Um olhar global para as políticas, diálogos e transformações da universidade
A produção científica é parte integrante da disputa pelo modelo civilizatório que marcará o século 21
Ilustração: Shutterstock
Por Miguel Copetto, de Portugal*
Historicamente, o conhecimento sempre constituiu uma forma de poder. A diferença do presente reside na escala e na velocidade com que esse poder é produzido, apropriado e mobilizado. O avanço tecnológico, a digitalização e a globalização das redes de comunicação transformaram o conhecimento em um ativo estratégico, comparável à energia ou à segurança alimentar.
A inteligência artificial, a análise de dados em larga escala e a concentração do poder informacional nas grandes plataformas digitais introduziram assimetrias e dependências estruturais nos sistemas de ensino e pesquisa. A soberania de um país ou de uma região mede-se hoje também pela sua capacidade de gerar e gerir conhecimento autônomo, ético e validado por pares.
Nesse contexto, a educação superior é simultaneamente um campo de cooperação e de competição geopolítica. As universidades, os laboratórios e os centros de pesquisa tornaram-se atores diplomáticos indiretos, contribuindo para definir agendas globais em áreas como a transição energética, a regulação tecnológica ou a governança da ciência aberta. A produção científica é, assim, parte integrante da disputa pelo modelo civilizatório que marcará o século 21.
A aceleração das transformações tecnológicas e sociais é acompanhada por um aumento da incerteza e da imprevisibilidade. As universidades operam em um ambiente em que as condições de estabilidade — econômica, institucional e política — tornaram-se exceção. Essa volatilidade traduz-se em três tipos de vulnerabilidades.
Em primeiro lugar, a vulnerabilidade econômica, decorrente da pressão financeira sobre as instituições, da competição global por talentos e da crescente dependência de fontes externas de financiamento, públicas e privadas. Em segundo lugar, a vulnerabilidade tecnológica, resultante da automação, da substituição de tarefas cognitivas por sistemas algorítmicos e da erosão do valor social do trabalho acadêmico. E em terceiro lugar, a vulnerabilidade política, expressa na instrumentalização da ciência e da educação, na redução da autonomia institucional e na crescente subordinação do conhecimento a agendas ideológicas ou partidárias.
Essas vulnerabilidades convergem em um risco maior: a perda da confiança pública na universidade como espaço de verdade e de racionalidade. Sem essa confiança, o conhecimento perde legitimidade e transforma-se em mera informação. O papel geopolítico da universidade consiste, precisamente, em restaurar essa legitimidade — fundando a autoridade do saber no rigor, na evidência e na responsabilidade ética.
A natureza pública do conhecimento impõe à universidade uma dupla responsabilidade: resistir à captura ideológica e econômica do saber e garantir sua utilidade social. A universidade não deve substituir os poderes públicos, mas contribuir para que estes decidam melhor. Não é um ator político, mas um ator epistêmico e moral, cuja força reside na independência e na lucidez.
A missão universitária assenta na tríade ensino, pesquisa e serviço à comunidade. Mas sua relevância geopolítica provém de uma quarta dimensão: a capacidade de intervir no espaço público como consciência crítica esclarecida. Isso implica cultivar a liberdade acadêmica, mas também o dever de participar da deliberação coletiva, sem militância e sem neutralidade indiferente.
Ser ator internacional não significa assumir protagonismo diplomático formal, mas exercer influência intelectual por meio da cooperação científica, da mobilidade acadêmica e da defesa universal do método científico. Nesse sentido, a universidade é, ao mesmo tempo, uma instância de mediação cultural e um instrumento de coesão civilizatória.
A relação entre a América Latina e a Europa oferece uma oportunidade única para renovar a cooperação acadêmica com base em princípios de reciprocidade e de soberania cognitiva compartilhada. Ambas as regiões enfrentam desafios distintos, mas complementares: desigualdade social e demográfica, pressão migratória, transição energética, digitalização, sustentabilidade e governança democrática.
