NOTÍCIA
Erradicar o trote violento e desenvolver ações de acolhimento aos calouros demandam ruptura de cultura milenar de humilhações por meio de estratégia e engajamento de toda a comunidade acadêmica
Publicado em 02/10/2024
Por Sandhra Cabral
A Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou, em julho de 2024, projeto de lei que proíbe atividades de recepção que envolvam qualquer forma de coação, agressão ou discriminação, os chamados trotes violentos. A nova legislação – existem outras duas anteriores, editadas em 1999 e em 2015 – não só veta tais práticas, mas também exige que as instituições de ensino técnico e superior, públicas e privadas, adotem medidas rigorosas de prevenção e responsabilização.
“O trote é uma relação de poder”, adverte Antônio Ribeiro de Almeida Júnior, professor do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura (Esalq), da USP. “Um grupo político disputa o controle da situação. Nessa relação, o calouro que vai para a rua pedir dinheiro aos motoristas, nos semáforos, é o soldado raso em uma hierarquia que tem general”, prossegue o pesquisador, que estuda o tema desde 2001 e é autor de três livros sobre o assunto. O quarto livro está no forno e deve ser publicado em breve.
Para o especialista, as mudanças precisam ser estruturais, já que os trotes têm raízes profundas, hierárquicas e fortemente entrelaçadas com as questões de poder, e carregam consigo a estrutura de uma sociedade “que permite a corrupção, por exemplo, quando o indivíduo tem conhecimento, tolera e permanece em silêncio diante de ações criminosas”, fazendo alusão ao calouro que tolera a humilhação e constrangimento e não denuncia a prática abusiva e violenta para se adequar ao sistema.
Marta Relvas, professora universitária, psicopedagoga, membro da Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento, lembra que o trote universitário remonta a rituais arcaicos, refletindo uma hierarquia na qual os veteranos exigem que os calouros passem para o outro lado, para realizarem a transição do ensino médio para a graduação, por meio de um vestíbulo – passagem estreita de animais, como cavalos – e daí a palavra trote, originária do verbo trotar –, e por isso são chamados de bichos. Este ritual de iniciação, segundo ela, é reflexo de uma sociedade que valoriza a submissão e o sofrimento como formas de pertencimento e aceitação.
Marta explica que, “do ponto de vista neurocientífico, o prazer derivado do trote está ligado à liberação de dopamina, um neurotransmissor associado ao prazer. Isso cria uma dinâmica na qual o veterano manipula o calouro, humilhando-o para se sentir superior e permanecer conceituado pelo grupo”.
Ela alerta que essa predisposição à violência e ao bullying, algumas vezes, está presente em indivíduos que já possuem transtornos de conduta, e que o ambiente universitário, sem intervenções adequadas, pode amplificar essas tendências.
No entanto, Marta sugere que a transformação dessa cultura é possível, mas requer um esforço coletivo e institucional e defende que “as universidades promovam ações solidárias, que incentivem a transformação de emoções negativas em afetividade, e que criem uma cultura de acolhimento através de semanas iniciais empáticas, workshops, e palestras que discutam os impactos do bullying e promovam a saúde mental”. Neste sentido, a palavra trote deveria ser abolida.
Erika Neves, psicóloga clínica e psicopedagoga, complementa essa visão ao abordar os impactos psicológicos dos trotes violentos. A especialista destaca que os estudantes que passam por tais práticas ficam suscetíveis a sofrer de ansiedade, baixa autoestima, ou mesmo podem desenvolver traumas que se manifestam por meio de isolamento social e distúrbios do sono.
“As ações solidárias ou sociais, ao contrário, promovem a saúde mental ao aumentar os níveis de ocitocina, o hormônio do amor, fortalecendo os vínculos afetivos e o senso de pertencimento dos alunos”, destaca Erika. E aponta que a resistência à mudança na cultura do trote muitas vezes se deve à força do hábito e à tradição: “a vingança dos veteranos que foram humilhados e passaram por situações vexatórias, constrangedoras ou violentas, enquanto calouros, se perpetua ao longo dos anos”.
Para Erika, as universidades têm um papel crucial na erradicação dos trotes violentos. Uma política eficaz deve envolver toda a comunidade acadêmica em um compromisso com a cultura de paz, através de regras claras, ações regulares pró-inclusão, e a promoção de valores humanistas e empáticos.
