NOTÍCIA
Conceber a escola dessa forma pressupõe que seja regida pelo princípio da igualdade
Publicado em 02/12/2015
A reunião de pais congregava várias turmas e a pauta girava em torno de problemas aos quais a escola supostamente deveria dar mais atenção. Em meio às reclamações mais corriqueiras – como a qualidade da merenda ou a falta de professores – surgiu algo até então inusitado e que trouxe um silêncio àquele espaço eloquente. Uma mãe exigia providências em relação ao “roubo” de materiais por parte de algumas crianças. Passada a perplexidade inicial, outra mãe ponderou que se tratava de meninos e meninas de apenas oito anos de idade, que eventualmente poderiam ter se apropriado de algo que não lhes pertencia, mas não lhe parecia o caso de chamar tais ocorrências de roubo ou furto. Talvez bastasse pedir que devolvessem o material que pegaram por engano, sem autorização; orientá-los nesse sentido. A outra mãe, contudo, insistia na ideia de que deveriam ser tratados como “roubos”.
Cerca de quatro anos antes, em face de um auditório para o qual eu acabara de falar sobre educação e igualdade étnico-racial, ouvi de uma professora da educação infantil que mesmo crianças de quatro anos já eram racistas e pouco poderíamos fazer em relação a isso. Para corroborar seu ponto de vista narrou um episódio no qual um menino negro, após ouvir uma história que deveria ser encenada pela turma, pediu-lhe para fazer o papel do príncipe. Imediatamente ouviu de seus companheiros que, por ser negro, não poderia ser um príncipe. A professora os classificou de racistas, mas não insistiu para que o menino negro fizesse o papel de príncipe.
Separadas por quase uma década essas histórias têm algo em comum: recusam à escola seu fator distintivo, que é a configuração de um tempo e um espaço de formação. Afirmar que a escola é um tempo e um espaço de formação implica concebê-la como uma instituição que opera uma suspensão em relação às relações sociais cotidianas. Implica também que aqueles que a frequentam ainda não estão formados, mas em processo de constituição de suas subjetividades.
Quando acontece fora da escola, um ato de racismo ou discriminação racial deve ser tratado como um crime. Na escola, pode e deve ser concebido como mais um momento de formação. Ao cidadão cabe fazer o boletim de ocorrência. Ao professor, explicar à classe que há príncipes negros, que aquele menino pode fazer o papel do príncipe e que, ao menos naquele espaço, todos os alunos são iguais. Poderá mesmo explicar que a desigualdade étnico-racial marca profundamente nossas relações sociais, mas deverá mostrar (e não só falar!) que aquele é um espaço diferente, que parte do princípio da igualdade. E assim estará a um só tempo contribuindo para a formação de seus alunos e recusando qualquer estigmatização precoce e indevida.
Afirmar que a escola é um tempo e um espaço de formação implica, pois, concebê-la como uma instituição que permite a permanente reconfiguração de subjetividades que ainda se encontram em processo de constituição; que as atitudes presentes nas crianças e adolescentes com os quais lidamos não estão fadadas à permanência. Numa palavra, implica que a experiência escolar toma como pressuposto que as identidades não estão congeladas, mas em processo de construção. Por isso, de adultos esperamos que respondam por seus atos e palavras, mas às crianças oferecemos oportunidades para que os repensem e, assim, possam se constituir como pessoas capazes de um dia por eles responder com integridade.