NOTÍCIA
Colunista defende a importância de assumirmos nossa afetividade
Publicado em 14/12/2016
A noção de meritocracia muitas vezes está associada a algo que nasce apenas do esforço de um indivíduo em sua busca de superação e sucesso. Mas, na verdade, o mérito desse indivíduo não é fruto apenas do seu esforço. Há também o importante ingrediente da “fatalidade social positiva”.
Quem nasceu num contexto familiar favorável, quem teve uma alimentação saudável, quem estudou em boas escolas e, desde cedo, teve acesso a livros, viagens ao exterior, cursos de idiomas, viu muitas portas se abrirem gratuitamente diante de si. Poderia ter jogado tudo pela janela, sem dúvida, mas que teve sorte, sim, teve!
Um provérbio francês, bastante cético (ou extremamente realista), afirma o seguinte: “Mérito é mera besteira sem a ajuda do dinheiro”. A meritocracia é só metade da história quando os ventos sopram a favor. Meritocracia pura não existe.
Mas não era exatamente sobre isso que eu queria falar. Interessa-me pensar num outro tipo de meritocracia e numa outra espécie de janelas e portas: a meritocracia do sentimento, ou do coração.
Porque o mérito existe, sim, existe. É aquilo que me faz merecer uma recompensa. Curiosamente, séculos atrás, quem tivesse feito algo de errado também merecia… um castigo! “Mérito” valia para as duas situações. Quem acertava merecia aplausos. E quem errava merecia vaias. Hoje, o sentido negativo da palavra “mérito” encontra-se injustamente esquecido.
Se a meritocracia do sentimento existe, tem muito a ver com nossa liberdade. Sou responsável pelas emoções que cultivo. Sou responsável por minha afetividade. Uma pessoa raivosa pratica a raiva e deve responder por ela. Uma pessoa, por outro lado, pode tornar-se mais amorosa, e seu mérito residirá nisso.
O coração bate e apanha. O coração tem algo (ou muito) de incontrolável e imprevisível. Mas aí é que está o mérito de alguém que, conhecendo melhor as razões do coração, aperfeiçoa sua sensibilidade.
E haverá uma forma de “medir” o mérito da sensibilidade? A leitura de determinados textos literários pode ser um bom “termômetro”. Mesmo que breves, como na citação destes três versos de Atahualpa Yupanqui (1908-1992), poeta e músico argentino:
E o caminho lamenta
ser o culpado
da distância.
O caminho é a única forma de vencer a distância. Por que sente-se ele culpado por algo que não criou? Teria ele a culpa de obrigar o andarilho a gastar seus pés nesta caminhada? Pois é justamente esse o mérito do caminho. O caminho sente uma culpa que não é sua, mas nesse momento demonstra humildade e grandeza. O caminho sofre com o sofrimento do caminhante e se faz solidário. O caminho se torna digno de louvor pela beleza de seu sentimento.
A filósofa espanhola María Zambrano (1904-1991) escreveu um ensaio sobre a metáfora do coração. O coração como um espaço amplo e profundo em que se escondem indecifráveis sentimentos e de onde eclodem grandes decisões.
O coração é um órgão incomum. Sua nobreza está no fato de levar consigo (estas são palavras de Zambrano) “a imagem de um espaço, de um dentro obscuro secreto e misterioso que, em algumas ocasiões, se abre”. Só podemos abrir nosso coração porque ele está fechado em sua intimidade. Quem abre o coração para os outros demonstra, por isso, confiança, e inegável generosidade. Quem abre o coração tem o mérito de compartilhar a humana sensibilidade.
Vê mais longe quem vê com o coração. O coração vê, mais do que isso, contempla. Contempla em silêncio, pois não tem palavras precisas para expressar-se. O que só reafirma sua profundidade. Precisamos aprender a não calar o silêncio das emoções. Precisamos aprender a deixar que as emoções se manifestem do seu próprio modo.
Uma adequada educação sentimental (sem sentimentalismos) estimula a linguagem própria dos sentimentos, que até poderá recorrer às palavras… Mas de forma alguma está restrita às palavras nem delas será escrava. O sentimento fala no silêncio, no olhar distante, nos gestos, no sorriso, nas lágrimas. As lágrimas, de modo especial, contam histórias cheias de sentido sobre o mundo afetivo e suas mil possibilidades.
O aprendizado das lágrimas é disciplina fundamental para a educação do coração. Não ter a capacidade de chorar é um preocupante analfabetismo. Impedir o choro (na alegria ou na dor) cria becos sem saída. Ter vergonha de chorar é imaturidade. No livro Do diário de Sílvia, de Erico Verissimo, a sofrida narradora fala de suas lágrimas no velório do tio Toríbio:
[…] quando eu já tinha chorado todas as lágrimas que existiam dentro de mim — inclusive lágrimas antigas e reprimidas, de outros choques e desgostos […]
As lágrimas que existem dentro de nós precisam sair. Por muito tempo reprimidas, perdem o prazo de validade. Perdem seu momento de manifestação. As lágrimas ajudam a enxergar melhor. Ao saber de tristes notícias, ao ler um livro valioso, ao ouvir uma linda música, ao assistir a um filme forte, o choro mostra com eloquência que estamos enxergando o coração da realidade.