Quando o tráfego insuportável cessa o movimento, razão de ser do automóvel, a parada obriga a olhar o outro, ainda que sob o signo de seu veículo
Publicado em 10/09/2011
Em Não verás país nenhum (1981), Ignácio de Loyola Brandão refere-se ao “Notável Congestionamento”. Num futuro caótico, em meio a grandes desastres ecológicos, as ruas da cidade de São Paulo ficam repletas de carros parados. Os motoristas perplexos, no trânsito intransitável. O protagonista e narrador, o professor Souza, era um dos poucos habitantes a não possuir carro, por opção. Queria ser livre, pegar um táxi ou um ônibus e mergulhar na leitura durante o trajeto, não ter de prestar atenção aos outros carros, desviar-se, correr, frear, descobrir um espaço para estacionar.
Quando o Notável Congestionamento aconteceu, veio o colapso urbano. Souza testemunhou o espanto geral, o desespero perante o fato de que os automóveis não circulariam mais. Muitos tentaram resistir, ainda ficaram dentro do veículo durante uma, duas semanas. Os familiares trazendo-lhes roupa e alimento. Finalmente, vencidos, despediam-se do carro aos prantos, como se fosse um parente morto.
A visão de um engarrafamento monstruoso e insolúvel é um dos pesadelos constantes do homem contemporâneo. Um pesadelo que adquira vivacidade e colorido no plano da ficção permite-nos tomar consciência do que até aquele momento é impensável no plano da realidade. A imagem de um motorista chorando sobre o carro “defunto” é mais eloquente do que argumentos lógicos ou frias estatísticas. E nos ensina algo relevante sobre situações-limites produzidas pelo progresso material.
Outros dois textos literários mostram veículos que se multiplicam, se acumulam e se imobilizam, gerando nos personagens sentimentos contraditórios.
É do escritor Julio Cortázar (1914-1984) o conto “A autoestrada do sul”, no livro Todos os fogos o fogo, de 1966. Quando a história começa, já encontramos um gigantesco engarrafamento na estrada que leva a Paris. Tarde quente de domingo, milhares de pessoas “a um regime de caravana de camelos”.
Os personagens da narrativa, de nomes desconhecidos, se veem apenas como motoristas de seus respectivos carros: a moça do Dauphine (automóvel de baixo preço, confortável e seguro), o engenheiro do Peugeot 404 (modelo de porte médio), o homem pálido e silencioso do Caravelle (automóvel conversível, de duas portas), o casal do Peugeot 203 (carro que já tivera momentos de glória)… O catálogo ia se completando: Mercedes Benz, Volkswagen, Skoda, Morris Minor, DKW, Anglia, Volvo, Porsche… E é tal a identificação entre carro e homem, ou tão forte a troca metonímica, que os rapazes do Simca, para se divertirem, começam a tratar de Taunus o motorista do Ford Taunus, e de Floride o homem gordo que dirige o Renault Floride.
O relacionamento entre os ocupantes dos diferentes carros não estava previsto no programa. Na estrada, cada um cuide do seu volante. A circunstância, porém, obriga-os a parar, a olhar para os lados, a abrir as portas, a conversar. Gestos de solidariedade se esboçam. Mas o que os une, na verdade, é “a sensação contraditória de enclausuramento em plena selva de máquinas concebidas para correr”. O menino que estava no Taunus dormiu na primeira noite sem largar o carrinho de brinquedo. Os adultos também não podem se soltar, nem por brincadeira, dos seus automóveis.
Vez ou outra, a fila anda alguns metros. Avanços que quase nada significam diante dos quilômetros e quilômetros existentes entre os carros e seu destino. Durante mais tempo do que se poderia calcular (meses talvez…), criou-se uma pequena comunidade humana. Laços se formaram. O 404 e Dauphine tornaram-se amantes, Caravelle se suicidou, amizades nasceram.
Mas um dia o engarrafamento acaba inexplicavelmente, como sem explicação começara. Os carros voltam a trafegar. Desfaz-se aquele grupo de anônimos que, por um tempo, experimentou a ilusão da convivência. O conto termina com a rotina do estranhamento:
Nada mais se podia fazer a não ser entregar-se à marcha, adaptar-se mecanicamente à velocidade dos automóveis em redor, não pensar. […] sem que já se soubesse bem para que tanta pressa, por que essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente.
De onde viemos e para onde vamos? Essa dupla pergunta tão apropriada numa aula de filosofia, em referência ao sentido da vida humana, é talvez mais prosaica, mas não menos filosófica, no contexto de nosso deslocamento físico em ruas e estradas. Puxar o freio de mão é dispor-se a repensar a existência. A leitura que educa nos alerta para os becos sem saída em que entramos quando nos entregamos à pressa impensada.
O conto “O encalhe dos trezentos” do escritor e jornalista paranaense Domingos Pellegrini (1949 – ), do livro O homem vermelho (1977), relata outra formidável paralisação, desta vez numa estrada brasileira, na década de 1950. A chuva, o lamaçal, os caminhões atolados. Sete dias com suas noites, em que também os motoristas, como no texto de Cortázar, são identificados pelas marcas dos veículos que dirigem – Ford, Chevrolet, GMC… – mais do que por seus nomes. O encontro imprevisto, em meio à tremenda dificuldade, serviu, porém, para que tomassem consciência de si mesmos, como desabafou um dos personagens, no final do relato:
[…] motorista é uma raça desgraçada, um sai enquanto outro chega, um vai enquanto outro volta […]; profissão desencontrada, todo dia se cruzando e nunca se encontrando a não ser em mesa de restaurante ou bica d’água; então até que aquele atoleiro tinha serventia, porque era a primeira vez – era ou não era? – que se uniam, era a primeira vez que estavam unidos.
Nos dois contos, o mesmo drama humano. Seja na estrada francesa, seja na brasileira, a dificuldade do encontro genuíno, do diálogo. Foi preciso que todos parassem, a contragosto, para recuperar o gosto da solidariedade. Nas duas narrativas, em que a estrada simboliza o caminho da vida, lemos uma possível recomendação. Que a escola seja um “estacionamento” no qual, sem rótulos de qualquer tipo, possamos dirigir nossas vidas no melhor dos rumos, protegendo duas prerrogativas: o respeito à individualidade e o sentido da coletividade.
* Gabriel Perissé(www.perisse.com.br) é doutor em Filosofia da Educação (USP) e professor do Programa de Mestrado/Doutorado da Universidade Nove de Julho (SP)