NOTÍCIA

Edição 230

Símbolo difícil de emplacar

Ambientes são um dos pontos vulneráveis das políticas de leitura nacional

Publicado em 20/07/2016

por Marta Avancini

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Num país como o Brasil, em que 42% da população possui nível “elementar” de alfabetização – ou seja, é capaz de localizar uma informação num texto, mas não consegue, por exemplo, elaborar uma síntese –, o desenvolvimento das habilidades de leitura ganha uma relevância acentuada. Ao mesmo tempo, coloca-se como um desafio, especialmente à escola, que se vê frente à necessidade de formar leitores competentes num mundo em que a produção e a difusão de informação se dão de modo cada vez mais acelerado, numa diversidade de suportes e meios.

Com esse cenário de pano de fundo, está em vigor desde 2010 uma lei que determina que todas as escolas brasileiras possuam uma biblioteca em suas dependências até 2020. Uma das intenções, não é difícil deduzir, é promover o acesso dos estudantes a livros, revistas e demais tipos de textos como estratégia para ampliar e fortalecer suas capacidades de leitura.

A lei é, portanto, bem-vinda, constituindo-se num marco importante, tendo em vista a implementação de políticas de incentivo à leitura e à formação de leitores no Brasil, dimensões essenciais à vida humana e ao exercício da cidadania. “Formar leitores tem de ser uma ação política consciente que possibilite às pessoas participar da cultura com autonomia e autodeterminação”, define Luiz Percival Leme Britto, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e coordenador do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic).

No entanto, de acordo com o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), apenas 8% dos brasileiros podem ser considerados plenamente proficientes em leitura e escrita. A maior parcela (42%) domina apenas as competências básicas, suficientes para as atividades típicas do cotidiano.

A formação de leitores está diretamente ligada à exposição a textos e à leitura. A família e a escola são estratégicas nesse processo, como demonstram diversos estudos nacionais e internacionais. De acordo com o estudo “Impacto da leitura feita pelo adulto para o desenvolvimento da criança na primeira infância”, do Instituto Itaú Social, existe uma unanimidade na literatura sobre o tema em apontar que a capacidade de leitura de uma criança aos 7 anos tem consequências diretas sobre o desempenho cognitivo ao longo da vida e o nível socioeconômico na idade adulta.

Exemplo disso é uma meta-análise de 99 estudos realizada por pesquisadoras da Universidade de Leiden (Holanda), que demonstra a existência de uma correlação entre a exposição a livros na fase pré-oral e na etapa da educação infantil com as habilidades de linguagem e ortografia até pelo menos a juventude: ela responde por 34% da variância das habilidades de linguagem e ortografia no ensino universitário.

A escola, por sua vez, por ser um dos principais espaços sociais onde ocorre a transmissão da cultura e de formação para a cidadania possui um papel essencial na formação de leitores. “Num país desigual como o nosso, de oportunidades e acessos desiguais à herança cultural da humanidade, a escola é fundamental para a transmissão dos bens de leitura”, afirma a escritora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Nilma Lacerda.

Nessa perspectiva, a biblioteca, especialmente a biblioteca escolar, pode desempenhar um papel estratégico e formativo – embora não seja o único espaço social de contato, uso e experiência da leitura. “Nas escolas, as bibliotecas são necessárias e importantes porque apresentam aos estudantes possibilidades de encontro com o livro”, afirma Britto, ressalvando que o tipo de trabalho desenvolvido pela escola pode intensificar ou limitar essa influência.

Entretanto, a maioria das escolas brasileiras sequer possui uma biblioteca e, apesar da lei, a expansão da rede de bibliotecas ocorre lentamente. Em 2014, 40% dos 145,8 mil estabelecimentos de ensino de ensino fundamental e médio públicos e privados contavam com uma biblioteca em suas dependências, segundo dados do Censo Escolar processados pelo portal QEdu a pedido de Educação.

