NOTÍCIA
Rico, famoso e sem estudo? Não mais. Pelo menos é o que respondem as divisões de base dos grandes clubes brasileiros sobre o que esperam de seus atletas: dedicação ao gramado, mas também desempenho na educação formal
Publicado em 04/07/2012
O sonho é de fama e riqueza, mas nem todos os jovens atletas sairão do anonimato; valorizando a educação, os clubes tentam formar o jogador e o cidadão |
Barbosa encerrou a carreira em 1962, depois de atuar cerca de 20 anos por clubes profissionais e pela seleção. Uma década mais tarde, quando o Brasil já havia superado a tragédia de 1950 e conquistado três títulos mundiais, ele retornava todas as semanas ao palco do “Maracanazo”, onde trabalhava como bilheteiro. Essa trajetória simbólica é usada pelo documentário Passe livre (1974), de Oswaldo Caldeira, como um exemplo da fragilidade do jogador de futebol no Brasil. “No fim da carreira, o jogador se sente perdido”, diz o narrador do filme. “Acostumados ao sucesso e despreparados para qualquer outra atividade, muitos acabam mendigos, depois de recusarem ou não conseguirem profissões mais modestas.”
Embora seu principal objetivo seja o de mostrar a contribuição do ex-jogador Afonsinho à luta por direitos trabalhistas da classe, a equipe de Passe livre também investiga o círculo vicioso que levava atletas como Barbosa, sem escolaridade ou outra formação profissional, a enfrentar dificuldades no fim da carreira nos gramados. E, para obter respostas, visita as divisões de base de alguns clubes – conhecidas naquela época como “escolinhas”. “É por ali que milhares de meninos fazem a sua primeira tentativa de entrar no futebol”, explica o narrador. Um desses meninos explica o motivo da atração: “Quero seguir no futebol para ganhar dinheiro, ora. Tem jogador que não sabe nem escrever e ganha um dinheirão”.
Escolinhas
“A maioria é tudo pobre, tudo filho de operário, já vive com dificuldade”, afirma o ex-jogador Neco, então diretor da “escolinha” do Botafogo, do Rio de Janeiro. As imagens não deixam nenhuma dúvida sobre a ironia do apelido: filtros para a captura de atletas entre filhos da classe trabalhadora, as tais “escolinhas” nada contribuíam para a educação dos meninos. Ao contrário: elas tendiam a afastá-los da escola para que se dedicassem integralmente ao futebol. Um dos efeitos dessa falta de atenção com os estudos está traduzido na história emblemática de Barbosa, entre inúmeros outros ex-jogadores e outros tantos que nem mesmo conseguiram fazer carreira no futebol, mas comprometerem seu futuro porque pararam de estudar para buscar o sonho. Mesmo os bem-sucedidos ajudam a criar um círculo vicioso: ídolos populares que se tornam bem remunerados sem investir na escolaridade, eles sinalizam que estudar talvez seja dispensável para obter sucesso na vida, levando crianças e jovens – como o menino do depoimento no parágrafo anterior – a assimilar esse recado.
Para conferir se as divisões de base dos grandes clubes brasileiros ainda se parecem com as “escolinhas” dos anos 1960 e 1970, a revista Educação fez um levantamento de como são tratados, em relação à educação formal, os meninos que sonham com uma carreira profissional nos 20 atuais integrantes da Série A do Campeonato Brasileiro. Nessa elite de aspirantes, que reúne cerca de 3.700 jovens dos 10 aos 20 anos, nota-se uma clara evolução: pressionados pelas federações de seus estados a só manter em suas equipes infantojuvenis quem esteja matriculado na Educação Básica ou tenha concluído o ensino médio, os clubes adotam o discurso de incentivar a continuidade dos estudos e, na maioria dos casos, garantem atribuir a alguns de seus profissionais – o gerente das categorias, uma assistente social, uma psicóloga ou uma pedagoga – a responsabilidade por acompanhar o desempenho escolar dos atletas.
Nos exemplos mais positivos, os próprios clubes mantêm uma escola em suas dependências, com base no diagnóstico de que seria muito difícil para os atletas acompanhar o calendário de um estabelecimento de ensino convencional, devido aos horários de treinamento, aos deslocamentos clube-escola e às viagens para disputar competições fora da cidade. É o caso do Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, e do Cruzeiro, de Belo Horizonte. No primeiro, cerca de 90% dos atletas das categorias de base frequentam o Colégio Vasco da Gama, que oferece turmas do 6º ano do ensino fundamental até o 3º ano do ensino médio. “A escola é aberta a todos, mesmo aos que não moram no clube, e atende a todas as modalidades”, explica a assistente social Maria da Glória Gomes, que desenvolveu o projeto do colégio. “Temos atletas do remo, do basquete, do vôlei, da natação.”
