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As pegadas jacobinas

No ano em que se comemora a presença francesa no Brasil, os indícios de nossas relações mostram o poder estruturante que a cultura estrangeira teve em muitos momentos de nossa história

Publicado em 10/09/2011

por Carmen Guerreiro


Obra de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) retrata ritual de origem africana

Alguns daqueles que estudaram em escolas públicas no Brasil até o início da década de 1970 ainda se recordam da conjugação do verbo "ser" em francês:
Je suis, tu es, il est…

Essa memória longínqua constitui uma das incontáveis pegadas que a cultura francesa deixou desde o início da colonização europeia em território brasileiro. Seria exaustivo listar tudo o que faz parte do nosso cotidiano e que tomou forma tal como é hoje por meio de intercâmbios culturais com a França: a moda, a gastronomia, o cinema e, principalmente, as ciências humanas e sociais.

Mas se a influência desse país não está estampada em rostos, restaurantes e profissões, é porque a forma como valoriza a cultura atua principalmente nas bases e estruturas sociais, na filosofia daquilo que fazemos, na sistematização de uma teoria, da cozinha à escola. A sustentar a conspiração de Tiradentes na Inconfidência Mineira, por exemplo, havia uma forte influência da escola iluminista francesa. Nos atos e nos gestos dos jovens brasileiros que enfrentaram o regime militar na década de 60 também ecoavam as vozes dos estudantes que tomaram as ruas de Paris no levante de maio de 1968, exigindo mudanças na sociedade, na política, nos costumes e nas relações que permeavam a educação.

No Ano da França no Brasil, é tempo de pensar em trocas culturais. Trocas que em alguns momentos da história tiveram um fluxo muito mais marcante do centro – que se via e assumia como tal – para a periferia, representada pelos países que buscavam assimilar os valores europeus. Houve épocas em que o Brasil foi uma esponja cultural da França. Com a vinda da corte portuguesa para o país – que, ironia do destino, fugia justamente do imperador francês Napoleão Bonaparte – aportou também a moda de reproduzir aqui o que havia nas cortes europeias e no seu entorno. Assim, não só os hábitos – e vícios – da corte portuguesa ganharam corpo, como também os da sociedade francesa, mais central e representativa do momento europeu de então. A partir do século 19, famílias da elite brasileira mandavam seus filhos para estudar na França, adotavam suas regras de etiqueta, aderiam à alta gastronomia e até mesmo falavam francês entre si em eventos sociais.

Na educação não foi diferente. Com a criação no Rio de Janeiro do Colégio Pedro II, em 1857, o gosto da elite brasileira pelo refinamento francês tomou forma. O material didático e o conteúdo foram importados. "Essa é a primeira escola com influência francesa, nasceu com o mesmo currículo das instituições do país europeu", observa o historiador Nelson Schapochnik, coordenador da área de História da Educação e Historiografia da pós-graduação da Faculdade de Educação da USP. "Isso significa que a própria organização curricular no Brasil começou calcada no modelo francês."

Poucos anos depois, o formato de instrução pública francesa serviu de modelo para vários países mundo afora, entre eles a Argentina e o próprio Brasil, especialmente após a Proclamação da República.  No cenário de então, as ideias do Marquês de Condorcet (1743-1794) serviram de inspiração para uma escola republicana que precisava ser o alicerce para formar cidadãos e equilibrar as desigualdades sociais dos brasileiros. O ideário de Condorcet, é verdade, não se universalizou, mas, aqui e ali, germinou.



A onda  dos cinemas novos



Jules e Jim

(acima), filme de François Truffaut lançado em 1962, foi um dos marcos da
Nouvelle Vague

, ao mesmo tempo contemporâneo e inspirador do Cinema Novo brasileiro

Além de ser secretário da Academia Francesa, modelo para a fundação da Academia Brasileira de Letras em 1897, Condorcet participou ativamente na Revolução Francesa com a defesa do ensino gratuito, universal e independente – que predomina até hoje na França. A teoria do intelectual, visionária para a época, não tinha suas bases na pedagogia, mas nos direitos humanos. Para ele, o povo só seria livre de fato se tivesse acesso ao conhecimento. A tirania, em sua visão, é uma espécie de conluio entre a ignorância e a desigualdade. Por esse motivo, a democracia só pode ser construída se houver garantia de universalização da educação. Sua principal obra,
Cinco memórias sobre a instrução pública

(Unesp), ganhou versão em português no ano passado.

