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No ano de 1996

A autonomia de uma escola é incompatível com mecanismos de poder vertical

Publicado em 10/09/2011

por José Pacheco

No comentário a uma das minhas crónicas, alguém escreveu (sem poupar na pontuação): "Sem horários?!…" E questionou: "Quem der mais horas à escola com prejuízo da família é que é bom professor?" Eu havia escrito que os horários são dispensáveis. Mas, para sossego dos críticos, acrescentarei que os professores da Ponte "não dão mais horas à escola", muito menos "em prejuízo da família".

Horários de padrão único são aberrações. Há muitos anos, escrevi: não gosto de professores missionários, mas também não gosto dos demissionários. Esse trocadilho resulta do cansaço que eu sentia no tempo em que a Ponte não podia escolher os seus professores. Quando os "concursados" chegavam, a sua primeira pergunta era, invariavelmente esta: Quais são os meus dias livres?

Nas escolas por onde tinham peregrinado, esses professores tinham um horário atribuído. Nesse horário, havia manhãs, tardes, dias livres de actividade docente. Na Ponte, nada disso havia. Os dias eram todos "livres"

Onde houver horário e livro de ponto não há professores autónomos. A autonomia de uma escola é incompatível com mecanismos de poder vertical e de controlo uniforme do tempo. Se eu quisesse recorrer à teoria, poderia evocar a cronobiologia. Se quisesse apelar para o exercício do bom senso, reafirmaria a evidência de cada ser humano ser único e irrepetível, dotado de um ritmo específico de aprendizagem etc. Direi somente que não existe um só modo de fazer escola. E que os horários de padrão único apenas poderão ser legitimados pela cultura de dependência, autoritarismo e demissionarismo, que empesta muitas escolas.

Por que um tempo de cinqüenta minutos para estudar matemática e outro tempo de cinqüenta minutos para estudar ciências?

Cinqüenta, sessenta, noventa minutos, para qual aluno?

Quando um aluno da Ponte me perguntou por que razão as aulas em outras escolas duravam cinqüenta minutos, eu respondi que não havia razão alguma, que eu havia feito essa pergunta a muitos professores que dão aulas de cinqüenta minutos e que eles não souberam responder – é porque é, e pronto!

Antigamente, a contestação dos demissionários surgia num registo mais pueril. Dizia-me uma professora: Isso de não haver horários aonde nos levaria, colega? Antigamente, havia gente que, por mais que se explicasse, não entendia. Por isso, trago à colação um episódio que testemunhei, já vai para dez anos. Uma escola que se inspirou no projecto da Ponte, não para o copiar, mas para se melhorar, apresentou uma comunicação num congresso. Fui assistir. Gostei: quem fez a palestra não foi um professor, mas um aluno dessa escola. Quando o jovem de oito anos referiu que, na sua escola, não havia horários iguais para todos, nem séries (anos), nem o conceito de ano lectivo, foi interpelado por um professor da universidade onde decorria o congresso:

Não acredito! Como é possível não estar colocado num 3º ou 4º ano!

O miúdo contestou: O senhor não entendeu. O que eu disse foi que na minha escola não se faz como em outras, não se divide os meninos por turmas e por anos…

O universitário cortou-lhe a palavra e atirou, num tom a roçar o cinismo: Está bem! Eu já ouvi essa ladainha. Vá lá! Diz em que ano estás!

O moço respirou fundo e olhou na direcção do seu professor, como quem pergunta: o que hei-de fazer desta criatura? O professor encolheu os ombros. E o aluno que fazia a palestra respondeu: O senhor não sabe mesmo em que ano eu estou?

Triunfante, o universitário usou o imperativo com ênfase redobrada: Não sei. Diz lá!

O jovem obedeceu e disse: Estou no mesmo ano em que o senhor está – no ano de 1996!



José Pacheco – Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)



josepacheco@editorasegmento.com.br

Autor

José Pacheco


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