NOTÍCIA
Mais do que tudo, é a relação entre pessoas que define qualquer prática educativa
Publicado em 17/10/2016
Confesso que, de início, não acreditava que Moana, aos 9 anos, pudesse se interessar pela leitura da versão integral do clássico de J.R.R. Tolkien, O Hobbit. É verdade que se trata de uma aventura povoada por magos e repleta de objetos encantados. Mas é um romance longo, com descrições densas e vocabulário sofisticado. Para minha surpresa, no entanto, seu envolvimento com a obra crescia a cada noite que a líamos juntos. (Nunca convém subestimar a sensibilidade e a inteligência das pessoas, sejam elas adultas ou crianças…)
Ao terminarmos a leitura do décimo capítulo, Moana não me desejou boa-noite. Com olhos ainda despertos, me perguntou se não podíamos comentar o que mais havíamos gostado até então. Pensei que o pedido não passasse de mais uma de suas estratégias para adiar a hora de dormir. Recusei, mas ela argumentou: “Não é assim que vocês fazem, você e a mamãe, quando leem Arendt e Paul Ricoeur em seus grupos de estudos?”. Jamais imaginara que, quando a levamos a esses encontros – premidos por alguma necessidade – ela pudesse prestar qualquer atenção ao que se passava. Sempre a via absorta em suas tarefas, desenhos e leituras. Mas, em seu silêncio, ela se dava conta do sentido de uma leitura partilhada.
Falamos, então, das transformações que ocorreram no personagem central, que abandonara sua vida confortável e pacata de hobbit, para se tornar um aventureiro épico. Mas foi só no dia seguinte que percebi a profundidade contida em seu pedido para que partilhássemos as impressões de nossas leituras. Lembrei-me de uma bela passagem de Homens em tempos sombrios, na qual Hannah Arendt afirma que o “mundo não é humano simplesmente por ter sido feito por mãos humanas, nem se torna humano meramente porque a voz humana nele ressoa. Por mais afetados que sejamos pelas coisas do mundo [como um livro], por mais profundamente que elas possam nos instigar e estimular, essas coisas só se tornam humanas para nós quando podemos discuti-las com nossos companheiros”.
É porque a fala humaniza as obras que gostamos tanto de comentar um filme, de compartilhar a interpretação de um livro ou fazer uma refeição com nossos amigos. São as expressões do discurso humano que transformam uma coisa – como um livro – em objeto de um legado simbólico que nos humaniza.
Muito se tem discutido acerca da necessidade de objetos tecnológicos nas escolas, de suas supostas vantagens ou desvantagens na aprendizagem e na formação. Mas sem a intermediação do discurso humano, como nos lembra Arendt, esses objetos podem apenas nos instigar ou afetar, mas permanecem coisas destituídas de seu pleno significado formativo. É por meio das trocas discursivas entre professores e alunos que um romance ou um programa computacional deixam de ser coisas inertes para se transformarem em objetos que desempenham uma função educativa e, assim, adquirem seu sentido humanizador.
Em um momento em que tanto se discute sobre a necessidade de investimentos em coisas – como laptops ou lousas virtuais – tendemos a obliterar o óbvio: é a natureza das relações que se travam entre pessoas de diferentes gerações que constitui o centro de qualquer prática educativa. É essa relação, mediada pela fala humana, que pode – ou não – dar significado à pletora de objetos que nos cercam. São as palavras – e não as coisas – que conferem sentido às experiências humanas.