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Aluna pesquisadora e professora regente em ação: objetivos comuns? |
Assentada a poeira dos discursos eleitorais – que sempre tendem a inflar as próprias realizações, mascarar seus problemas e subestimar
a priori aquilo que é feito pelo adversário – é possível tentar ouvir opiniões menos enviesadas sobre um dos temas que estiveram presentes na campanha presidencial: a adoção de um segundo professor em sala de aula, para as classes dos primeiros anos do ensino fundamental.
A proposta, defendida pelo então candidato José Serra, vinha calcada em programa por ele instituído em suas gestões à frente da Prefeitura de São Paulo e do governo estadual paulista, que, a partir de 2008, adotou o “Projeto Escola Pública e Universidade na Alfabetização”, mais conhecido pela alcunha de “Bolsa Alfabetização”. Parte integrante de um projeto maior – o “Ler e Escrever” – o Bolsa Alfabetização prevê que universitários das áreas de pedagogia e letras auxiliem os professores regentes em classes do 2o ano do ensino fundamental e do Projeto Intensivo do Ciclo (PIC).
Segundo a assessoria da Secretaria de Estado da Educação, a meta principal do “Ler e Escrever” de alfabetizar 100% dos alunos da rede com até 8 anos de idade “estava bem próxima de ser alcançada”, segundo o Saresp (equivalente estadual à Prova Brasil) de 2009. E que, em 2010, “se a meta não foi alcançada, está muito próximo disso”. Apesar do cenário otimista, não há menção de quão perto de 100% estão os alunos.
Mas se em tese o fato de haver dois professores em sala deveria fazer favorecer os alunos, que teriam um profissional a mais para dedicar-lhes atenção, os primeiros questionamentos se referem justamente ao fato de este segundo professor não ser um docente, e sim um “aluno pesquisador”, como são batizados os universitários cadastrados no programa. Ou seja, o programa deixou uma resposta em aberto: seu alvo principal seria o aprendizado do universitário ou a melhoria do atendimento à criança?
Josefa Temóteo Oliveira, 24 anos, formada em pedagogia pela Universidade Mackenzie em 2009, participou dos primeiros anos do Bolsa Alfabetização e sentiu o desconforto inicial entre docentes (os professores orientadores) e alunos pesquisadores. “No princípio, os professores não entenderam a proposta. Foram comunicados de que receberiam um aluno que acompanharia as aulas e seria, entre aspas, útil para o processo de alfabetização das crianças. Só que éramos tidos por eles como espiões do Estado, e nossa atuação acabou ficando mais restrita.”
A despeito dos entraves, decorrentes de uma relação desgastada entre magistério e secretaria – fato de imediato detectado pelo novo secretário Herman Voorwald-, as barreiras foram arrefecendo com o tempo. “Nós íamos pelas bordas, levávamos um texto, um quebra-cabeça, jogo da memória, mas sempre perguntando se isso seria útil para prática do professor, sempre os respeitando.”
Teoria e prática Concebido a partir da visão de que os cursos de pedagogia – principalmente aqueles das universidades públicas – privilegiam em demasia aspectos teóricos da educação em detrimento das didáticas, o Bolsa Alfabetização queria mostrar aos futuros professores a dimensão prática do ensinar. A orientação, conta Josefa, era que o aluno pesquisador assistisse os alunos com mais facilidade de aprendizado e deixasse ao professor regente o trabalho com aqueles com mais dificuldade. A prática, no entanto, mostrou experiências diversas. “Tinha aluno pesquisador que ia para recortar papel, ficava no fundo da sala, ou com aluno de inclusão. A primeira professora me deixou com alunos que tinham muita dificuldade porque para ela eu estava lá só para acalmá-los, enquanto ela trabalharia com o restante da sala.”
A situação melhorou em sua última experiência, pois a professora regente já conhecia o programa. Isso possibilitou uma atuação conjunta. “Ela pedia para eu pesquisar e programar atividades. Analisávamos as hipóteses em que as crianças estavam, as sondagens, compartilhamos experiências e vimos o que eu poderia levar de novo para melhorar a aprendizagem.”
Nas universidades Ana Nicolaça Monteiro, coordenadora do curso de pedagogia da Faculdade Sumaré, reconhece a dificuldade e diz que é nas reuniões semanais, previstas no programa e realizadas nas universidades participantes, que se discutem as formas de atuação do aluno pesquisador e as práticas a serem aplicadas a cada realidade. Ali, trabalha-se a angústia com a sensação de não aprendizado.
“Partimos do princípio de que todo aluno aprende, mas cada um à sua maneira.” A coordenadora reforça que o papel do orientador é diminuir essa ansiedade inicial do universitário para que ele consiga mapear a situação vivenciada na sala de aula, levar contribuições à prática do regente e refletir sobre o que pode ser feito para auxiliar o aluno no processo de alfabetização.