Nesse sentido, Almeida Júnior, da Esalq, é enfático ao garantir que o trote deve ser coibido e que “os mais velhos precisam ser responsabilizados, expulsos da universidade e, em caso de dano físico ou mental ao calouro, também responderem criminalmente”. Para o pesquisador, nenhum tipo de trote deveria ser permitido ou incentivado pelas universidades, nem mesmo o solidário ou social, porque, mesmo nestes, o calouro vê-se obrigado a participar de ações, muitas vezes, sem querer. A força do grupo e a necessidade de ser aceito é que fazem com que muitos alunos iniciantes aceitem tais ações, a contragosto.
Os especialistas concordam, no entanto, que a transformação dessa cultura começa na universidade, mas depende também de uma mudança mais ampla na sociedade, na qual o desenvolvimento de competências socioemocionais e a promoção da paz se tornem valores centrais na educação, desde a básica. Como afirma Érika, “projetar valores humanos salva o coletivo,” e é essa a missão que as universidades devem abraçar para garantir que o trote, como expressão de poder e humilhação, seja finalmente substituído por práticas que promovam o bem-estar e a dignidade de todos os estudantes.
Diante desse cenário, o que as universidades vêm fazendo para coibir o trote violento e gerar nos campi a cultura de paz?
Para evitar o trote violento no início de anos letivos na graduação, embora eles ainda sejam registrados e, por vezes, não sejam divulgados ou denunciados pelos calouros, várias universidades buscam mudanças e, de início, apoiam trotes solidários e ações sociais, visando transformar a recepção dos calouros em oportunidades para promover valores como cidadania e bem-estar comunitário.
Na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o modelo de recepção solidária foi estabelecido
em 2023, após a retomada das atividades presenciais pós-pandemia. São três dias de eventos, que vão de recepção com palestras nos auditórios ao tour pelos campi, até uma gincana que visa integrar alunos novos e veteranos. “O grande desafio está na mobilização dos campi Higienópolis, Alphaville e Campinas, envolvendo mais de 20 setores da universidade, nos dias de atividades, garantindo que a experiência seja equitativa para todos os alunos, independentemente do período de aula”, afirma Enzo Bissoli, coordenador de desenvolvimento discente e de carreira da instituição
Na Uniarnaldo Centro Universitário, em Belo Horizonte, o trote violento foi suprimido pela própria comunidade acadêmica, composta majoritariamente por alunos que trabalham durante o dia. “As tradicionais modalidades de trote nunca tiveram um grande espaço. E as poucas vezes que ocorreram, a própria comunidade acadêmica não aderiu e, inclusive, levou o tema para o debate com a direção”, explica Flávio Esdeva, diretor acadêmico. Desde 2017, a Uniarnaldo promove acolhida afetuosa e leve, com momentos de interação entre os calouros e a equipe administrativa, criando um ambiente de integração sem sobrecarregar os novos alunos com informações, com o objetivo de promover a empatia.
Também com a predisposição de eliminar os trotes tradicionais, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) deu início à recepção solidária em 2014. A partir de 2016, a universidade aprimorou essas ações sob o nome “Recepção aos novos estudantes”, envolvendo atividades culturais, oficinas e palestras, sempre em diálogo com a comunidade acadêmica. Pedro Aguerre e Rafael Jenuino, da Pró-Reitoria de Cultura e Relações Comunitárias, explicam que a proposta é alinhar a recepção aos valores de cidadania e respeito à dignidade, em oposição a “situações inapropriadas que muitas vezes se fazem presentes dentro de uma cultura cotidiana com pouca atenção à diversidade social, à mulher e às diferentes condições sociais, reflexo de uma cultura elitista e patriarcal que produz racismo, sexismo e discriminação, ainda em lenta transformação na sociedade”.
Ambos relatam que, para trilhar o caminho de aprimoramento das recepções estudantis, a princípio foi necessário estabelecer um orçamento para materializar as possibilidades de realizar as atividades, contratações e compras. Por parte da comunidade acadêmica as ideias e o engajamento foram sendo conquistados gradualmente.
Já na PUC-PR, a implementação do Trote Solidário se deu em 2009. Adrielle Druciak, especialista de Identidade Institucional, responsável pelo relacionamento com os movimentos estudantis da instituição, afirma que os trotes solidários ocorrem por meio de campanhas que, ao longo dos anos, tiveram formatos diversos e beneficiaram diferentes instituições, sendo que as ações vão desde doação de sangue, práticas de voluntariado a arrecadação de alimentos. “O formato do trote é construído em diálogo com diferentes atores, especialmente as instituições parceiras que são beneficiárias dos donativos arrecadados.”
