Coordenadora do CEPI e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP
Um discurso ideológico não aceita nada que o contradiga. Se tudo pode se tornar objeto de disputa, então nada neutro restará no mundo
Muitos professores se recusam a admitir que a docência é uma atividade políticaA superação das fases mais agudas da pandemia de covid-19 no Brasil e no mundo concluiu o acontecimento histórico de maior magnitude da era digital, responsável por dividir o cotidiano social em duas normalidades distintas: o velho e o novo normal, respectivamente aos cotidianos anterior e posterior às medidas mais rígidas de saúde pública para conter a transmissão do vírus. A realidade emergiu transformada, não apenas pela presença constante de máscaras, mas também pelo uso político do SARS-Cov-2: ao invés de o mundo se unir para combater o inimigo comum, ele se dividiu, levando a batalha para o discurso, contrapondo ciência e anticiência sob bandeiras partidárias.
A polarização em torno da pandemia não foi inédita nem inesperada. Não foi inédita, pois a manipulação da informação para uso ideológico sempre existiu. Não foi inesperada, pois as tecnologias digitais (em especial as redes sociais) fomentam a reprodução de todo tipo de ideologia, criando condições ótimas para a formação de bolhas. Some-se a isso o oportunismo político para todo tipo de divergência se tornar uma questão de posicionamento político, por mais objetivo e superado que seja, como o formato esférico do astro que habitamos.
Em formas extremas, um discurso ideológico não aceita nada que o contradiga. Se tudo pode se tornar objeto de disputa, então nada neutro restará no mundo. Se o ensino da não neutralidade é condenável, então o ensino, em si, deve ser eliminado. O totalitarismo não gosta do pensamento crítico: tudo se torna um dogma, uma crença a ser obedecida conforme a ideologia dominante. A possibilidade de escolha deixa de existir, assim como o modelo democrático.
Várias teses procuram explicar a ascensão de regimes que colocam em xeque o modelo de democracia liberal. Jan-Werner Muller, em sua obra What is Populism?, menciona como possibilidades uma enorme frustração das pessoas com governos cada vez mais distantes e tecnocratas, um sentimento de rancor ou vingança de grupos que se sentiram colocados de lado nos últimos anos, seja por conta dos efeitos da globalização, seja por conta de movimentos de inclusão que procuram confrontar privilégios, ou o fracasso das democracias de cumprir as suas promessas.
Nesse cenário, o ensino superior carrega uma enorme responsabilidade para a promoção do que Konrad Hesse chama de “vontade da Constituição”, ou seja, o desejo das pessoas de seguirem e respeitarem os compromissos fundamentais da sociedade escritos na Constituição. É vocação das universidades ser um espaço de confronto de ideias, no diálogo, na liberdade de expressão, na tomada de posição, na manifestação pública de ideias, contribuindo para a formação de cidadãos e a construção da comunidade. Nós, educadoras e educadores, temos um papel fundamental para o futuro do país, e isso não deve ser ignorado em nossa prática.
Muitos professores, porém, se recusam a admitir que a docência é uma atividade política. Dizem que seus posicionamentos são neutros, que evitam emitir juízos políticos em aula, que não trazem discussões políticas e que ensinam matérias que não são políticas. Paradoxalmente, quanto mais as universidades se afastam da política, mais favorecem a percepção de espaços tecnocratas e elitistas. Quanto mais se aproximam da política, favorecem uma percepção de serem espaços partidários e dominados por uma ideologia.
Argumentamos que não há como escapar da política no ensino superior. Como dizia o mestre Paulo Freire, educar é um ato político; não há neutralidade, ao contrário do que comumente se acredita. A política, como arte de tomar decisões coletivas ou decisões individuais na arena pública, permeia totalmente a docência. Seis manifestações exemplificam essa relação.
O ofício de ensinar exige a realização de escolhas a todo momento: o que ensinamos, como ensinamos, por que, para quem e para quê. Isso envolve o currículo, o conteúdo, os métodos, os objetivos de aprendizagem, a bibliografia, a organização da sala de aula, entre outros aspectos de um curso. Por trás da escolha do que é “fundamental” que um aluno aprenda, existe uma percepção do que a comunidade política precisa e de como ele será importante para ela;
Até mesmo os conteúdos que parecem mais herméticos e “blindados” à política escondem uma agenda ou interesses políticos de quem desenvolve as pesquisas. Conta-se que a escola pitagórica lutou contra o estudo dos números irracionais pelo fato de que, para ela, esses números comprometiam a relação harmônica entre as coisas no mundo;
Os documentos institucionais são projetos político-pedagógicos porque revelam escolhas políticas sobre como a comunidade estudantil será formada, quais objetivos serão perseguidos pela instituição e como as relações sociais se darão naquele espaço. Toda universidade é um empreendimento político por natureza, por constituir uma comunidade que é representativa, em alguma medida, de parte da sociedade, e tentar coordená-la em busca de fins comuns;
Os relacionamentos que o espaço da universidade cria com as pessoas que não estão no ensino superior também revela uma postura política. Das instituições que se voltam mais para a formação de profissionais – dialogando com o mercado de trabalho – para aquelas mais comunitárias – dialogando com o entorno próximo –, o que se vê é uma escolha mais ou menos consciente de como posicionar-se no mundo;
A decisão sobre quem ocupa o espaço da universidade também é política. A agenda das ações afirmativas, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal e afirmada em uma lei que completa 10 anos em 2022, é uma clara escolha política por mais inclusão e pela alteração de que corpos podem estar em uma sala de aula de ensino superior;
Por fim, não podemos esquecer que tudo, absolutamente tudo, o que a universidade proporciona gera impactos para uma proposta de comunidade e para a maneira como as pessoas convivem. As recentes faculdades corporativas (como a Faculdade XP), por exemplo, mostram uma clara decisão por um tipo de desenvolvimento e de profissional que precisa ser formado para a economia brasileira. Todas as escolhas refletem, portanto, valores, normas e interesses de quem está dando aula. E, por trás dessas decisões, individuais ou institucionais, sempre há uma ideologia. É ela quem estrutura e orienta a prática pedagógica, justamente por esses valores, desejos ou interesses políticos. Ao saber qual é o posicionamento do docente, não há espaço para uma eventual comunicação manipuladora. Isso faz com que todos contem com um diálogo aberto e democrático.
O espaço da universidade é, desse modo, indissociável de sua natureza política. Se o aprendizado se dá de forma ativa, o exercício democrático da cidadania também deve se dar em sala de aula, na voz que se dá para diferentes atores nas discussões e em todas as atividades acadêmicas.
A oportunidade de trazer o debate público para a sala de aula é não somente uma relevante oportunidade de aprendizagem, seja de habilidades técnicas, seja de competências interpessoais, seja da prática da tolerância, mas fomenta sobretudo o desenvolvimento de profissionais e, especialmente, de cidadãos
Ensinar é, portanto, um ato político.Trabalhamos em prol de quê, senão pela liberdade de pensamento, evolução do conhecimento científico e construção de uma sociedade melhor? É, contudo, condição que discutamos de forma coletiva o futuro almejado e os meios para que esse ideal seja atingido, pautados na pluralidade e diversidade de sujeitos e desejos.
*Marina Feferbaum é coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP, onde também é professora dos programas de graduação e pós-graduação. Guilherme Forma Klafke é professor da pósgraduação lato sensu da FGV Direito SP, onde também é líder de projetos no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI).
Por: Marina Feferbaum | 18/10/2022