Entre o clube e a família
Maria da Glória começou a trabalhar no Vasco em 1989 – ano em que o clube conquistou o seu segundo título brasileiro, em uma final contra o São Paulo – e notou rapidamente a dificuldade enfrentada pelos atletas para frequentar a escola. Demorou, no entanto, para que o projeto do colégio fosse aprovado, em 2003, inicialmente por meio de um convênio com uma escola particular. Em março de 2004, foi autorizado pela Secretaria da Educação a funcionar de maneira autônoma. Desde 2009, o registro é definitivo. Em sete anos de atividades, o Colégio formou 240 alunos (173 do EF e 67 do EM), entre eles Phillipe Coutinho, que já atuou na seleção brasileira e foi transferido em 2010 para a Internazionale de Milão (Itália), e Alan Kardec, hoje no Santos. No atual ano letivo, há 287 alunos matriculados.
“Quando o atleta chega à categoria mirim, vamos cuidando da escolaridade dele na faixa etária certa”, afirma Maria da Glória. “Quando ele vem um pouco depois, às vezes tem uma escolaridade muito defasada. Aí, ele já começa a se sentir mal no grupo. Pode ser que não tivesse motivação da família para estudar. E a família é muito importante nessas questões. Sempre peço a colaboração dos pais, mas muitos passam a responsabilidade para o clube. Então, precisamos cuidar de tudo.” Maria da Glória diz ter, no atual ano letivo, quatro atletas com muita dificuldade de aprendizado e chegou a solicitar uma avaliação neurológica para “saber se existe algum comprometimento”. É ela quem faz, pessoalmente, o acompanhamento da frequência e do desempenho dos atletas de futebol. “Às vezes, eles têm avaliações em dias de jogos. As federações não se importam muito com isso”, observa.
A primeira escola a ser montada dentro de um grande clube, no entanto, foi a do Cruzeiro, há oito anos. Em parceria com um estabelecimento privado, o clube subsidia os estudos dos atletas, do 8º ano do EF ao 3º do EM. “Cedemos as instalações e a escola traz todo o corpo logístico”, explica Roger Galvão, diretor das categorias de base. “Temos um psicólogo que faz a ponte entre a escola e os supervisores das categorias para acompanhar o rendimento dos jogadores. O entendimento do Cruzeiro é o de que todos nós, colaboradores de campo e do setor administrativo, temos a conotação de educadores. A todo momento questionamos, sugerimos e encaminhamos à escola. Isso é preponderante em nosso dia a dia.”
Estudos interrompidos
Galvão afirma que os atletas respeitam as condições impostas pelo clube para manter os estudos, porque “oferecemos uma formação atlética e de ser humano a ser inserido na sociedade”, mas admite alguma resistência. “Temos jogadores vindos de diversas regiões do país, de contextos sociais diferentes. Encontramos atletas que não têm o costume de ir à escola, praticar o dever de casa e ter outras atividades acadêmicas. Fazemos um trabalho para que isso seja absorvido. Nosso calendário respeita a legislação, mas conseguimos fazer um ajuste que leva em conta a importância dos treinos e das competições da temporada. E a escola também nos oferece o entendimento de sintonia. Os educadores transmitem alegria e a motivação de estar com os nossos jogadores.”
Todos os 95 atletas em idade escolar são alunos da escola do CT em virtude da “compatibilidade com a carga horária de treinamento”, que dificultaria a frequência em uma escola convencional. “Aqui, nos propomos a fazer um trabalho sistematizado e adaptado a cada idade”, afirma. Mas, embora o clube empreenda esforços para “o entendimento da importância de concluir o EF e o EM”, reconhece que não tem como obrigar os jogadores maiores de 18 anos a continuar estudando. Esse é o momento, segundo Galvão, em que inúmeros jogadores brasileiros interrompem os estudos. “Muitas vezes eles chegam tardiamente aos clubes, já com defasagem no EF. E aí, ao completar 18 anos, esses atletas optam por não mais estudar.”
Já o Figueirense, de Florianópolis, optou por inserir os cuidados com a Educação Básica dos atletas no âmbito do programa Jovem Furacão, planejado em 2011 e lançado em março deste ano como fruto de parceria com uma empresa privada que já havia criado um grupo de gestão profissionalizada do clube. “Desde o início, pensamos em atender às demandas dos atletas como jovens cidadãos”, afirma Gustavo Sá, coordenador de projetos do Figueirense. “A ideia é fornecer a eles uma formação que vá além da esportiva. Foram relacionadas competências a serem desenvolvidas caso o atleta se frustre com o futebol. Temos uma porcentagem muito grande de jovens que não se tornam profissionais. Queremos oferecer experiências diferentes, para que eles conheçam outros caminhos.”
No Jovem Furacão, um grupo de profissionais – psicólogos, um pedagogo e uma assistente social – faz a ponte com as escolas onde estudam os atletas das categorias de base. Um outro pedagogo, funcionário do clube, auxilia na tarefa. “Temos uma parceria com um centro universitário que mantém um curso de Pedagogia”, acrescenta Sá. “Quando os meninos precisam de reforço escolar, os universitários são procurados para ajudar. Queremos também desenvolver competências que envolvem a estrutura familiar e a cultura, além de cuidados com a saúde, ensino de idiomas e ‘media training’ – a relação com a imprensa e com as redes sociais. Temos muitos exemplos de atletas que não têm uma boa conduta nas redes sociais, e tentamos orientá-los. Há também a atenção para o pós-carreira. Muitos se tornam jogadores e ganham um bom dinheiro, mas a carreira é curta e eles não costumam ter a visão norteada por uma educação financeira.”
