Escolas e universidades ainda carecem de protocolos claros de acolhimento emocional
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Sempre que caminho pela Belas Artes, observo a movimentação dos jovens. Entre tantas conversas e informações, chama atenção a naturalidade com que falam sobre medicação para depressão, ansiedade ou melhora da atenção. Em si, tratar a saúde mental não é um problema; o que preocupa é quando o assunto se torna banalizado, quando nomes de medicamentos circulam como conselhos de amigos, como se fossem escolhas neutras, leves ou isentas de risco. Esse fenômeno, que antes seria raro, tornou-se parte do cotidiano escolar e universitário em muitos países. Não se trata de um privilégio brasileiro.
O uso abusivo de medicamentos entre jovens consolidou-se como uma das faces menos debatidas da saúde mental contemporânea. A literatura internacional mostra, de forma consistente, que o uso de medicamentos prescritos, como ansiolíticos, sedativos, estimulantes e antidepressivos é reconhecido como problema de saúde pública desde meados da década de 2010. A Centers for Disease Control and Prevention (CDC), por exemplo, classifica desde 2017 o “misuse of prescription drugs” como um dos principais comportamentos de risco entre adolescentes, associando o uso inadequado à ansiedade, à insônia, ao estresse acadêmico e à automedicação emocional.
Estudos norte-americanos recentes estimam que entre 12% e 15% dos adolescentes já fizeram uso não prescrito de psicofármacos pelo menos uma vez, com picos na faixa etária entre 16 e 21 anos. No Reino Unido, o relatório “The State of the UK’s Youth Mental Health” (2022) aponta aumento de 34% no uso de estimulantes entre jovens sem diagnóstico formal de TDAH, vinculados sobretudo à pressão por desempenho acadêmico. O Canadá relata tendência semelhante, com dados de 2021 mostrando que 1 em cada 7 jovens havia utilizado benzodiazepínicos sem acompanhamento clínico.
A literatura internacional converge em outra constatação: jovens recorrem com frequência aos medicamentos como estratégia de sobrevivência emocional diante de pressões escolares, universitárias e sociais. A intensificação de diagnósticos, o aumento de prescrições e a tendência global à medicalização do sofrimento cotidiano transformam sintomas normativos, como ansiedade situacional, inseguranças próprias da adolescência e juventude, tristeza reativa em questões rapidamente tratadas com fármacos. Em estudo publicado na JAMA Pediatrics (2022), pesquisadores argumentam que a medicalização precoce se tornou uma resposta social ao mal-estar, reforçada pela lógica da produtividade, pelo medo da inadequação e pela ideia de que a mente deve funcionar sem falhas, mesmo sob intensa demanda.
No Brasil, os dados são mais fragmentados, mas igualmente preocupantes. A Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE/IBGE, 2019) evidenciou que 17,7% dos adolescentes relataram ter saúde mental “ruim ou muito ruim”, e 31% relataram tristeza frequente, indicadores fortemente associados ao uso de medicamentos sem acompanhamento profissional. Estudos regionais também chamam atenção. A pesquisa de Dal Pizzol et al. (2016) indicou que cerca de 7% dos adolescentes brasileiros já haviam usado medicamentos psicotrópicos sem prescrição, número considerado subestimado diante da dificuldade de autorrelato. Em áreas rurais, o estudo de Almeida et al. (2018) apontou que 43,4% dos jovens que usaram medicamentos nas últimas duas semanas o fizeram sem receita. No contexto universitário, pesquisas brasileiras de 2021 e 2022 identificam padrão crescente de uso não médico de ansiolíticos e estimulantes como forma de gerenciar demandas acadêmicas. Mais recentemente, uma revisão brasileira publicada em 2024 destacou o aumento significativo de prescrições de antidepressivos entre jovens, com crescimento superior a 40% na última década, muitas vezes sem acompanhamento de psicoterapia, padrão criticado pela OMS desde 2021.
Esses dados revelam uma realidade complexa. No país, a automedicação é historicamente arraigada, e o fácil acesso a farmácias, somado à fragilidade da fiscalização, cria oportunidades para aquisição informal de medicamentos controlados. Isso se agrava no caso de psicofármacos, cuja circulação é frequentemente facilitada pelo uso residual de prescrições familiares, empréstimo de comprimidos e compra fragmentada. Paralelamente, o aumento de prescrições de antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores de humor entre jovens, muitas vezes sem revisão adequada, amplia os riscos de dependência, interações medicamentosas e uso prolongado além da indicação.
O pano de fundo, porém, vai além do acesso. O sofrimento mental juvenil tem crescido de maneira consistente: ansiedade, distúrbios do sono, irritabilidade, sensação de inadequação, esgotamento emocional e solidão aparecem nos principais levantamentos mundiais (OMS, 2021; UNICEF, 2022). No Brasil, fatores como desigualdade social, violência urbana, pressão escolar e instabilidade familiar atuam como gatilhos adicionais. Ao mesmo tempo, o país carece de profissionais especializados, a rede pública de saúde mental é insuficiente e a psicoterapia ainda é inacessível para grande parte da população jovem. Em meio a esse cenário, os medicamentos tornam-se solução rápida, disponível e socialmente validada.
Não se pode ignorar a contribuição das redes sociais e da cultura digital, que ampliam comparações, reforçam padrões estéticos inalcançáveis e promovem discursos de autoprescrição. Tendências como “pílulas do foco”, “calmantes naturais”, “vitaminas para ansiedade” e “remédios para estudar melhor” circulam amplamente em plataformas utilizadas por adolescentes e jovens adultos. Estudos internacionais sobre saúde digital alertam para o fenômeno da “normalização farmacológica” nas redes, no qual medicamentos ganham tom de lifestyle e deixam de ser vistos como tratamento clínico.
É nesse contexto que as instituições de ensino se tornam peças centrais, e frequentemente negligenciadas. Escolas e universidades ainda carecem de protocolos claros de acolhimento emocional, triagem de risco, educação para uso racional de medicamentos e parcerias sólidas com serviços de saúde mental. A ausência de políticas institucionais faz com que muitos jovens atravessem crises silenciosamente, recorrendo a soluções químicas por falta de alternativas reconhecidas. Como destacam especialistas brasileiros (Ramalho et al., 2023), o ambiente escolar poderia funcionar como linha de frente preventiva, mas ainda opera em lógica reativa, fragmentada e centrada no indivíduo.
O uso abusivo de medicamentos entre jovens, portanto, não é mero resultado de escolhas individuais. É um marcador social que evidencia sofrimento, desamparo, pressões institucionais e falhas estruturais. Enfrentar o problema exige reconstruir redes de cuidado, ampliar a oferta de psicoterapia e atendimento multiprofissional, formar educadores para reconhecer sinais precoces, revisar padrões de prescrição, fortalecer políticas públicas e promover uma cultura institucional que legitime a vulnerabilidade sem recorrer à medicalização como primeiro recurso.
Enquanto não alterarmos essa estrutura, continuaremos produzindo gerações que silenciam angústias com comprimidos, em vez de encontrarem vínculos, apoio, sentido e espaços de cuidado. O desafio não é “demonizar” medicamentos, que são essenciais em muitos casos, mas compreender que sua banalização na juventude é um sinal de que estamos oferecendo pouco, escutando pouco e cuidando menos do que deveríamos.
Por: Josiane Tonelotto | 28/11/2025