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Ensino Fundamental

Falar para escrever

Projeto busca referências na cultura regional para trabalhar a dimensão estética da linguagem no processo de letramento

Publicado em 05/08/2014

por Tânia Pescarini

Shutterstock

As crianças brincam e batem palmas no pátio da escola, cantando: “Era meia-noite, noite, noite, noite/ Fui no cemitério, tério, tério, tério/Vi uma caveira, veira veira, veira”. Canções como essa, pequenos poemas, com origem na cultura popular e em brincadeiras de rua, estão sendo testadas como recurso pedagógico para o letramento por um grupo de pesquisadores de três universidades brasileiras. Liderado pelo professor e pesquisador Claudemir Belintane, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), o projeto completa quatro anos em 2014 e envolve pesquisadores, orientandos e bolsistas da Universidade Federal do Pará (UFPA), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), além da própria USP.

Segundo Belintane, o projeto é uma alternativa à metodologia fônica e pretende dar conta de todo o espectro da relação entre semântica e fonema com recursos da cultura popular, como trava-línguas, parlendas e língua do pê, para uma imersão prazerosa no universo da linguagem escrita.

> Confira vídeo com Claudemir Belintane em que ele fala sobre oralidade e alfabetização

#R#

Cultura oral
Canções, parlendas e trava-línguas, peças culturais até pouco tempo subaproveitadas pela escola, entram na sala de aula como forma de relembrar a proximidade entre linguagem escrita e sua dimensão oral. “A escrita foi inventada para lutar contra o processo de esquecimento. A primeira grande obra escrita foi a epopeia de Gilgamesh, que é de origem oral. A escrita tem essa relação com a cultura oral”, lembra Belintane a respeito da epopeia da antiga Mesopotâmia. Mas o que se entende por oralidade, segundo ele, não é apenas o processo contínuo de falar, e sim aquilo que passa por um processo estético. “É outra ideia de oralidade. Lendas, mitos, brincadeiras infantis, parlendas, conto cumulativo, brincadeira com palavras. É a oralidade formular”, afirma o pesquisador.

Ele argumenta que crianças envolvidas mais profundamente com a dimensão estética da linguagem terão mais facilidade para aprender a ler e escrever. A falta dessa habilidade com a estética da língua também exerce efeito contrário: crianças que não conseguem narrar uma história serão aquelas com maiores dificuldades no processo de letramento. Para trabalhar essa confluência entre oralidade e escrita, além da música, outro recurso estético de linguagem, Claudemir aposta em outra habilidade, segundo ele, relegada ao segundo plano: a memória. Exigir que os alunos memorizem pequenos textos em sala de aula já foi alvo de duras críticas por parte dos construtivistas. Não se trata de decorar listas de palavras descontextualizadas. Segundo o pes­quisador, memorizar prazerosamente, como brincadeira, se torna uma prática de escrita.

Nova prática pedagógica
Mirian Machado é professora do terceiro ano do ensino fundamental da Escola de Aplicação da USP, participa do projeto desde o início, e acompanhou a mudança de práticas pedagógicas na escola. Segundo ela, os resultados começam a aparecer. Ela relata que hoje, na maioria, as crianças de sua escola entram no segundo ano do fundamental alfabetizadas e no terceiro ano apresentam significativa autonomia em leitura e escrita. “Mudamos nossa prática pedagógica. Já trabalhávamos com oralidade antes, mas não era dada tanta ênfase e não havia uma metodologia nesse sentido. Começamos a trabalhar gêneros textuais de todos os tipos, como poesia, contos de fadas, lendas brasileiras, mitologia grega, con­tos de assombração”, afirma a professora, lembrando que a ora­li­dade implica uma sequência didática importante.

Os alunos de Mirian trabalham com parlendas principalmente no primeiro ano do ensino fundamental. Esse processo pode se estender para o segundo ano. Os textos de memória, que trabalham a dimensão estética da língua, são usados principalmente no processo de alfabetização. Outro recurso usado no projeto com crianças de 6 a 7 anos de idade é o rebu, que são cartas ilustradas com figuras.

