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Políticas Públicas

Década encoberta

Dez anos depois da adoção do ensino de história e cultura africanas no ensino fundamental e médio, muitas escolas ainda resistem à adoção da lei, seja por preconceito racial e religioso, seja pela falta de formação docente

Publicado em 09/12/2013

por Fernanda Castro

iStockphoto


Há dez anos, os movimentos sociais ligados à questão racial ganhavam uma luta de séculos: levar para a escola a contribuição africana na formação da identidade brasileira. A adoção da Lei 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro-brasileira nos currículos do ensino fundamental e médio representou uma conquista. Mas, uma década depois, o balanço continua preocupante.


“Há avanços, mas se esperava um maior número de escolas e professores aplicando a lei”, diz Petronilha Silva, relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, publicada um ano depois da promulgação da lei. Não há dados precisos sobre quantos dos mais de cinco mil municípios brasileiros colocaram a lei em prática. Mas movimentos sociais ligados ao tema estimam que, na melhor das hipóteses, esse número chegue a 10%.


De acordo com Petronilha, estudos mostram que, embora tenha aumentado o número de professores envolvidos, são poucas as escolas que incluem a história e a cultura africanas e afro-brasileiras em seus currículos. Além disso, também há a tendência de abordar os temas ainda de forma pontual, em datas comemorativas da abolição da escravatura, em maio, e no dia da consciência negra,
em novembro.


Do lado das conquistas, há consenso de que a lei abriu caminhos para que a temática africana ganhasse visibilidade dentro do ambiente escolar, ampliasse a quantidade e a qualidade desses temas nos materiais didáticos, e aumentasse a oferta de linhas de pesquisas, especializações e cursos voltados para a história africana. Por outro lado, a visibilidade também descortinou resistências. De acordo com o Ministério Público Federal, durante o período foram identificados 93 autos extrajudiciais que versam sobre a não aplicação da lei em vários estados do país.


Tensão na religião
É na intolerância religiosa que a lei encontra seu maior obstáculo. Há relatos de que em escolas particulares, em especial as de origem confessional, há recusa em adotar a lei, por relacionar os temas africanos à “macumba”.


Em 2010, a Relatoria do Direito Humano à Educação, ligada à Unesco, investigou a intolerância às religiões de matriz africana no ambiente escolar. Foram registrados casos de bullying, manifestações preconceituosas e impedimento de usar símbolos. “Com a lei, o limite entre uma prática religiosa e cultural fica completamente confuso. Já presenciei escolas que diziam ser preciso acabar com a aula de capoeira”, diz Rosana Heringer, atual relatora da Unesco.


A intolerância religiosa, por sua vez, comumente mascara outra questão: o racismo. “As religiões negras, e tudo o que fosse considerado modos de cultura e de vida negra, foram perseguidas no contexto de escravização. Durante muito tempo essas práticas tiveram de ocorrer escondidas e longe dos centros urbanos, dos centros de valorização”, contextualiza Suelaine Carneiro, educadora, integrante da organização Geledés – Instituto da Mulher Negra e assessora da relatoria à época do estudo.


Rosana diz que no caso do racismo, de fato, as vítimas potenciais da intolerância religiosa são estudantes que praticam religião de matriz africana. “Essas são as religiões mais perseguidas no Brasil. É muito difícil trabalhar este tema, principalmente num contexto de uma escola ou professor que tenha uma religião dominante, seja a católica ou a evangélica.”


Responsável pelo suporte e treinamento em escolas à época da adoção da lei, a educadora Andreia Lisboa de Sousa, hoje doutoranda em educação na Universidade do Texas (EUA), lembra que o ensino religioso não está previsto na lei. “É importante destacar que a lei não propaga as religiões de matrizes africanas, mas propõe compreender, de forma ampla, os aspectos históricos e contemporâneos da história e cultura africana e afro-brasileira.”


O que ensinar
De qualquer forma, o que ensinar continua sendo um assunto delicado. “A escola e os currículos escolares que tenham um conceito de sociedade branca têm matado a identidade de muitas crianças, fazendo com que elas adotem uma identidade que talvez seja oposta à delas”, pontua a professora Petronilha Silva. Ela defende, porém, que isso não significa reduzir a história a apenas um grupo étnico. “Esta política não deve superar uma política educacional eurocentrada para priorizar uma política afrocentrada. O que ela quer é que todas as etnias sejam igualmente respeitadas.”


A lei prevê que o conteúdo programático deve incluir o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. É clara, ainda, no que diz respeito a quando ensinar: os conteúdos devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística, literatura e história brasileira. Rosana exemplifica. “A lei prevê questões ligadas ao debate do Brasil como uma sociedade multicultural, além de perspectivas variadas sobre questões da história do Brasil e da cultura brasileira, não baseando o país como uma matriz cultural primordialmente europeia.”