Ana Sílvia Moço Aparício, coordenadora do projeto na Universidade Municipal de São Caetano do Sul, onde leciona metodologia e alfabetização, considera que a experiência leva o estudante de pedagogia à reflexão das práticas de ensino observadas em sala de aula. “A partir do momento em que ele trabalha com alunos mais e menos avançados, reconhece como o processo de alfabetização é complexo, e que os professores devem saber trabalhar essa heterogeneidade.”
De acordo com a Assessoria de Comunicação da Secretaria de Estado da Educação, “o programa vem criando nas instituições de ensino superior um movimento de reflexão sobre a matriz curricular dos cursos de formação de professores, e suscitando mudanças conceituais e práticas, em face da complexa realidade de sala de aula”. O órgão estadual preferiu não indicar ninguém para comentar o programa, preferindo apenas enviar uma declaração por escrito. Posteriormente, ao ser questionado sobre a continuidade em 2011, informou que o programa terá prosseguimento e que a secretaria recebeu inscrições de 83 instituições de ensino superior (IES), com pleito de 5.192 vagas para alunos aprendizes, dos quais 4.577 serão atendidos.
Critérios e concepções Em 2010, havia cerca de 2.100 alunos pesquisadores, provenientes de 90 IES, atuando nas classes de 2o ano do fundamental das redes estadual e municipal. Para participar do programa, basta estar matriculado no segundo semestre do curso de letras ou de pedagogia.
Fernando Soria, diretor de negócios da Faculdade Sumaré, entidade com maior número de universitários no programa, explica que não são estipulados critérios avaliativos para a seleção do universitário que atuará no processo de alfabetização, ficando esse processo a cargo das próprias instituições conveniadas. No caso da Sumaré, houve uma avaliação inicial para verificar e dar prioridade aos alunos que necessitavam de bolsa de estudo. Outro critério da instituição foi não permitir a participação de alunos com dependência em língua portuguesa. Segundo texto disponibilizado no site da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), órgão que estabelece o diálogo entre a secretaria e as instituições de ensino superior, para participar do programa o aluno não pode exceder três dependências ao longo do curso de graduação, ou o limite de dependências estipulado pela universidade.
Na Universidade Municipal de São Caetano do Sul, a participação é aberta aos alunos a partir do 2o semestre, por se compreender que o projeto vislumbra a formação dos universitários. “O projeto não parte da ideia de que primeiro o aluno tem de dominar a teoria para depois ir para a prática”, avalia a coordenadora Ana Aparício.
Já no Mackenzie, a prioridade é dada aos alunos com “bom desempenho acadêmico e que cursam o 4o semestre, por já terem tido contato com as disciplinas de alfabetização”, diz Célia Ferrão, responsável pelo programa.
A ex-aluna pesquisadora Josefa lembra que, mesmo no 4o semestre, sentiu grande dificuldade para a consecução de algumas atividades. “Tudo depende do que a gente acredita que esse aluno vai fazer lá. Se for para pesquisar, ele vai conseguir pegar um tema de pesquisa e desenvolver, mas se for para ter essa interlocução com o professor, sem uma base teórica sólida, fica complicado.”
Individual versus coletivo Se, por um lado, o programa visa melhorar a dimensão prática da formação docente, por outro pode expor as crianças à ação de universitários ainda não habilitados ao exercício da docência, em especial numa missão tão delicada quanto a alfabetização. Para Isabel Frade, coordenadora do grupo de formação de professores do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, “a proposta só contribui com o aprendizado das crianças se o profissional contratado para auxiliar o professor regente for capacitado para trabalhar a alfabetização e dominar a didática da sala de aula”.
Para Isabel, tendo em vista o contexto da educação pública no país, não adianta ter apenas mais uma pessoa em ação. Sem conhecer diretamente o programa paulista, a especialista fala em termos genéricos, analisando apenas algumas premissas. O melhor, defende ela, seria dividir a sala de aula e então dispor de um segundo professor. “Do contrário, a gente acaba conseguindo uma proporção que quase se assemelha àquela que é o limite do ideal, de um professor para 20 alunos.”
A alfabetizadora reconhece o peso do ensino simultâneo, herdado como modelo no século 19 e que ajudou a consolidar a universalização da educação. Mas lembra que, ao mesmo tempo, ele privou o estudante de uma assistência individualizada. “Criança em fase de alfabetização demanda atenção contínua. Você não pode colocar os alunos para fazer uma tarefa, às vezes, e ficar monitorando o global. Todos têm perguntas e todos eles oralizam muito enquanto escrevem, e você, ouvindo o que eles estão falando, tem acesso ao que o aluno está manifestando naquele momento.” O que, segundo Isabel, é impossível em uma classe com 25 ou 40 alunos. “Numa pedagogia diferenciada, é preciso que se aumente o número de profissionais e diminua o de alunos para cada um deles, senão não há condições para realizar novas ações”. O que nos leva sempre ao mesmo ponto: precisamos formar mais e melhores docentes.