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Educação no Mundo

Bullying em japonês

Brasileiros que estudam no Japão relatam perseguições de colegas e professores;inabilidade do sistema escolar em lidar com as diferenças afeta os próprios japoneses, em uma sociedade que prioriza o grupo ao indivíduo

Publicado em 02/08/2013

por Thiago Minami







Corbis
Alunos na escola primária de Honkawa: cerca de dez mil estudantes brasileiros estão matriculados nas escolas públicas japonesas


Era uma data especial na escola de Akiko Uehara, 12, em Kiryu, interior do Japão. Os pais visitavam seus filhos no 5º ano do ensino fundamental para acompanhar o dia a dia da sala de aula, numa das atividades mais esperadas pelos alunos japoneses de todo o país. Até que entrou a mãe de Akiko e o burburinho começou: “olha só, uma ””gaijin””!”. A palavra pejorativa, que significa “estrangeiro”, marcava a origem filipina da mãe de Akiko. Começava ali uma série de perseguições e ofensas contra a menina por alguns dos colegas.


Cerca de um ano depois, no dia 23 de outubro de 2010, Akiko enforcou-se. Os pais decidiram levar o caso a público para evidenciar uma falha grave de um sistema educacional conhecido mundo afora justamente pela competência. A inabilidade para lidar com a diferença gera rejeição aos estudantes estrangeiros por parte dos colegas e, muitas vezes, pressão dos próprios educadores em relação aos alunos imigrantes.
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Problema comum
Este é um problema frequente na vida dos cerca de dez mil estudantes brasileiros matriculados nas escolas públicas do país (o maior grupo, seguido por chineses e filipinos). “Quando eu era criança, o diretor chamou meu pai na escola para falar sobre o meu cabelo cacheado. Ele queria que eu alisasse para ficar igual ao das outras crianças”, conta Daiane Oshiro, 25, que cursou o ensino básico e universitário no Japão. Nos países do leste asiático, que incluem também Coreia e China, a sociedade costuma colocar o grupo à frente do indivíduo – de acordo com o pensamento confucionista, trata-se de uma garantia de harmonia social. O lado negativo é que há pouco espaço para o diferente, atitude que acaba corroborada pelo sistema educacional.


A palavra japonesa “ijime”, o mesmo que “bullying” em inglês, é uma das primeiras a entrar para o vocabulário dos brasileiros que chegam ao Japão para trabalhar. As histórias de maus-tratos contra estrangeiros nas escolas, oriundas da rejeição à diferença, correm a comunidade, que hoje tem cerca de 200 mil pessoas, mas já chegou a picos de quase 400 mil. Nos casos mais comuns, as crianças ouvem ofensas como “Caia fora do Japão! Vá embora pro Brasil!”. Qualquer coisa pode ser motivo para gozação – desde falar japonês com sotaque até ter hábitos alimentares diferentes. Morena e de olhos nada puxados, Daiane conta que teve problemas para ser aceita pelos colegas. “Eu sofria maus-tratos e não tinha como contar para o meu pai, que só falava umas poucas palavras em japonês. E ele não tinha como se comunicar com a escola”, relata ela, em português fluente que só foi aprender na adolescência.


Alunos japoneses com algum traço diferente também sofrem. Estar acima do peso ou ter algum problema de saúde evidente são causas comuns para o bullying. Em 2012, o Ministério da Educação registrou 70 mil casos em todo o país. Muitas histórias, no entanto, são mantidas em silêncio por vergonha ou medo de retaliação. Em geral, os nipônicos evitam a exposição pública a qualquer custo, o que leva muitos jovens a sofrerem calados. Outros casos, como o de Akiko, tornam-se públicos pelo fim trágico.  Em 2009, um estudante de 14 anos, que sofria de problemas alérgicos, suicidou-se ateando fogo ao próprio corpo após ser perseguido pelos colegas.


Violência “educativa”
Em 2005, o Ministério da Educação lançou uma cartilha com conceitos e dados sobre o “ijime” – um marco importante, já que a educação pública japonesa é fortemente centralizada no órgão nacional. “No entanto, ações assim não incluem a conscientização sobre racismo ou sexismo que tornam imigrantes, minorias e garotas alvos fáceis”, contrapõe Cheiron McMahill, professora na Universidade Daito Bunka, em Tóquio.