Bem antes, em 1999, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) proibiu o trote violento, promovendo recepções de calouros focadas em ações comunitárias, como doação de sangue e plantio de mudas. A Unesp, com 34 unidades distribuídas por 24 cidades paulistas, concede autonomia para que cada campus crie projetos de recepção de acordo com suas características.
O que a administração central da Unesp faz é estruturar políticas educativas no sentido de induzir maior integração dos ingressantes, como no caso do Programa de Mentoria Acadêmica, e de enfrentamento a práticas violentas e discriminatórias como no Acolhe Unesp. Este último funciona como um centro de apoio e ajuda a vítimas de práticas violentas, tais como assédios e preconceitos. E oferece, por meio da Comissão Central de Acolhimento, a possibilidade de denúncias que podem ser feitas por telefone, e-mail ou WhatsApp.
O trote solidário e ecológico rendeu, no ano de 2012, aos calouros e veteranos ligados ao Diretório Acadêmico de Biologia Marinha da Universidade Santa Cecília (Unisanta), de Santos, em parceria com o Instituto Ecofaxina, o Prêmio Trote da Cidadania, pela participação em uma ação voluntária de limpeza e descoberta em ambiente marinho.
A Unisanta implementou os trotes solidário e ecológico há mais de 20 anos. A instituição converteu a tradicional recepção dos calouros em um momento de engajamento social e conscientização ambiental. “A ideia surgiu para incentivar os novos alunos a se envolverem em atividades que, além de acolhê-los no ambiente acadêmico, também os conscientizassem sobre a importância de práticas saudáveis e solidárias, contribuindo assim para sua formação como profissionais e cidadãos”, explica o professor Marcus Teixeira Penteado, diretor de marketing da Unisanta. As ações incluem campanhas de doação de leite, roupas e mantimentos, além de coleta de microlixos nas praias e arrecadação de lixo eletrônico.
Na Universidade Mackenzie, a recepção solidária contribui para a redução da evasão escolar e fortalece o senso de pertencimento entre os estudantes. A PUC-SP também reporta ganhos significativos, como a redução das práticas violentas e maior engajamento dos estudantes em atividades sociais, além da solidificação de elos com os centros acadêmicos, baterias, atléticas e coletivos. “As celebrações que ocorriam em áreas externas à universidade, hoje, estão dentro dela. E elas estão ancoradas numa visão de respeito à diversidade, de serviço à sociedade, e engajamento nas questões sociopolíticas mais amplas do país”, conta Aguerre.
Na Unisanta, o Trote Solidário é avaliado positivamente, com crescente engajamento dos estudantes e impacto nas causas sociais, como a prevenção do câncer de mama e aumento nas doações de sangue. Para desenvolver essa cultura, investiu em campanhas de conscientização e na formação contínua dos alunos e funcionários sobre a importância desses princípios. Penteado lembra que, para manter o trote solidário, a instituição adotou mecanismos de institucionalização que incluem a criação de comitês específicos para o planejamento e execução das atividades a cada novo semestre. A participação dos centros acadêmicos e o envolvimento de alunos veteranos também ajudam a preservar essa tradição ao longo dos anos.
Sheila Ladany, especialista em marketing e que durante sete anos acompanhou a questão do trote na Faculdade CET, do Piauí, disse que a instituição envolve os representantes de turmas e o setor de psicopedagogia para planejar as ações nas quais são arrecadados produtos de higiene pessoal e alimentos, entre outros itens, a serem destinados a casas de repouso de idosos, creches e outras entidades filantrópicas.
“Na CET os alunos se planejavam para a coleta de doações e para levá-las a instituições, com auxílio da universidade. Nesses locais, fazem diversas atividades, envolvendo o aluno que acabou de chegar à instituição. Em geral, os veteranos colocam os calouros para trabalhar e desenvolver brincadeiras como baile e lanches da tarde para os moradores em casas de repouso, e entregas de mantimentos e brinquedos nas creches, vestidos de super-heróis”, relata Sheila.
Na opinião dela, faculdade não deve ter medo de perder aluno que não aceita o trote social. “Quem não se adequar à cultura de recepção ao calouro sem violência e sem constrangimento deve ser convidado a pedir transferência, porque isso fortalece a cultura de paz, a tranquilidade e sentimento de segurança e pertencimento no campus, além de reforçar a imagem positiva da faculdade”, adverte Ladany.