NOTÍCIA
Em entrevista, intelectual diz que sociedade vive uma crise de ideias e rejeita "lógica da esperança"
Publicado em 05/04/2022
Aos 80 anos de idade e 55 de carreira como docente, Muniz Sodré coleciona títulos e sucessos. É jornalista, sociólogo, tradutor, pesquisador, palestrante, autor de mais de 40 livros, membro da Academia Baiana de Letras. A Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da qual é professor emérito.
Bem-humorado e gentil, embora diga estar “mais cansado” que antes, continua lendo, produzindo e, sobretudo, pensando. Para ele, a sociedade vive uma crise de ideias. Crítico feroz das redes sociais, do capitalismo financeiro e = da cultura algorítmica, defende que a escola só faz sentido como um lugar de vínculo e paixão. Ainda que rejeite a “lógica da esperança”, vê com otimismo algumas transformações sociais que vêm acontecendo lentamente, como a maior visibilidade social e a ascensão de uma intelectualidade negra e indígena.
Aos 80 anos eu continuo a dar aulas e gosto muito. Certamente, a instrução, em determinados assuntos e disciplinas, pode ser satisfatoriamente substituída por máquinas.
Você pode aprender cálculos de prédios por máquinas, até mesmo aprender a fazer operações cirúrgicas online, aprendendo a controlar os próprios robôs. Mas a isso eu dou o nome de instrução. Educação não é simplesmente passar informação. O mais pobre dos computadores faz isso melhor que o melhor dos professores.
Está reservado à educação um outro lugar, porque ela é outro tipo de processo. É a formação cívica, ao mesmo tempo psicológica e ética. Isso não pode ser substituído. A educação é um nome da transformação de um processo radical de iniciação. As sociedades ocidentais não iniciam – a iniciação só há em sociedades tradicionais e tribais. Iniciação é como uma conversão ou um batismo: a entrada numa câmara-portal e o renascimento do indivíduo para a vida social e coletiva. A iniciação é pessoal – ela precisa de gente – e é libidinal. Não consigo conceber uma educação que não tenha uma reinterpretação do laço libidinal entre pais e filhos, filhos e pais.
Sei que as pessoas entram numa faculdade para ter uma profissão e arrumar emprego, mas não queria que o futuro da educação valesse só o caminho do emprego
Há uma passagem de saber familiar inicial, que é importante, mas não é nunca o conteúdo o mais importante e sim o laço, que é ao mesmo tempo amoroso, em parte odiento. Esse laço visceral, que é uma vinculação, é retomado pela escola. Portanto, o ensino fundamental é uma retomada vigorosa desse laço de pais e filhos. A relação com professores é uma relação de paixão. Quando digo paixão, não quer dizer amorosa apenas, envolve também a briga, o ódio. São dois afetos fundamentais: o ódio e o amor. Com a criança crescendo, há a individualização dessa formação, onde pode entrar o escopoprofissional. Mas não é o essencial da educação.
Sei que as pessoas entram numa faculdade para ter uma profissão e arrumar emprego, mas não queria que o futuro da educação valesse só o caminho do emprego. Ela vai no sentido de preparar para que tenha opções de percurso. O próprio trabalho está sendo velozmente desvalorizado pelo advento das máquinas e robôs. Não acho que a educação esteja estruturalmente acoplada ao trabalho. Ela está acoplada à formação psicológica, ética, propriamente humana.
As próximas gerações, e já esta geração, sãogerações de base matemática, mesmo que não tenham formação. Somos regidos por números e fórmulas. Nossa realidade é forjada pela matemática. Mas precisamos mais do que nunca entender o solo social em que a matemática se dá. Então, as ciências humanas e sociais têm que se distanciar da matemática para entender efetivamente o que está se passando. Estamos num momento de crise das ciências sociais porque o momento áureo foi um momento de produção de ideias no século 19, na passagem da filosofia para a sociologia, economia, antropologia. As ciências que se fragmentaram, mas o que elas efetivamente produzem são ideias. E nós estamos numa crise de produção de ideias.
Uma educação voltada só para as ciências exatas produz monstros – e estamos vendo isso no Brasil. Na pandemia vimos que uma parte da classe médica beira a monstruosidade apesar da competência técnica. Tem negacionistas, próximos a um comportamento fascista. A mesma coisa aos diplomas dados a certos engenheiros, mas que são ignorantes, apedeutas. A ignorância social dos técnicos brasileiros é estarrecedora. Não sabem nada do social e por isso cavaram um buraco para que o fascismo se instalasse. Foi assim que se elegeu Bolsonaro, que é um monstro. Agora a sociedade está aparentemente reagindo.
A crítica continua assustando as elites, que continuam matando quem pensa demais.
O pensamento de direita que emergiu não foi do povo apenas; foi nas classes médias. Gente que estudou, se formou nos melhores colégios, nas melhores universidades, os melhores tecnicamente, mas que são impermeáveis à empatia social e à solidariedade humana. Isso é uma falha educacional, uma tragédia educacional. Eu conheço pessoas de alto nível de formação que eu considero analfabetos em relação ao mundo e à sociedade. Nem são de direita necessariamente. Mas faltou o lado social – e isso é um fracasso das ciências sociais, que se fecharam muito em si, se departamentalizaram demais.
Isso é marketing, o discurso dominante do comércio e da indústria. Como é que se elege hoje um presidente ou governador? Com partidos que não representam coisa nenhuma e marketing. Você tem em outros países partidos que representam uma parcela da população que é de direita, outros de esquerda, de centro. Os partidos brasileiros e da maioria dos países latino-americanos não representam coisa nenhuma. Eles se constituem em função do fundo partidário. São máquinas burocráticas que giram ao redor de si mesmas, dos seus interesses. O discurso qual é? É o do marketing. É assim que se elege alguém. Os políticos sempre foram retóricos, havia margem de engano, mas o marketing promete apenas a realidade do marketing, que nunca se cumpre. É discurso das escolas privadas quando se faz uma crítica à formação que oferecem. Mas eles não querem realmente isso. Ao contrário: a crítica continua assustando as elites, que continuam matando quem pensa demais.
Eu não sigo muito a lógica da esperança. Esperar é colocar seus desejos num outro tempo ou na cabeça do outro. Sei que é uma nuance, que não existe na nossa língua o verbo esperançar, que seria dar à espera uma força motriz, transformadora. Mas acho que isso está em curso. Falei antes dos negros, mas há também os indígenas: você tem intelectuais indígenas hoje importantes no Brasil, coisa que antes não existia. Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Sonia Guajajara. O país é muito grande, temos muito mais. A movimentação civil está crescendo. Nesse sentido sou otimista.
Essa é uma seleção da entrevista completa, originalmente publicada na edição de março/2022 da Revista Ensino Superior. Para ter acesso a todo o conteúdo, acervo e matérias exclusivas, assine.