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Entrevistas

A potência das diferenças

A favor do trabalho colaborativo entre as crianças, a psicolinguista Emilia Ferreiro fala sobre os impactos da tecnologia na linguagem e demonstra, por suas pesquisas, que a diversidade pode ser aproveitada em benefício dos alunos

Publicado em 02/07/2013

por Camila Ploennes

“Há muito tempo no Brasil, uma das discussões era como fazer para ter turmas homogêneas. Eu briguei muito contra as turmas homogêneas. Porque ninguém pode controlar o ritmo de aprendizagem de cada criança”, lembra Emilia Ferreiro, conhecida internacionalmente por sua vasta pesquisa na área de alfabetização. “Um dos temas que têm sido muito discutidos entre os professores agora é como trabalhar em pequenos grupos em sala de aula e como formar esses pequenos grupos”, diz a psicolinguista argentina, referência para a educação brasileira desde os anos 1980. Tamanho reconhecimento é devido, sobretudo, ao fato de a pesquisadora ter comprovado o processo cognitivo e psicolinguístico da aquisição da escrita, ou seja, do papel ativo da criança em seu aprendizado, em detrimento da visão tradicional concentrada no desenho da letra.


Em sua passagem pelo Brasil no mês de maio, quando lançou o livro O ingresso na escrita e nas culturas do escrito (Cortez), Emilia Ferreiro recebeu as subeditoras Camila Ploennes e Deborah Ouchana no hotel onde estava hospedada, na região central de São Paulo, para conceder a entrevista a seguir. Durante a conversa, a pesquisadora abordou questões tratadas em sua nova obra, como o multilinguismo no período de alfabetização e as tecnologias na educação. Segundo Emilia, pesquisas recentes têm se debruçado sobre como a variedade de línguas pode ser útil no trabalho pedagógico, em vez de um problema.








Gustavo Morita
Emilia Ferreiro no Brasil: as crianças estão desenvolvendo indicadores de confiabilidade para os sites na internet
Além disso, ela fala sobre como as crianças estão construindo indicadores de confiabilidade na internet, ou seja, encontrando maneiras próprias de identificar o quão sérios são os sites e as informações que acessam na rede. Aponta ainda que um dos desafios para os educadores é reconhecer e contar com a experiência das crianças e jovens com as novas tecnologias. E afirma que há uma busca excessiva e desnecessária por atualização dos aparatos tecnológicos nas escolas. Para ela, mesmo os computadores mais velhos podem ser muito úteis se tiverem um simples programa de edição de texto.


Doutora em psicologia genética pela Universidade de Genebra (Suíça), Emilia Ferreiro foi a única latino-americana orientada pelo psicólogo e epistemólogo Jean Piaget. Vivendo no México há mais de 30 anos, ela é pesquisadora emérita do Sistema Nacional de Investigadores e de sua própria instituição, o Centro de Investigación y Estudios Avanzados (Cinvestav) do Instituto Politécnico Nacional do México.


Durante sua apresentação na Educar 2013, a senhora falou que está orientando uma tese de doutorado sobre indicadores de confiabilidade que as crianças estão construindo em relação à internet. Quais são esses indicadores e como elas constroem isso?
Primeiro temos de entender qual é o problema. Nós crescemos na cultura do livro e construímos indicadores que nos permitem saber antes de começar a ler que isso é uma revista, isso é um livro, isso é um jornal. E também podemos dizer “esse livro é sério”. Pela maneira como é impresso, pelo desenho da capa, pela editora. Então, antes de começar a ler temos já uma série de antecipações sobre se vamos encontrar um livro com textos de ficção, com textos literários ou com textos informativos. E no caso dos textos informativos, podemos dizer se provavelmente a informação vai ser séria, responsável ou se é um lugar que apenas repete informações. Esses são os chamados indicadores de confiabilidade, que vão desde a aparência física do objeto, do autor, a editora, a tipografia utilizada, à qualidade do papel.