No ano em que a lei foi aprovada, 37% desses estabelecimentos de ensino (155,2 mil) possuíam uma biblioteca. Ou seja, no período houve um aumento de três pontos percentuais do número desses equipamentos, levando-se em conta a diminuição do número absoluto de instituições escolares de ensino fundamental e médio no período.

Em contrapartida, para que a lei seja cumprida seria necessário construir 64,3 mil bibliotecas até 2020, hipótese pouco plausível, a não ser que as condições atuais se modifiquem e o investimento na implantação das bibliotecas escolares ganhe status de prioridade.

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Texto vago
O próprio texto da lei é considerado um fator que enfraquece seu potencial de implementação, ao caracterizar a biblioteca escolar como uma coleção de livros, materiais, vídeos e documentos em qualquer tipo de suporte destinados a consulta, pesquisa, estudo ou leitura. O acervo obrigatório, previsto na lei, é de um título por aluno matriculado, cabendo aos sistemas de ensino se encarregar da universalização das bibliotecas escolares.

“A lei fala em acervo e estabelece uma relação entre o número de livros e o de alunos, mas não aborda, por exemplo, a questão do espaço físico”, aponta a socióloga Christine Fontelles, consultora de educação do Instituto EcoFuturo e integrante do núcleo coordenador da Rede Temática Leitura e Escrita de Qualidade para Todos, do Grupo de Institutos, Associações e Empresas (Gife). “A lei é oportuna, mas é vaga”, resume Patricia Lacerda, gerente de Educação, Arte e Cultura do Instituto C&A, entidade que participa da Rede.

A ressalva quanto à ausência de menção ao espaço físico não é mera formalidade, na medida em que a existência de um local dedicado aos livros e à leitura pode impulsionar ações de formação a estudantes leitores. Por isso, uma referência explícita ao espaço físico ajudaria a consolidar esses equipamentos nas escolas. “Ao enfatizar o acervo, cria-se uma ambiguidade quanto à necessidade de existir um espaço físico específico para a biblioteca”, assinala Christine.

Uma evidência de desprestígio das bibliotecas, complementa a socióloga, é o espaço reservado a esses equipamentos nas plantas de prédios escolares propostas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE): entre 47 m² e 67m², dependendo do tamanho da escola e do número de alunos atendidos – o que, segundo o órgão, está sendo revisto para os projetos a serem executados no período 2016-2019, de modo que nas novas plantas, as dimensões deverão ser maiores.

Prioridade relativa
Outro complicador para que a lei seja levada a cabo é o fato de se atribuir aos estados e municípios, responsáveis pela gestão da grande maioria das escolas de educação básica, a incumbência de implementá-la. Nesse âmbito, o problema que se coloca é o fato de que, geralmente, as bibliotecas escolares não estão entre as prioridades dos gestores dos sistemas de ensino.

“Os estados e municípios teriam de fazer um investimento, mas os recursos disponíveis são limitados e as demandas, muitas”, analisa Fernando Burgos, coordenador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governos da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo.

Em nível federal existe o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), que desde 1997 distribui obras literárias, de referência, de pesquisa e outros materiais às escolas, a fim de formar alunos e professores leitores. Em 2014, foram distribuídos 26,8 milhões de volumes.

Para a infraestrutura física, uma possibilidade para levantar recursos são as fontes em nível federal, como aquelas oferecidas por meio do Plano de Ações Articuladas (PAR). Mas, nesse caso, ao construir o plano para sua rede, o gestor teria de priorizar as bibliotecas sobre outros itens.

Além do PAR, aponta estudo realizado por Burgos, existem várias alternativas – como destinar parte do Fundeb, o fundo de manutenção da educação básica, à criação e ampliação das bibliotecas, as emendas parlamentares ou mesmo recursos privados, oriundos de empresas locais ou engajadas em ações de incentivo à leitura.