Goleiro engenheiro
Notáveis por revelar nos últimos dez anos talentos como Neymar, Paulo Henrique Ganso, Robinho e Diego, as divisões de base do Santos correspondem a outro bom exemplo de preocupação com a formação educacional dos atletas. “Eles vêm em busca de um sonho”, observa Silvana Gomes da Silva Trevisan, assistente social do clube. “Mas nós sabemos que é um sonho quase inatingível. Nem todos conseguem sair do anonimato e ficar ricos e famosos. Então, qual o nosso objetivo? Formar o cidadão e o jogador.” Todos os 270 atletas estão matriculados em escolas e têm frequência e desempenho acompanhados regularmente. Cinco jovens cursam faculdades. “Um deles, goleiro, faz Engenharia Mecânica”, conta Silvana. “Se não der certo no gol, com certeza será um grande engenheiro. E engenheiro está em falta no Brasil.”
Os 90 atletas alojados nas dependências do Santos recebem tratamento diferenciado. “A guarda provisória desses jogadores pertence ao clube”, diz Silvana. “Somos nós os responsáveis pelo aproveitamento e pela frequência. Participamos das reuniões escolares.” No CT, funciona uma sala de estudos com cinco computadores, onde os jogadores fazem pesquisas. Duas professoras – uma de exatas e a outra de humanas – dão reforço para todos os alunos, do 4º ano do EF até o 3º ano do EM, e mesmo para os universitários. Uma psicóloga completa a equipe.”
Silvana confirma a avaliação de Galvão, do Cruzeiro. Segundo ela, as faixas etárias que “mais dão trabalho” são as dos atletas das categorias sub-17 e sub-20. “É um período de transição e causa muita ansiedade”, analisa. “Eles ficam com medo: ‘Se eu for para a escola à noite, eu não vou dormir bem, não vou treinar bem, e vão me dispensar’. São faixas etárias nas quais a gente pega mais no pé. Com os demais, a demanda da sala de estudos é natural.” Algumas escolas particulares fornecem bolsas para atletas que, em troca, jogam futebol de salão pela equipe da escola. E 35 jogadores fazem cursos de idiomas graças a um convênio, mas “de acordo com a disponibilidade de horário, sem prejudicar os treinos e a escola”.
Respeito à educação
Nem tudo sempre foi flores. A trajetória de Silvana – que se considera “uma das primeiras assistentes sociais do futebol”- exemplifica uma mudança, relativamente recente, na maneira de os clubes brasileiros lidarem com o tema. “Em 1999, quando comecei o meu trabalho aqui, não tínhamos o apoio da comissão técnica ou da gerência de futebol, como temos hoje”, compara. “Agora, todos no clube me ajudam quando percebo que o menino não está com vontade de ir para a escola, com preguiça. Aquela coisa de adolescente. Então, converso com a comissão técnica. Quando identificamos que o jogador está querendo vacilar em relação à educação, ele não participa do jogo ou fica no banco. E deixamos bem claro por que estamos fazendo isso: em decorrência da falta de retorno sobre a formação do homem. Isso é prioridade no Santos.”
Silvana diz torcer para que “todos deem certo” no futebol, mas admite que poucos conseguirão. “Se os que saírem daqui estiverem formados em faculdades ou mesmo com o EM concluído, podendo optar futuramente por outra profissão, sabemos que fizemos a nossa parte”, afirma. Não se trata de opção, mas de obrigação. “Respondemos para a Promotoria Pública, para o Ministério do Esporte, para a Federação Paulista de Futebol, para a Diretoria de Ensino de Santos e para a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo”, destaca. “Fazemos documentos bimestrais para todos esses órgãos.” Simbolicamente, seria possível acrescentar que os clubes respondem também à sociedade. Se não cumprem seus deveres quanto aos meninos que recrutam graças à busca por um sonho difícil de alcançar, eles desrespeitam a legislação – e, em muitos casos, não são cobrados por esse desrespeito.
Família de jogador | |
Professora de Artes, Jacqueline Garcia de Oliveira protagoniza uma história comum no futebol brasileiro: a das famílias obrigadas a se adaptar à tentativa de buscar um lugar ao sol no futebol. Seu filho Leonardo, hoje com 12 anos, começou a jogar aos 9, em Embu-Guaçu (SP). Depois de uma partida contra o Santos, foi convidado a fazer um teste no clube do litoral. “Gostaram, e ele ficou”, diz Jacqueline. No primeiro ano, o pai levava o menino a Santos para treinar duas vezes por semana. No ano seguinte, com três treinos semanais, a rotina ficou difícil e a família decidiu se mudar. Instalados em Santos desde 2011, ainda consideram a adaptação difícil. Trocaram uma casa por um apartamento, estão longe de parentes e o marido demorou a arrumar emprego.
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Jogadores “doutores” | |
Famosos nos campos, eles também se destacaram na carreira acadêmica
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