A educação para as relações etnorraciais é outra vertente a ser enfrentada. “Precisamos ver como nós, negros, brancos, indígenas e imigrantes em geral, nos relacionamos e produzimos desigualdade na sociedade para pensar ações para mudar isso”, diz Jaqueline Lima Santos, assessora do programa Diversidade, Raça e Participação da ONG Ação Educativa.


Para Petronilha, a escola ainda padece das influências históricas de seu surgimento, no âmbito da lógica colonizadora do século 16. “Trazida por jesuítas, a escola tinha o objetivo de tornar povos nativos cristãos e socializá-los para o trabalho. Até hoje, os estudantes continuam sendo convencidos a se comportarem como se fossem brancos. Eles são treinados a se comportarem, pensarem e defenderem grupos sociais que se opõem ao seu próprio grupo social”, disse a professora durante uma palestra no TED UFF, no Rio de Janeiro, no ano passado.


No âmbito desse debate, a necessidade de discutir esses temas pode, ao final, mudar o próprio ambiente escolar. “A lei veio para balançar os alicerces que a gente tinha de uma educação baseada em uma escola voltada para um modelo de criança”, diz Míghian Danae, professora de educação infantil na rede municipal de São Paulo e doutoranda em Educação na USP.


Andreia Lisboa concorda. “Até agora, todos os modelos de representação eram unidimensionais e isso não é democrático. Nas minhas viagens pelo país pude ver que o racismo existe; apesar das diferenças regionais ele está enraizado na nossa sociedade.”


Ainda o racismo
De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população negra é maioria no Brasil. Na pesquisa, 97 milhões de pessoas se declaram negras e 91 milhões de pessoas se declaram brancas. Ainda assim, não são raros os relatos de racismo no ambiente escolar.


Ao se encontrar com a mãe de um menino de 5 anos, Andreia ouviu o relato de que a criança chorava com frequência ao voltar da escola. Ele dizia que queria mudar de cor: “virar” branco. Desde muito pequeno, se julgava feio e queria pertencer a outro grupo étnico: os colegas faziam graça do seu cabelo. “Ele estava aprendendo que ser negro é ruim e ser branco é bom”, diz Andreia.


Para a pesquisadora, uma das análises mais equivocadas em casos como este é concluir que a própria criança está sendo racista. “Esta tem sido a análise de 99% dos professores com quem atuei nos programas de capacitação. Trata-se de uma análise errônea, racista e equivocada, que existe na mentalidade de muitos professores. Ela culpa a criança e tira a responsabilidade da escola, dos adultos e da mídia, que só mostram um modelo branco a ser seguido”, diz.


Cinco anos antes do surgimento da Lei 10.639, a educadora Eliane Cavalleiro detectou a existência de racismo velado em salas de aula da educação infantil. A pesquisadora percebeu que as crianças negras muitas vezes ficavam de fora de brincadeiras com representações de papéis de mãe e filha, por exemplo, por causa da diferença racial. “O modo como os professores concebem o cotidiano escolar e as relações interpessoais nele estabelecidas dificulta a percepção dos conflitos étnicos e, inclusive, a realização de um trabalho sistemático que propicie a convivência multiétnica, já que para elas esses problemas inexistem”, afirma Eliane, em dissertação defendida na faculdade de Educação da USP.


O racismo velado, portanto, ainda precisa ser enfrentado, inclusive pelos professores. “O racismo existe e está na sala de aula. O que eu vejo é que pela formação dos professores há uma despreocupação em relação ao tratamento de temas e situações do cotidiano ligadas ao racismo”, diz Marise de Santana, coordenadora do Grupo de Pesquisa Educação e Relações Étnicas: Saberes e Práticas do Legado Africano e Indígena – ODEERE.


O caso do menino expõe não só a desigualdade racial nas escolas, como também a falta da abordagem de heróis negros, seja nos livros infantis trabalhados nas escolas, como também em todo o currículo, como propõe a lei. “A gente sabe que houve avanços importantes no material didático, está melhor hoje do que alguns anos atrás. Mas esse ainda não se tornou um conteúdo amplamente trabalhado dentro da escola”, diz Rosana.


De qualquer forma, mesmo não abrangendo a educação infantil, a lei está começando a afetá-la. “Nessa etapa, a leitura em sala de aula sempre foi feita a partir de clássicos europeus. Agora vemos que essa ideia de clássico remete a uma cultura que não é a nossa e começa a ser contestada, assim como começa a ser contestado o modelo de educação para um único modelo de criança”, diz Míghian Danae.








Influência no Enem


Diante da resistência das escolas em aplicar a Lei 10.639, o Ministério Público Federal instituiu um grupo de trabalho em Educação. A estratégia atual é, em consonância com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), incluir questões sobre história da África e dos povos indígenas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O objetivo é induzir as escolas a abordar o tema em seus currículos, ou ao menos serem pressionadas pelos próprios alunos a fazê-lo. No último Enem, aplicado em outubro, seis questões versaram sobre o tema. O objetivo é chegar de cinco a oito questões por Exame.

Autor

Fernanda Castro


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