Thomas Massao Fairchild, que coordena o projeto na escola de aplicação da Universidade Federal do Pará, diz que, lá, os rebus são trabalhados com os alunos do primeiro ano. O objetivo é a criança identificar a imagem e distinguir somente a primeira sílaba da palavra. “Queremos que os alunos aprendam a desmontar e remontar a língua portuguesa”, diz Fairchild. “Isso pode ser feito mesmo por crianças ainda não alfabetizadas”, completa. Na aplicação da UFPA, os alunos terminam o primeiro ano sabendo desmontar o alfabeto a partir dos rebus e conhecendo certo número de parlendas de memória. As turmas de segundo ano praticamente leem, segundo Fairchild.

Assim como em São Paulo, os professores buscam trabalhar com textos, mesmo que curtos, evitando listas de palavras e frases soltas. No terceiro ano, quando os alunos já gozam de certa autonomia na leitura, os professores começam a introduzir textos maiores, de três ou quatro páginas. “No início enfrentamos muita resistência por parte dos professores nesse sentido, pois eles achavam que o tamanho dos textos desencorajaria a leitura”, afirma ele. O conto de fadas João e o Pé de Feijão, por exemplo, uma história relativamente longa, entusiasmou os alunos. “Essa resistência foi aos poucos vencida”, segundo Fairchild.

Outro aspecto importante da metodologia proposta pelo grupo de Belintane é o performático, que exige participação ativa do aluno e constitui uma crítica à tradicional leitura em voz alta, em que somente o professor fala.

“Ao contar performaticamente, sem nenhum livro de apoio, é possível dizer que, nesse momento, é o corpo contando a história, numa gesticulação aconchegante. Fazemos a leitura em voz alta e misturamos os processos da contação de histórias. Incentivamos também a leitura autônoma do aluno”, descreve o pesquisador. Para Belintane, o professor que só lê em voz alta para os alunos acaba excluindo aqueles que nada ou pouco leem.

Resgate da família
A metodologia de letramento a partir da experiência estética com a língua oral se beneficia muito da experiência da criança com narrativas em casa e a participação dos pais e da família no processo é fundamental, destaca Claudemir Belintane. Ele descreve a relação que a criança tem com a linguagem em casa e sua influência no aprendizado nos primeiros anos do ensino fundamental. “A família é crucial nesse processo. Mas o que se costuma pensar a respeito não é o que acontece. Acha-se que filhos de pais alfabetizados, com formação universitária, não terão problemas com a escrita. Mas essa correlação não é direta”, diz o pesquisador.

Segundo ele, há filhos de pais analfabetos que em suas casas experimentam uma enorme riqueza de cultura oral. São crianças que gostam de adivinha e de trava-línguas. “A cultura nordestina, por exemplo, traz muito as adivinhas, as brincadeiras, as histórias de Trancoso. Mesmo uma família muito simples pode trazer um capital cultural importante (para a alfabetização e letramento de seus filhos). O problema é que a escola, em geral, não o utiliza”, completa.

Ele reconhece a importância de pais que leem diariamente para os filhos, que introduzem o universo dos livros à vida da criança. Mas não adianta pais doutores que não tenham quase contato com os filhos, avalia.

A professora Mirian Machado conta que, em sua escola, ela e outros professores organizam reuniões trimestrais com os pais em horários livres para recebê-los, durante as aulas de artes e esportes. “É muito grande o papel dos pais e da família no trabalho com a oralidade. Quando percebemos que o aluno não é um leitor fora da escola, chamamos os pais e os orientamos nesse sentido”, diz.

A educadora reconhece, entretanto, que esse espaço deve ser ampliado ao âmbito familiar. “Mesmo famílias com pouco tempo livre e rotina apertada devem se organizar para se dedicar à leitura em família”, sugere.

Rompendo fronteiras

Se até há pouco tempo a relação entre a oralidade e a escrita era tratada a partir de suas características dissonantes, hoje as fronteiras estão se estreitando, principalmente por uma nova modalidade de texto na contemporaneidade: aquele escrito em ambientes virtuais. De acordo com Luiz Antonio Marcuschi, com base na obra Variation Across Speech and Writing, de Douglas Biber, não há característica linguística ou aspecto das situações em que a fala e a escrita são produzidas que seja verdadeira para todos os gêneros falados e escritos. As diferenças se explicitariam na dimensão dos variados gêneros e, não, de modo generalizado, segundo os dois autores.

Autor

Tânia Pescarini


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