NOTÍCIA
Colocado em xeque com a imersão dos jovens no meio digital, vínculo entre educador e aluno pode ser resgatado com a presença de um professor estrategista e empreendedor
Publicado em 29/03/2012
A penetração da internet como ambiente de comunicação e acesso à informação em nossa “cultura de mídias” é realidade consumada. No Brasil, entre os 42 milhões de jovens de 18 a 30 anos da geração Y, 74% possuem acesso à internet, sendo que 80% desses ficam on-line até três horas por dia. Entre aqueles em idade escolar até 18 anos, as práticas de uso são bem semelhantes. De acordo com a última amostragem da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2010, quase 60% das crianças entre 10 e 14 anos de idade e 70% dos adolescentes de 15 a 17 anos acessam a web diariamente. Ainda assim, de acordo com o Comitê Gestor da Internet no Brasil (2010), a escola responde por apenas 14% dos acessos à internet em nosso país e 65% dos professores acreditam que seus alunos a usam de forma mais intensa e apropriada que eles próprios.
Por outro lado, observamos, na nova economia dos cuidados familiares, um conflito paradigmático entre os projetos existenciais dos pais, nos quais trabalho e consumo frequentemente se apresentam como eixos centrais, e a precariedade psicológica dos substitutos parentais na experiência cotidiana dos filhos. Apresentam-se como substitutos as atividades extra-escolares, as horas diante da TV, a imersão com os videogames, o tempo despendido no shopping center e a intensidade das relações construídas nas redes sociais… na internet, claro.
Chamamos de precários porque, como substitutos, tais espaços e mídias são frágeis no desempenho dos papéis reservados ao cuidador original, em termos de seu significado psicológico na constituição do sujeito (mesmo que sejam, eventualmente e de formas diversas, excelentes instrumentos e ambientes de aprendizagem). De uma forma ou de outra, produzida pelo distanciamento da família, esta outra faceta da autonomia revela (e reproduz) a solidão ruidosa de uma juventude engaiolada numa rotina fatigante e vigiada a distância.
Para a educação, os efeitos deste cenário tornam-se ainda mais fortes em vista do esvaziamento de experiências significativas para o aprendiz no cotidiano da escola e do superinvestimento da família e dos educadores no desempenho dos jovens em testes os mais variados. É constante na fala dos professores a queixa sobre a apatia observada em sala de aula, a indisciplina, a manutenção do respeito ao professor, a hostilidade entre colegas, bem como a proliferação de alunos com depressão, dislexia, transtorno de atenção e hiperatividade. No placar final, o desastre: 40% dos jovens que abandonam os estudos o fazem por absoluto desinteresse por aquilo que a escola lhes oferece (Fundação Getulio Vargas, 2010), e 80% das escolas públicas tem ficado abaixo da média no Exame Nacional do Ensino Médio Enem (2010).
Em vista do exposto, algumas questões interpelam aqueles que vivenciam a tarefa do ensino:
>Será a relação com os meus estudantes um vínculo efetivamente consistente para a montagem das bases de uma formação criativa do aprendiz?
>Em um sistema massificado e vivenciado como desinteressante pelos estudantes, seria possível engajá-los numa relação autoral com o conhecimento?
Novas configurações
As questões aludidas acima parecem figurações de uma crise sem antídoto, efeito de uma cultura que caminha mais velozmente e na contramão das tradições escolares. Impotente ante a força e extensão da problemática pontuada, a prática docente é sentida sempre como um tremendo esforço para bloquear a entrada da cultura de mídias na escola e “recuperar” os alunos perdidos para os ambientes e artefatos digitais.
Diante deste quadro, o vínculo emerge como questão que demanda dos educadores um trabalho de problematização e releitura. Isso porque as interfaces tecnológicas apresentam-se como uma linguagem mediadora não apenas da relação do sujeito com o conhecimento, mas, sobretudo, como um frame narrativo que marca, de modo inédito, novas formas de relação com o outro, inclusive com aqueles que representam os saberes instituídos: a escola.
A questão do vínculo professor-aluno na escola passa fortemente pelo investimento que o professor realiza no acolhimento de seus alunos, sendo tolerante com sua diversidade, promovendo sua singularidade e apoiando as formas variadas pelas quais aprendem, inclusive nos cenários ricamente digitais que fazem parte de seu cotidiano fora da escola e crescentemente dentro dela. Observe que, embora desejável, a realização desse projeto não requer, do ponto de vista do educador, o conhecimento do último dispositivo digital lançado no mercado ou do funcionamento da rede social que os alunos frequentam. Entretanto, pede que o professor abra mão de papéis que desempenhou até aqui. Nós, professores, não ocupamos mais o lugar de fonte privilegiada da informação, de responsável único pela validação dos conhecimentos em construção na sala de aula, ou mesmo de líder intelectual dos processos de aprendizagem na escola. Se desejamos construir com nossos alunos um vínculo afetivo e cognitivo que ajude a garantir para a escola um lugar no imaginário e no desejo dos alunos, devemos agir como estrategistas e empreendedores.
Definições
Como estrategistas, seríamos responsáveis pelos desenhos de práticas de ensino menos expositivas e mais dialogadas, menos demonstrativas e mais imersivas, mais sustentadas por perguntas interessantes do que em respostas prontas no livro didático. Em particular, podemos nos ocupar do desenho de cenários que possam transformar a lista de conteúdos curriculares em narrativas memoráveis. Afinal, por que mesmo Harry Porter ou Percy Jackson ainda não fazem parte do debate literário na escola, na mesma escala e importância com que ocupam o imaginário dos jovens fora dela? Parte do debate sobre o filme certamente estará nas redes sociais, mas não há nenhuma razão pela qual não possa existir presencialmente na escola, na forma de um cosplay1 literário que explorasse aspectos do livro que o educador adulto é capaz de capturar de formas alternativas àquelas dos alunos.
Como empreendedores, passaríamos a pensar a escola como um empreendimento. Nessa lógica, os alunos seriam os colaboradores de um projeto que teria metas mais claras, com missão mais interessante do que a de passar no vestibular ou satisfazer alguma burocracia escolar. Este empreendimento não é uma empresa no sentido tradicional (embora, claro, escolas possam ser empresas inseridas na ética de mercado), mas de um organismo ou organização inserida numa ética humanista, de experimentação e reflexão acerca dos arranjos emergentes na sociedade e de construção de cenários inovadores de aprendizagem. Se isso fosse possível, o professor teria um papel relevante como líder dos projetos eventualmente desenvolvidos na escola. Mas a escola – enquanto empreendimento educacional – requer profissionais realizadores e minimamente inovadores, atentos às possibilidades de formação dos jovens, assim como aos cenários de aprendizagem que emergem do burburinho das redes sociais. Como professores, estamos disponíveis e preparados para estes novos cenários?
Finalmente, a questão do vínculo professor-aluno na escola remete ao perfil de um educador que constrói vínculos com o seu tempo, com a positividade da forma de vida dos seus alunos. Um docente que ensina os modos diversificados de produzir conhecimentos a partir da informação disponível e que incita cada um a viver na tensão dialógica da posição de autor de seu projeto de vida.
* Luciano Meira é professor adjunto do departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Marina Pinheiro é psicóloga clínica e doutora em psicologia cognitiva.