Novamente, a efetivação dessas alternativas depende do valor que os gestores atribuem às bibliotecas escolares. “A realidade é que os estados e municípios não põem energia para expandir a rede de bibliotecas, por isso o avanço é lento”, sintetiza Burgos. Esse fato está ligado a uma visão da promoção da leitura e formação de leitores como um “apêndice” das atividades desenvolvidas na escola, caracteriza a socióloga Christine Fontelles.

A cultura em jogo
Para além das dificuldades de financiamento e gestão, existem aspectos culturais envolvidos na desvalorização da biblioteca enquanto espaço de aprendizagem no ambiente escolar.

“A biblioteca é o local para onde são enviados os alunos bagunceiros, quer dizer, é associada com punição. Também é um espaço onde não se pode conversar, onde é preciso guardar o silêncio. Por isso, raramente é vista como um ambiente acolhedor, onde se tem uma experiência agradável e enriquecedora”, comenta Marcia Wader, coordenadora da ONG A Cor da Letra, dedicada ao fomento à leitura.

“Este é um imaginário que precisa ser revertido”, reitera Marcia. Afinal, a biblioteca é um local de encontro de pessoas leitoras. “Nesse sentido, é um espaço em que valores se formam, tornam-se mais robustos e são compartilhados, compondo trajetórias individuais de leitores e a própria cultura”, afirma Christine Fontelles.

No entanto, de acordo com a mais recente edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, considerando o universo de frequentadores de bibliotecas, a biblioteca escolar é a mais acessada (55%). Considerando apenas os estudantes, 75% deles dizem que elas são consideradas um local de acesso a livros para pesquisas, não mais do que isso.

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Avanços limitados
Outro fator que prejudica a expansão da oferta de bibliotecas escolares é a fragilidade das políticas e programas na área de leitura – apesar dos avanços que vêm ocorrendo a partir do final da década de 1990. “O Brasil é um país que tem 500 anos, mas foi apenas na virada do século 21 que a leitura e a formação de leitores surgiram como um tema no campo das políticas públicas”, contextualiza Christine.

Então, principalmente a partir dos anos 2000, diversos tipos de iniciativas vêm sendo desenvolvidos, especialmente no âmbito da sociedade civil – desde ações de distribuição de livros, até projetos de formação de leitores, passando pela realização de estudos.

Nesse campo, destaca-se o Plano Nacional de Livros e Leitura (PNLL) com as diretrizes para uma política pública voltada à leitura e ao livro, com o objetivo de formar uma “sociedade leitora”. Um dos impactos positivos do PNLL foi a difusão de bibliotecas país afora; em 2012, 97% dos 5.570 municípios contavam pelo menos com uma biblioteca, mas não existem estudos que demonstrem em que medida essas bibliotecas cumprem um papel efetivo no desenvolvimento de práticas de leitura ou se resumem a funcionar como “depósitos de livros”.

“O PNLL ainda não tem força de lei. Não existe um orçamento para se atingir metas. Ele funciona mais como uma carta de intenções do que como um plano norteador de uma política”, contextualiza Patricia Lacerda.

Nesse sentido, a universalização das bibliotecas escolares é uma proposta positiva, mas corre o risco de se tornar uma iniciativa isolada, com eficácia limitada, especialmente se não estiver ancorada em políticas fortes, previstas para acontecer em longo prazo; a tendência é manter ou retroceder no que se refere ao número de leitores – como já vem ocorrendo. A afirmação é do professor e pesquisador Ezequiel Theodoro da Silva, da Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (Uniarp), e ecoa os resultados da 4ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, recém-lançada.

Em 2015, 56% dos brasileiros podiam ser classificados como leitores, ou seja, leram pelo menos um livro nos últimos três meses, proporção pouco superior à veri­ficada em 2011 (50%). Porém, o dado aferido em 2015 é apenas um ponto percentual superior àquele computado em 2007, quando se constatou que 55% dos brasileiros eram leitores.