E na internet?
É muito difícil olhar um site e concluir se é um lugar confiável ou não. E quando se faz uma busca com fins de estudo, ou seja, achar uma informação que tenho de considerar como válida, é importantíssimo dizer se estou em um blog, no espaço de um organismo nacional ou internacional, se é um lugar em que qualquer um pode escrever o que quiser ou se é um lugar que tem informações controladas e não onde qualquer um pode colocar ali o que quer. Isso é muito importante para a busca de informações com fins de estudo porque se a professora lhe disse “busque na internet”, logo vai perguntar “por que elegeram esse site?”. Algumas professoras, ante o perigo, dizem “Busquem somente em tal e tal lugar”. Mas se elas indicam quais são os lugares, vão contra as regras do jogo do espaço da internet. Claro que sempre haverá um botão dizendo “quem somos”, mas que não diz nada quando clicamos nele. Dizem “somos maravilhosos, somos uma organização sensacional, vinculada aos direitos humanos, em busca da felicidade e tudo o mais”. Esse botão não garante tampouco a verdade. Por isso, o problema é relevante no que diz respeito aos modos de aproximação das novas tecnologias e em termos educativos. O que fazem os adultos, pelo menos alguns, é identificar os elementos da direção eletrônica (URL) que nos permitem ver se termina com “.org”, se termina com “.edu”. Esses finais estão carregados de informação em termos de confiabilidade. Mas para as crianças pequenas isso não significa absolutamente nada. Somente a partir de uns 12 anos elas têm ideia de que há muita informação nessas poucas letras finais para guiar-se. Os professores tampouco sabem distinguir um site confiável de um não confiável. É um tipo de conhecimento que não tem sido ensinado, nem é um objeto de discussão em nenhum âmbito. Simplesmente há de ir descobrindo. Afortunadamente está chegando a nova geração de professores que têm uma relação mais amistosa com as tecnologias.


A resistência à tecnologia era por medo do novo?
Era uma novidade assustadora. Era muito potente, mas era como se alguém que nunca dirigiu um carro tivesse sido colocado na Fórmula 1. Havia muito temor, não somente aqui. Na Espanha eu vi com muita clareza que instalavam os computadores, mas o uso era proibido até que os professores tivessem um curso de capacitação e, claro, a única coisa que isso gerou foi uma distância muito grande entre professores e alunos. Os alunos apaixonados pelas novas tecnologias e sem medo frente a elas e os professores com muito temor pedindo uma capacitação e não deixando serem ensinados pelos alunos. No espaço pessoal, essas mesmas professoras, quando tentavam usar o computador e não conseguiam, chamavam os filhos, os jovens. Mas no espaço escolar elas não podiam recorrer aos jovens porque perdiam a autoridade. Todavia, estamos em um momento em que os jovens são muito mais espertos que os adultos em relação às novas tecnologias e é natural que assim seja. E o melhor que pode fazer um professor quando tenta fazer funcionar um aparato tecnológico e não consegue é pedir ajuda para um aluno. E reconhecer que nesse território os jovens são mais competentes simplesmente porque nasceram com a tecnologia instalada na sociedade e isso muda completamente a visão. Está na sociedade, porque agora, nas séries e nos filmes, aparecem computadores, tablets e celulares a todo o tempo. Há muito o que pesquisar em termos de novas tecnologias e sua utilização para a pesquisa básica. Isso está em dois ou três capítulos do livro.


Por exemplo…
Um ponto é a utilização de certos recursos informáticos. O computador te ajuda porque vai analisar o dado número 540 do mesmo jeito que revisou o dado número 1. Um ser humano não pode fazer isso. Porque vai aprendendo e, à medida que vai aprendendo, vai mudando. E quando chega ao dado 520 não o analisa igual ao dado 1. O computador sim, porque ele não aprende. Outro ponto é a formação de alguém como escritor, alguém que pode produzir por escrito textos de diversos tipos. 