A mesma linha de pensamento foi retomada por Jules Ferry no final do século 19, quando o republicano instituiu, como ministro francês da Instrução Pública, a escola laica e o ensino primário gratuito e obrigatório. Marco de sua época são os prédios de uma arquitetura marcada pela escola do ecletismo, que misturava várias influências, mas, sobretudo, realçava a imponência das instituições republicanas. Construídos em série, esses prédios escolares foram o signo da expansão da rede pública. No Estado de São Paulo, vários deles foram projetados pelo engenheiro e arquiteto Ramos de Azevedo, ainda na Primeira República.


Descortino de outras culturas


No artigo "A importância da língua francesa no Brasil: marcas e marcos dos primeiros períodos de ensino", Cristina Pietraróia, pesquisadora da área de Língua e Literatura Francesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, explica que a língua e cultura francesas foram fundamentais para mediar as relações entre os países jovens e o antigo continente. Ao fazer referência às ideias do crítico literário Antonio Candido, a pesquisadora explica que foi por meio das traduções francesas que os clássicos da literatura mundial chegaram ao Brasil. "Foi, portanto, por meio do francês – cujo ensino era obrigatório – que aprendemos a ‘ver o mundo, que adquirimos o senso da história, que lemos os clássicos de todos os países, inclusive gregos e romanos’", diz ela, citando Candido. "O contato com a língua e a cultura francesas também nos permitiu adquirir uma maior humanidade nas questões sociais, uma vez que não apenas a elite dominadora delas se alimentava, mas também as classes dominadas buscavam sua inspiração nos ideais revolucionários franceses."

Foi nesses moldes que o pensamento intelectual no Brasil se desenvolveu, obviamente sofrendo a influência de outros países em seu amadurecimento. Assim que, em 1934 – aponta o historiador Schapochnik – o antropólogo francês Lévi-Strauss desempenhou papel fundamental na fundação da Universidade de São Paulo. "À época, ele chegou a fazer menção ao fato de que a elite brasileira conhecia bem a França, mas não a realidade de seu próprio país", conta.

Schapochnik, no entanto, defende que o Brasil tem tanto a oferecer à França quanto esta ao Brasil, e nenhum conhecimento produzido em uma das duas nações chega à outra na sua forma original. "Não gosto da categoria de influência, pois parece que houve transposição de cultura, entretanto as teorias originais são uma coisa, e outra completamente diferente se dá quando essas teorias são transplantadas para outro contexto. O efeito é muito grande", explica o pesquisador. Os intelectuais e artistas franceses que viveram no Brasil, como o pintor Jean-Baptiste Debret, o antropólogo Claude Lévi-Strauss e o fotógrafo Pierre Verger, usaram sua experiência no país para enriquecer o próprio trabalho e levar o resultado de volta para a Europa. "A obra deles não seria impensável, mas limitada sem as experiências vividas no Brasil", argumenta. "Existe um momento no século 20 em que nós deixamos de ser meros consumidores para nos tornarmos agentes e antropófagos", afirma, ao fazer alusão à teoria de Oswald de Andrade de que a cultura europeia não deve ser absorvida simplesmente, mas deglutida e transformada em outro produto.


Uma influência camuflada?


O sistema escolar como um todo, no Brasil, sofreu uma influência francesa na sua organização e estruturação. No entanto, outras nações também contribuíram para a formação das instituições de ensino nos trópicos. É o que defende Kazumi Munakata, coordenador da pós-graduação de Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "O Brasil hoje é resultado de uma mescla cultural. Nossa filosofia e ciências humanas e sociais são fundamentalmente francesas, mas o pensamento na educação não tem fortes traços dessa cultura", diz. Para ele, desde os anos 1930, as correntes belga e norte-americana prevalecem na reflexão sobre a educação. "Na época do Império, o modelo era francês, incluindo os livros. A partir da República, criou-se a ideia de que os Estados Unidos são mais avançados." Apesar da ressalva, Munakata aponta que o sociólogo francês Émile Durkheim deu grande contribuição ao teorizar sobre a sociedade e a educação.