“A dificuldade está no fato de que essa formação não depende apenas da escola e da alfabetização, mas sim de um contexto social no qual a leitura seja tomada como um valor, um direito de cidadania e uma prática de liberdade”, afirma o pesquisador. Esse quadro é, segundo ele, resultado de um processo histórico, ao longo do qual não se conseguiu estabelecer uma infraestrutura capaz de estimular atividades de leitura. “Nossa rede de bibliotecas é vergonhosa e as políticas geralmente não atingem os resultados a que se propõem”, conclui o pesquisador.

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O papel da escola
Embora a formação de leitores não dependa exclusivamente da escola, esta desempenha um papel essencial na formação deles. Em parte, porque, como mostram os resultados do Inaf, a escolaridade é um dos fatores que mais fortemente influenciam o alfabetismo.

De 2001, quando o indicador foi criado, a 2011, a proporção de brasileiros classificados como alfabetizados funcionalmente passou de 61% a 73%, proporção mantida no levantamento mais recente, realizado em 2015. Tanto a melhoria quanto a estagnação do indicador estão relacionadas à escola, explica Roberto Catteli, coordenador da Unidade de Educação de Jovens e Adultos da ONG Ação Educativa.

“O analfabetismo absoluto está caindo, o que é muito bom, e um grande número de pessoas tornaram-se funcionalmente alfabetizadas. No entanto, a maior parcela delas permanece no nível básico”, analisa Catteli. Em 2001, 34% dos brasileiros estavam no nível básico de alfabetismo. Em 2011, passaram a ser 47% – proporção que caiu para 42% em 2015.

Esses números, de acordo com o coordenador da Ação Educativa, indicam que a escola não tem se mostrado capaz de promover o avanço das habilidades de leitura dos estudantes. Por isso, a quantidade de pessoas plenamente alfabetizadas tende à estabilidade: 26% (em 2001 e em 2011), com queda para 23% no estudo de 2015. “Os avanços ocorreram nos níveis inferiores de alfabetismo, mas não se propagam para as faixas superiores, o que está relacionado com a qualidade da escola”, afirma.

Fortalecer a escola enquanto espaço de formação de leitores é um dos principais desafios que se colocam, portanto. “Quem vai para a escola aprende a ler e a escrever. O desafio é formar leitores que leiam outras coisas para além daquelas necessárias para a vida cotidiana e que estabeleçam relações entre as coisas que leem”, argumenta Britto, da Ufopa.

Uma estratégia para lidar com esse desafio é estabelecer uma articulação mais estreita entre as ações de promoção da leitura e a educação, tendo em vista a melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem, conforme preconizado pelo Plano Nacional de Educação (PNE), na meta 7. “A melhoria da qualidade da educação, a formação de leitores proficientes e de pessoas capazes de desenvolver um pensamento robusto e autoral passa, necessariamente, pela mudança da visão de que a formação de leitores é apêndice”, afirma Christine.

Para tanto, a escola tem de mudar, defende Britto. “A biblioteca será inútil, se não mudar o conceito de escola”, afirma. Ou seja, se a escola não for um lugar onde as crianças e jovens possam “ser e estar”: “A escola não pode ser apenas um lugar para assistir aula; ela precisa ser um lugar onde as crianças e jovens tenham tempo para ir à biblioteca, independentemente das aulas”.

O sucesso das iniciativas depende ainda da formação dos professores e dos bibliotecários, a fim de que eles sejam capazes de propiciar modelos e situações que funcionem como referência para os estudantes. “Uma das chaves está no bom preparo do professor, aqui tomado como o principal modelo ou espelho da leitura no contexto escolar. É preciso quebrar a perna dos livros didáticos, fugindo à sua lógica impositiva de estruturação de lições de língua portuguesa”, reitera Ezequiel Theodoro. Em resumo: como em muitas outras questões, o que resolve é ação contínua e não a simples edição de leis.

Autor

Marta Avancini


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