Na escola?
A revisão de texto é um trabalho essencial e há muitas práticas escolares que mudam totalmente quando o professor, em vez de reservar para si o papel de ser o único revisor da sala de aula, assume que todos podem revisar o texto, cada um dando seu ponto de vista, e o autor pode ou não levar em consideração o resultado da revisão. Para isso, qualquer computador ajuda, por mais velho que seja, porque tem um processador de texto. Se em uma escola há computadores velhos, sem acesso à internet nem nada, mas têm programas de edição de texto, isso pode ser muito útil para trabalhar processos de revisão. Agora, não há desculpa para deixar de fazer revisão de texto e comprometer as crianças nesse processo. É fácil, divertido. Pode-se fazer em duplas ou em trios e se pode fazer em máquinas novíssimas ou com máquinas muito velhas. Estamos jogando fora os computadores que foram colocados nas escolas no início. Não dá para aceitar a ideia de que temos de jogar no lixo todos os computadores a cada três anos. Por isso, algumas ONGs se interessaram pela reciclagem.

No México, fiz uma campanha de recuperação de máquinas de escrever mecânicas que estavam indo para o lixo, no momento em que as máquinas de escrever elétricas estavam sendo introduzidas nas universidades e nas empresas. Recuperamos aquelas máquinas para levá-las a escolas de comunidades rurais. O impacto foi magnifico. Era a chegada da tecnologia!


A tecnologia daquele momento…
Era mecânica, mas era tecnologia também. Porque parece que as novas tecnologias começaram ontem. E não! A tecnologia começou com a caneta; antes da caneta havia o lápis e antes dele tinha a pena… Tecnologia da escrita existe desde o início e a máquina de escrever foi uma tecnologia superinteressante que também foi rejeitada pelas educadoras, porque isso era trabalho para as secretárias. Havia uma profissão e um curso de mecanografia para aprender a digitar. Se tivessem trabalhado na máquina de escrever antes do computador, seria mais fácil porque o teclado é o mesmo. Mas “ah não! as máquinas fazem muito barulho e não podem entrar na sala de aula!” Um absurdo.


Em algumas pesquisas mostradas no livro, foi usado o recurso de entrevista com pares de crianças. Qual a importância desse recurso metodológico e da interação das crianças para a apropriação da escrita?
Há 30 ou 40 anos, não tínhamos experiência em sala de aula que acreditassem que as crianças contribuem para o seu próprio processo de alfabetização e que não é apenas o professor que sabe. O professor ensina o que considera que deve ensinar e a criança aprende o que pode aprender em cada momento de seu desenvolvimento. As interações são temas de muita reflexão das experiências sobre como potencializar as diferenças entre as crianças. Eu insisto nas diferenças entre as crianças porque é próprio de uma sala de aula ter diferenças e não ter todos iguaizinhos. Há muito tempo neste país, uma das discussões era justamente como fazer para ter turmas homogêneas. Eu briguei muito contra as turmas homogêneas. Porque ninguém pode controlar o ritmo de aprendizagem de cada criança. Um dos temas que têm sido muito discutidos entre os professores agora é como trabalhar em pequenos grupos em sala de aula e como formar esses pequenos grupos. Devemos formá-los com crianças que estão todas no mesmo nível de desenvolvimento? Procuramos as maiores diferenças possíveis? Ou procuramos diferenças que não sejam tão grandes, mas que permitam que as crianças se compreendam entre si, que a objeção de um seja entendida pelo outro? Esse é um tema de reflexão muito interessante e importante.