Há ocasiões em que os próprios educadores causam a humilhação – o que foge à esfera do bullying ou ijime, referente apenas à agressão entre pares. Em 2012, na antevéspera do Natal, um garoto de 17 anos, em Osaka, enforcou-se após levar tapas na cara do treinador de basquete. Muitas agressões assim por parte de professores ainda hoje não são associadas pelos educadores a atos de violência, consideradas medidas de caráter educativo – em outras palavras, acredita-se estar fazendo um bem para o aluno. “Na escola de minha filha, foi feita uma campanha de prevenção contra o problema. Ao mesmo tempo, o professor de educação física constantemente enchia o saco de um gordinho, e outros professores seguiam a mesma linha, dando tapas na barriga dele, fazendo piadas na frente de outras crianças. Eles acreditavam que isso funcionaria como incentivo para que ele perdesse peso”, diz Cheiron.


Ações de combate
No caso dos estrangeiros, as ações para combater a discriminação ocorrem geralmente por iniciativa das prefeituras. Dentro e fora das escolas são realizados projetos para integração com os japoneses e festas de intercâmbio multicultural. Também são contratados intérpretes para ajudar as crianças nas aulas. Há casos em que a diferença cultural pode até pesar a favor – brasileirinhos bons no futebol, por exemplo, costumam ganhar o respeito dos colegas.


É pouco, no entanto, para dar conta de banir a discriminação, que está relacionada às próprias características do movimento migratório dos brasileiros ao Japão. As ações ignoram, por exemplo, que muitas crianças são nascidas no Japão e mal conhecem o Brasil. A falta de fluência em japonês – uma das principais dificuldades – às vezes se mantém pela vida toda. Além disso, o apoio após o ingresso na escola costuma durar somente algumas semanas ou meses e é dado por profissionais sem treino específico para a função, encarregados de fazer as crianças assimilarem os valores da escola japonesa o mais rápido possível. A situação só começou a mudar quatro anos atrás, com o oferecimento de curso on-line de graduação em pedagogia voltado a brasileiros que lidam com educação no Japão, elaborado pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), com apoio do MEC e a universidade japonesa Tokai. “Muitas vezes os pais ficam encantados ao verem seus filhos falando japonês após algum tempo na escola, mas se chocam quando veem as notas baixas”, explica Erica Muramoto, aluna do curso da UFMT e responsável pelo curso de adaptação da cidade de Tamamura, província de Gunma, uma das que mais concentram brasileiros. Ela avalia que são necessários de cinco a sete anos para dominar a língua em nível adequado para acompanhar bem os estudos. O resultado é a alta evasão de brasileiros ao fim do ensino fundamental, e às vezes até antes. Segundo a legislação local, apenas crianças japonesas têm obrigação de estarem matriculadas nas escolas.


Migração pendular
A distância que os jovens têm da família é mais um fator agravante. Para se adaptar mais rápido à escola, os estudantes precisam muitas vezes deixar de lado a cultura brasileira e a língua portuguesa, que frequentemente é a única falada pelos pais. Além disso, as condições de trabalho extenuantes nas fábricas, às vezes com turnos de até doze horas diárias, tornam raros os momentos juntos com os filhos. “A criança fica sozinha, sem ter a quem recorrer no caso de um problema”, afirma Mary Okamoto, professora de psicologia na Unesp e responsável por um programa que levou um trio de psicólogas brasileiras ao Japão para dar assistência às crianças ao longo de três meses.


Os especialistas são unânimes: aprender a língua japonesa e entender a cultura local ajudaria as famílias a apoiar os filhos. Por conveniência, os brasileiros vivem fechados em sua comunidade, quase num mundo à parte. Ao mesmo tempo, vivem de idas e vindas entre Brasil e Japão, no chamado “movimento migratório pendular”. Michel Kikumitsu, 17, sentiu na pele o significado desse conceito. Ao todo, ele passou 13 anos no Japão, onde nasceu. A dificuldade em se adaptar à mudança constante de ambiente escolar levou o garoto a, muitas vezes, usar a força para se afirmar perante os colegas. “Eu quebrava cadeiras, jogava mesas no chão. Era bem pavio curto. Mas isso me salvou de sofrer muito com o ””ijime”””, lembra ele, que agora vive com a mãe e as duas irmãs em São Paulo, onde cursa o segundo ano do ensino médio. Para ser aceito no Japão, Michel usou a habilidade nos esportes – bom de bola, ele sobressaiu nos times de futebol e basquete da escola e conquistou o respeito de colegas e professores. No Brasil, diz que o colégio não oferece as mesmas possibilidades. “Aqui tem poucas atividades para os alunos. Em comparação com a escola japonesa, parece que estou de férias o tempo todo”, diz. Michel, que agora fala português com apenas um resquício de sotaque, é atendido pelas psicólogas do Projeto Kaeru (veja quadro ao lado). Agora ele aguarda uma chance para retornar ao Japão, onde pretende trabalhar em fábrica junto do pai. “Não sei o que fazer daqui para a frente. Estou bem perdido”, reclama.