Um Espaço Comum de Educação Superior ALC-UE permitiria articular esses desafios dentro de um quadro estratégico de colaboração científica e institucional. Sua concretização exigirá a consolidação de quatro eixos fundamentais: mobilidade recíproca, reconhecimento mútuo de títulos e qualificações, alianças científicas estruturadas e solidariedade acadêmica. Mais do que um exercício de diplomacia cultural, esse espaço birregional representaria uma estratégia de soberania intelectual frente à dependência crescente das agendas científicas impostas por potências extrarregionais. Ao reforçar a produção e o intercâmbio de conhecimento próprio, América Latina e Europa poderiam afirmar-se como um polo de equilíbrio e de racionalidade em um mundo fragmentado.
A coerência entre o discurso e a prática exige que as universidades apliquem a si mesmas os princípios que defendem. A transformação necessária é, ao mesmo tempo, estrutural e cultural. Internamente, as instituições devem repensar seus modelos de governança, os critérios de mérito e as formas de avaliação científica, priorizando a relevância social e o impacto ético do conhecimento. Devem ainda adaptar-se a um contexto de recursos limitados, sem comprometer a qualidade nem a independência acadêmica.
No plano pedagógico, a universidade deve formar cidadãos capazes de compreender a complexidade, distinguir o essencial do acessório e agir com discernimento. A formação superior não pode reduzir-se à empregabilidade imediata: deve cultivar a autonomia intelectual, a alfabetização científica e a capacidade de juízo ético.
Externamente, a universidade deve reforçar sua função de mediação social, participando na formulação de políticas públicas, na inovação tecnológica e na construção de uma economia baseada no conhecimento. Mas essa intervenção deve ser orientada por um princípio de proporcionalidade: a universidade contribui para o poder político, mas não o substitui; aconselha, mas não governa.
As universidades nasceram antes dos Estados modernos e sobreviveram a impérios, crises e guerras. Sua permanência explica-se por uma vocação que transcende a conjuntura política: a de preservar a razão, a memória e a possibilidade de futuro. Enquanto outras instituições se organizam em torno do poder, da riqueza ou da fé, a universidade organiza-se em torno de um princípio imaterial e exigente — a liberdade de pensar.
Num tempo em que a informação se confunde com o conhecimento e a técnica com a sabedoria, a universidade é uma das últimas fronteiras da lucidez crítica. Não deve competir com o ruído do presente, mas oferecer uma linguagem diferente: a da análise, da evidência e da responsabilidade. É nesse terreno que reside sua força moral — não no número de publicações, mas em sua capacidade de gerar entendimento e servir à humanidade.
O verdadeiro risco existencial não é a inteligência artificial, mas a abdicação da consciência. Uma universidade que renuncia à dúvida e à verdade deixa de ser um espaço de criação para se tornar um eco do poder. Reafirmar o conhecimento como bem comum é, por isso, um imperativo civilizatório.
As universidades europeias e latino-americanas compartilham uma tradição que une o humanismo à ciência, a liberdade à responsabilidade e a diversidade à cooperação. Nessa herança reside a possibilidade de um novo contrato de confiança entre saber e sociedade. Transformar o conhecimento em instrumento de diálogo, desenvolvimento e paz é mais do que uma tarefa acadêmica: é um ato de resistência cultural e de esperança racional.
As universidades não detêm o monopólio da verdade, mas têm o dever de buscá-la. E é dessa busca, paciente e crítica, que depende a dignidade do futuro comum.

*Miguel Copetto é diretor-executivo da Associação Portuguesa de Ensino Superior Privado. O texto acima é resultado de reflexão apresentada no âmbito da VI Cúpula Acadêmica América Latina–Caribe–União Europeia, realizada em Bogotá, em outubro de 2025. Copetto passa a integrar o time de articulistas da Ensino Superior. Na coluna Cartografias do setor, trará um olhar lusófono e global sobre políticas, diálogos e transformações da universidade no século 21.
Por: Cartografias do setor | 21/11/2025