O que tem se mostrado eficaz?
O interessante de trabalhar em pesquisa básica com duplas de crianças é que há certos tipos de problemas que uma pode propor à outra. Se o problema é “quanto dá 2 mais 3?”, não tem jeito. Mas se é “como teremos de apresentar esse texto para que seja uma obra de teatro?”, aí não existe uma resposta única. Há várias respostas, que levam aos componentes básicos de um texto teatral. Em um texto teatral estão os nomes de quem vão ser os personagens, dos que vão tomar a palavra e se mover em cena, o que eles dizem quando participam e, depois, as indicações sobre os movimentos de cena e sobre os modos de falar. Como se distinguem esses três componentes? Há múltiplas soluções gráficas. Quando temos mais de uma criança trabalhando em um computador, o bom é que uma diz “colocamos isso em negrito”, a outra responde “não! É melhor aumentar a letra”. E o adulto quase não intervém. O adulto somente vai intervir quando há um impasse. Se não, as próprias crianças estão se questionando e abrem um leque de possibilidades sem que o adulto esteja perguntando “por quê? Por quê?”, o que é muito chato. Em todo o trabalho que fazemos atualmente, estamos sempre formando duplas de crianças. Em algumas, estamos usando grupos de três, mas o registro é muito complicado.


No livro, há um capítulo sobre multilinguismo que chama muito a atenção. Quais são as dificuldades geradas pelo multilinguismo na tarefa da alfabetização?
O problema é justamente esse. O capítulo trata de mostrar como em alguns lugares as educadoras têm conseguido transformar isso que era percebido como uma dificuldade em uma vantagem. Efetivamente na Europa, na última década, quando o continente se converteu em um lugar muito atrativo para os imigrantes, chegaram às escolas de países como Alemanha, Espanha, Itália e França muitas crianças que não falavam a língua desses países, e que era a língua oficial da escola delas. Isso gerou uma situação dificílima para as professoras porque elas não conseguiam se comunicar com essas crianças nem com as famílias. Não se entendiam sequer no nível dos gestos. Coisas como a comemoração do aniversário de uma criança eram um problema, porque em muitas culturas não se festeja aniversário. Então, ótimas professoras que eu conheço, tanto da Espanha como da Itália, sofriam. Na formação delas, isso nunca tinha aparecido como um tema de reflexão e de estudo. E agora que temos mais imigrantes do que nativos, o desafio é: como podemos fazer a variedade ser útil para o trabalho pedagógico.


Como?
Um grupo com o qual tenho bastante contato no norte da Itália me deu acesso a dados maravilhosos sobre como as crianças podem refletir quando damos a elas livros em diversas línguas sobre a mesma história. Permitimos que escutem a leitura em voz alta em diferentes idiomas, deixamos que confiram a mesma história em línguas distintas, mas, quando a história troca de idioma segue sendo a mesma história? Saíram coisas maravilhosas, por exemplo, diante de O pequeno príncipe, uma criança sabe que Le petit prince [nome original da obra do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry] é uma história que vem da França. E se perguntam: como se faz para ter essa história em italiano? É o mesmo príncipe ou é outro príncipe? Então começam a discutir que o petit prince só pode falar em francês e, se fala italiano, pode ser outro príncipe. Finalmente afirmam que é porque no mundo existem vários príncipes. Mas o Pinóquio é outra coisa. O Pinóquio só pode ser italiano, porque não se pode duplicar o personagem como se podem duplicar os príncipes. E então surge toda uma reflexão sobre a tradução que me parece fantástica, porque a tradução não é tema da Educação Básica em nenhum momento do currículo. Eu não conheço um país onde a tradução esteja no currículo.

Com crianças de 4 ou 5 anos, a tradução promete refletir sobre quais são os elementos essenciais de uma história e quais são os elementos que podem mudar, mas que ainda assim constituirão a mesma história. E como os sons podem mudar e, no entanto, conservar o argumento, o sentido da história. Essas crianças começam a refletir sobre a tradução e, quando sua professora lê em outra língua, um logo diz que muda a voz da professora, o outro diz que a voz é sempre a mesma, mas muda o som da voz. O livro mostra que as crianças com 4 ou 5 anos, nessas condições, conseguem fazer uma reflexão muito profunda sobre o que é ser estrangeiro.

Autor

Camila Ploennes


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