Numa fase da vida em que todos querem ser aceitos e sonhar com um futuro promissor, ser perseguido pela diferença e não enxergar perspectivas para a vida adulta são fatores que podem minar o desempenho escolar do jovem e deixar sequelas para sempre. “Precisamos de professores que entendam as diferenças culturais: de língua, de hábitos, de relações interpessoais. Também de profissionais treinados a quem se possa recorrer”, afirma Tomiko Nakashita, professora da Universidade de Saitama, que está no Brasil em pesquisa sobre a saúde das crianças brasileiras descendentes de japoneses. No Japão, muitas delas se encontram em situação peculiar frente aos colegas japoneses, com problemas como excesso de peso. Por opção dos pais, muitas vezes por dificuldade financeira, algumas crianças ficam fora do seguro-saúde do governo e têm dificuldade para serem encaminhadas ao médico pelos professores. Quando o assunto é atendimento psicológico, a situação é ainda mais complicada. No Japão, existem poucos psicólogos, tanto que não há graduação nessa área.


Além da escola, o comprometimento das famílias com a educação é fundamental. São os laços firmes com elas que garantem ao jovem a força para lidar com o desafio de se adaptar. Evitam também que casos como o da menina Akiko Uehara voltem a ocorrer.








O dilema da volta


Se a adaptação às escolas japonesas não é fácil, o retorno ao Brasil pode ser ainda mais traumático. A diferença de língua, relações sociais e cultura escolar frequentemente resultam em situações de maus-tratos. “Quando entrei na escola do Brasil pela primeira vez, aos 8 anos, não falava nada de português. Eu era xingado pelas outras crianças, mas não entendia nada – só sabia que era coisa ruim porque o tradutor me falava”, conta Michel Kikumitsu. Quando passou um ano no Brasil, durante a 6ª série, Daiane Oshiro conta que, como não compreendia português, o jeito para se enturmar foi beijar vários garotos. Sem se adaptar, ela acabou retornando ao Japão.


A atenção aos alunos chamados de “retornados” é insuficiente. Uma das iniciativas é o Projeto Kaeru, criado em 2008 em parceria com a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Um grupo de cinco psicólogas é responsável por assistir as crianças em escolas públicas. Por ano, são cerca de 500 atendimentos, além de workshops e alfabetização em português feita por voluntários. É pouco, no entanto, para dar conta de toda a extensão do estado de São Paulo. A situação é ainda mais difícil em outros estados, como Paraná e Mato Grosso do Sul, onde as crianças não têm praticamente nenhuma ajuda. “São só ações pontuais, feitas por indivíduos ou escolinhas de japonês. Muitos pais nos pedem ajuda, mas não temos como ajudar”, explica a psicóloga Kyoko Nakagawa, responsável pelo Kaeru.”O ideal seria que as prefeituras de Brasil e Japão fizessem parcerias para apoiar esses  estudantes. Mas não existe nenhuma tentativa desse tipo”, aponta Vinicius Murakami, coordenador de projetos da Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA) em São Paulo.









Uma história de sobrevivência


Quando chegou ao Japão, Rodrigo Igishi, 26, tinha apenas dez anos de idade. Ingressou na escola japonesa sem conhecer as regras e, na época, não havia intérpretes ou outros estrangeiros para ajudar. “Só podia conversar com meu irmão em português”, relata. Logo as retaliações começaram. “Colocavam tachinhas na minha carteira e no meu sapato. Escreviam na minha carteira: ””vá embora pro Brasil!”””, conta. Nos treinos esportivos, foi chutado pelos veteranos por não saber que deveria me dirigir a eles em linguagem respeitosa.


A situação só começou a mudar aos 16 anos. Rodrigo adoeceu com leucemia e ouviu dos médicos que suas chances de sobreviver eram de 50%. “Decidi então que, se sobrevivesse, eu me tornaria professor e lutaria pela educação dos jovens.” Dito e feito. O brasileiro passou no concorrido vestibular para uma universidade pública e logo começou a dar aulas de japonês aos brasileiros. Após se formar, conseguiu emprego em uma escola da cidade de Toyota, que concentra muitos imigrantes. Hoje ele se esforça para transmitir aos alunos a importância de valorizar a vida e respeitar a diferença. Aprendeu que ter crescido em meio a duas culturas é um ponto positivo. “Tenho o privilégio de ter uma visão mais ampla que os demais”, considera.


Rodrigo diz que o apoio da família foi fundamental para superar o bullying e a doença. “Apesar da correria diária, meus pais sempre me escutavam, davam conselhos e muita, muita força. Nunca me deixaram faltar à escola por causa do ””ijime””. Diziam: ””se você ficar fugindo agora, vai fazer o mesmo a vida toda. Seja forte e veja como pode melhorar””. Essa postura firme e confiante me dava conforto.”

Autor

Thiago Minami


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