Variação ganha força entre linguistas que falam em comunicação inclusiva. "Finalidade é atender um público que precisa dela"
Publicado em 19/01/2022
A linguagem não binária, também denominada linguagem neutra, é um fenômeno social, político e linguístico vinculado às lutas identitárias de grupos LGBTQ+. Criada há cerca de 10 anos, no contexto das redes sociais e do surgimento de coletivos militantes, grafava ‘x’, ‘@’ ou ‘e’ em substantivos para neutralizar o gênero gramatical. O ‘e’ é a primeira experimentação pronunciável e vem conquistando falantes. ‘Todes’ já é uma palavra popular, utilizada para substituir o masculino genérico – “Bom dia a todes” –, ou em contexto no qual o falante quer contemplar todos os gêneros, especificando-os: “Bom dia a todas, todes e todos”. Também propõe os pronomes pessoais ile e elu e suas derivações.
Cleber Ferreira é pessoa não binária, docente atuante de língua portuguesa, militante do Mel (Movimento Espírito Lilás), em João Pessoa, PB, e integrante da Diretoria Regional Nordeste 1 da ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, e Intersexos.
“A finalidade da linguagem não binária é atender a um público que precisa dela: as pessoas que questionam o seu gênero. Queremos uma linguagem comunicativa, inclusiva e que questione padrões. Não nos interessa, por ora, mudar a gramática normativa, porque ela é machista, elitista, construída por homens brancos”
Cleber Ferreira
Ferreira não quer, necessariamente, ver Eça de Queiroz publicado na linguagem não binária. E reflete acerca da criatividade: “todo o léxico de João Guimarães Rosa é mutável; Osman Lins escreveu Avalovara, que também tem um léxico incomum, assim como James Joyce em Ulysses ou Marcel Proust, na obra Em busca do tempo perdido. O autor tem liberdade para escrever. Só o escritor pode ser criativo?” Ferreira também cita O senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien: “nessa obra há aproximadamente oito idiomas. Nas notas, que são mais abrangentes do que a narrativa, há sistemas complexos de gramática, Tolkien era um filólogo”. E questiona: “Afinal, por que não criar uma nova língua?”.
A binaridade de gênero masculino/feminino é imposta na sociedade e a língua espelha e reforça essa imposição. “Gênero é categoria fundamental na sociedade, a cognição social é pautada por ele, por isso é muito difícil a pessoa se agenerificar”, diz Iran Melo, professor de língua portuguesa e linguística da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenador do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais.
Entre as pessoas que não se encaixam no binarismo de gênero estão as agêneras, transgêneras binárias e não binárias, travestis; há inúmeras intersecções e a linguagem não binária tem como objetivo, também, dar conta dessa diversidade. “É uma prática de inclusão; acima de tudo é uma atitude que busca fugir da maneira tradicional, colonial, de representar, que é centralizada no masculino genérico. Sendo um projeto político de designação, a linguagem não binária sempre irá propor a reestruturação da língua.” Desde os anos 80, lembra Melo, as feministas vêm propondo estratégias: “a tentativa de generalizar no feminino também era um contradiscurso. Já temos isso na história, então a gente prevê que outros modos aconteçam”.
A norma padrão está a serviço de um grupo dominante, porém, ela é uma das muitas variações linguísticas. Novas palavras e expressões surgem o tempo todo, entretanto, para que integrem a norma padrão há um longo processo. Na Suécia, por exemplo, o pronome neutro ‘hen’, usado desde os anos 60 nas comunidades LGBTs, foi incluído no dicionário em 2017. No Brasil, a linguagem não binária está sendo observada pela linguística formal, aquela que se atém à estrutura da linguagem. Os linguistas denominam esse fenômeno de estratégias de neutralização de gênero. Há opiniões divergentes e contribuições.
Para o estudo de gênero gramatical no português brasileiro, a obra seminal é a de Joaquim Mattoso Câmara Jr., que nos anos 70 disse o seguinte: o masculino é o gênero não marcado, o feminino é o gênero marcado, específico. Melo explica que, na linguística, o conceito de marcação é aquilo que não é convencional, é o outro, o anormal, o disruptivo. Não sendo marcado, o masculino representa o genérico. Para Melo, “o que Mattoso Câmara Jr. não disse é que temos essa construção na língua porque fazemos parte de uma sociedade secular masculinista”.
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Ana Pessotto, doutora em linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), conta que entendia a expressão do gênero gramatical no português como resolvida, mas hoje em dia acredita que essa discussão está atrasada em relação a outros países. A sua percepção começou a mudar em 2016, ao final de uma aula de linguística.
A turma se preparava para sair da sala quando uma aluna levantou a mão e perguntou sobre a neutralização de gênero. “Comecei a explicar o que já estava sistematizado e vi que todo o pessoal começou a prestar atenção.” Ela precisou organizar aulas extras. Desde 2016, Pessotto pesquisa as estratégias de neutralização de gênero.
A análise a seguir pode explicar a popularização da nova linguagem: “‘@’ não representa um som no português e ‘x’ não se adapta às regras fonotáticas, não serve como núcleo de sílaba; ‘e’ é a melhor estratégia”.
O masculino como gênero neutro não está presente em todos os idiomas, há idiomas que sequer codificam gênero e outros que não associam gênero a sexo, informa Luiz Schwindt, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRG). No português, o subgrupo de substantivos que se referem a seres sexuados representa apenas 4,5 % dos substantivos existentes. Entre eles, nem todos terminam com as vogais ‘a’ ou ‘o’ marcando o gênero; há substantivos em que a vogal final não marca gênero: ‘criança’ e ‘testemunha’, por exemplo.
Analisando os limites do sistema linguístico, Schwindt afirma: “no subgrupo dos substantivos sexuados que fazem oposição entre ‘a’ e ‘o’ é possível que o substantivo venha, um dia, a assimilar a marca ‘e’. Morfologicamente, neste mesmo subgrupo, o ‘e’ é perfeito, porque troca a oposição de ‘o’ e ‘a’, – que tem apenas dois polos – por uma oposição gradual, com três estágios: masculino, feminino e neutro, como em ‘amiga’, ‘amigo’, ‘amigue’. Schwindt enfatiza que há obstáculos, entre eles, substantivos terminados em ‘e’, como ‘presidente’ e ‘tenente’: o que faremos com eles?
Enquete espontânea realizada no site da Plataforma Educação, em outubro de 2021, perguntou: você aprova o uso de “todes” como gênero neutro, sim ou não? 74% dos respondentes disseram não ao uso do termo “todes” e, possivelmente, são contra a adoção do gênero neutro no dia a dia.
Em 1º de novembro foi feita a mesma pergunta nos stories da plataforma no Instagram, dessa vez com respostas abertas.
Confira algumas respostas espontâneas escritas exatamente como enviadas:
“Acho que é algo a ser discutido.”
“Se eu estiver me comunicando com alguém que se identifique com esse pronome sim!”
“Eu acho que deve saber usar no momento certo. Escrita formal não, mas na escrita informal, talvez…”
“Contra, já que a linguagem é para todos, e vai além de gêneros. Linguagem representa educação.”
“Contra, podemos falar todas e todos.”
Por Sandra Seabra Moreira, originalmente publicado no site da Plataforma Educação