre como adaptar conteúdos, avaliações ou práticas. Cada caso exige uma invenção, quase sempre solitária. E, apesar da boa vontade, o tempo, a sobrecarga e a falta de recursos tornam o processo ainda mais desafiador.
Caroline também reflete sobre a importância de ouvir os próprios alunos — algo que fez desde o início com Jéssica: “Perguntei a ela o que funcionava, o que não ajudava, como poderíamos fazer juntas. Não dá para supor, é preciso perguntar. Eles sabem muito sobre como aprendem, mas a gente precisa dar espaço para que nos ensinem”.
Ao ser convidada a dar dicas para outros professores que enfrentam o desafio de trabalhar com alunos com deficiência, Caroline é direta: “A primeira coisa é olhar para esse aluno. Não deixar passar”. Em tempos de sobrecarga e turmas diversas, ela reconhece que isso exige esforço, mas é justamente esse olhar atento que pode transformar a trajetória de alguém.
Ela destaca ainda a importância de escutar ativamente. “Converse com o aluno. Pergunte o que ele precisa, o que já funcionou, o que não funciona. Não dá para adivinhar. Eles são os maiores especialistas em suas próprias experiências de aprendizagem”.
Outra dica fundamental é reconhecer que o professor não precisa e nem deve saber tudo sozinho. “Está tudo bem não saber. Mas está na nossa responsabilidade buscar, perguntar, trocar com colegas, procurar recursos, envolver os núcleos de apoio da instituição. A inclusão é coletiva”.
Ela também sugere manter a mente aberta para criar e testar novas formas de ensinar. “A gente não precisa abandonar o que é clássico, mas pode incorporar elementos que conectem melhor com os alunos: jogos, dinâmicas, materiais sensoriais, o uso da tecnologia de forma mais acessível. É um exercício de reinvenção constante”.
Caroline lembra ainda que a inclusão é tão pedagógica quanto afetiva. “Ensinar é criar um ambiente onde todos possam aprender e isso começa quando o aluno sente que é visto, respeitado e acolhido. A inclusão exige presença, empatia e disposição para aprender junto”.
Mesmo com pouca experiência na docência, Caroline transformou o desafio em criação. Em vez de se tornar refém das desculpas ou da ausência de recursos, ela fez disso seu maior motivador. Criou sua própria referência, inventou caminhos onde não havia trilha e mostrou que a maturidade docente não está apenas no tempo de carreira, mas na coragem de agir com propósito. Sua atitude é uma inspiração para outros professores que, diante da dificuldade, podem escolher o caminho da criação em vez da paralisação.
Por: Karina Tomelin | 26/06/2025