França e Brasil, século 21


Ainda que, de acordo com o pesquisador da PUC-SP, o pensamento educacional no Brasil tal como é hoje tenha poucas influências francesas, questões sociais dos dois países reacendem o intercâmbio teórico. Munakata afirma que a França hoje tem de lidar com uma forte imigração, o que gera questões de identidade cultural e social. "Nesse contexto, Pierre Bourdieu e Bernard Lahire têm sido essenciais para entender o momento histórico, pois suscitam uma análise sociológica ligada à identidade de professores e alunos, como o debate sobre múltiplas identidades levantado no filme
Entre os muros da escola

", diz. "Essa questão, hoje, está presente na sociedade francesa. A partir dessa reflexão, passamos a discutir o papel do indígena na educação formal, por exemplo."

No campo da didática, novos expoentes na França já fazem parte da pesquisa na academia brasileira. Martha Marandino, da Faculdade de Educação, bióloga, coordenadora da área de ensino de ciências e matemática da pós-graduação da Feusp, tem como uma das bases de seus estudos o educador francês Yves Chevallard. "Ele vem do ensino da matemática e compôs o conceito da transposição didática. Em linhas gerais, diz que o conhecimento ensinado na escola não é igual ao conhecimento científico – e não tem de ser mesmo. Há uma transformação necessária do saber para que seja assimilado por quem não participa da sua formulação teórica. Ou seja: quando o conhecimento alcança a escola, não tem sentido ser divulgado da mesma forma que no contexto acadêmico em que foi criado", explica.

Neste "Ano da França no Brasil", a pedagogia não está em foco, mas as atividades culturais e seminários são uma boa oportunidade para profissionais da área de educação entrarem em contato com o que tem sido produzido na França e também mostrarem seu trabalho aos europeus e, assim, dar continuidade à troca de perspectivas e experiências entre as duas nações. O historiador Alexandre Roche, que inaugurou o Seminário de Cultura Francesa, realizado em Porto Alegre (RS) em maio e junho, afirmou ao jornal
Zero Hora

que é importante não haver a expectativa de ganhos instantâneos. "A França pode e deve colocar seu avanço tecnológico a serviço do Brasil, sem buscar vantagens imediatas, sejam elas materiais ou políticas. O Brasil, por seu turno, com um território rico e vasto, uma população numerosa e dinâmica, um espírito modernizador, pode e deve oferecer vantagens materiais e espirituais sem buscar benefícios imediatos. É na continuidade do esforço que as duas forças descobrirão a grandeza."

Quatro signos do pensamento francófono



Durkheim, o sociólogo das regularidades


O sociólogo francês Émile Durkheim viveu entre a segunda metade do século 19 e o início do século 20. Um dos pais da sociologia, dedicou-se ao estudo e à defesa das instituições sociais, como a escola, para amparar e proteger o indivíduo namedida em que conferem ordem e um conjunto de regras para o grupo – fatores, para o pensador, fundamentais no ordenamento da sociedade.


O autor de tristes trópicos


O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss se apaixonou pelo campo da etnologia e, por isso, passou metade da sua vida estudando os hábitos e costumes de tribos indígenas, a maioria delas no Brasil. Para ele, os índios não eram nem mais nem menos civilizados que o restante da sociedade, apenas diferentes. Contribuiu para a fundação da Universidade de São Paulo em 1934, voltando depois a seu país de origem como docente do Collège de France.


Bourdieu e a reprodução


Um dos mais renomados intelectuais do século 20, Pierre Bourdieu nasceu em 1930 no sudeste da França e dedicou-se, no campo da sociologia, ao estudo da educação, da cultura, da literatura e da arte. Foi pioneiro na análise dos reflexos da herança familiar e da reprodução das estruturas no desempenho escolar das crianças. No final de sua vida, deu maior atenção ao combate à globalização e ao neoliberalismo por meio da crítica à mídia e à política.


Lahire e o fracasso escolar


O sociólogo Bernard Lahire nasceu em Lyon em 1963 e leciona na École Normale Supérieure de Lettres et Sciences Humaines. Seu trabalho caminha em paralelo às ideias de Bourdieu, cruzando questões de educação e cultura. Com foco no fracasso escolar de crianças de classes sociais mais baixas, analisa os motivos que levam os alunos mais pobres a alcançar o sucesso escolar contra as probabilidades ou porque estão, muitas vezes, fadados a obter resultados ruins.

Autor

Carmen Guerreiro


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