NOTÍCIA
Há um ciclo negativo se perpetuando na formação dos futuros mestres, mas bons exemplos rompem esse processo e apontam para um caminho de excelência que pode guiar outras instituições de ensino
Publicado em 17/12/2018
“É chocante, muitos professores novos não têm ideia de como se relacionar com os alunos. Chegam à escola com lacunas na formação, perdidos na própria especialidade.” O relato é do professor de física da rede pública Ricardo Pataro. A formação deficiente dos professores é identificada por especialistas como uma das causas da má qualidade do ensino básico no Brasil. Independentemente da avaliação, os resultados do país são sempre pífios: no Pisa, o Brasil ocupa a 65ª posição entre os 76 países avaliados na prova de matemática, e no Ideb o cenário é de estagnação.
O maior responsável pela qualidade do ensino básico é, claro, o governo, com seus enormes e complexos problemas estruturais de financiamento e gestão. Mas não há como negar que as IES, principalmente as da rede privada, têm um papel importante nesta equação e podem contribuir e muito para a melhoria do sistema. O Censo da Educação Superior indica que a maioria dos professores é formada em faculdades particulares.
A baixa atratividade da carreira também é um ponto complicado. Um estudo realizado pelo Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional) mostra que apenas 3,3% dos alunos de 15 a 16 anos (755 alunos, calculados com peso amostral) têm a intenção de lecionar . Dentre eles, 634 estão abaixo do nível 2 em matemática no exame do Pisa, 494 abaixo do nível 2 em leitura e 546 abaixo do nível 2 em ciências. Este é o nível mais básico de proficiência na classificação da OCDE, que realiza o exame mundial.
Há um ciclo negativo se perpetuando na formação dos futuros mestres, mas bons exemplos e boas práticas quebram essa cadeia e apontam para um caminho de excelência que pode guiar outras IES que desejam melhorar.
A educadora Bernardete Gatti, presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e uma das maiores pesquisadoras em educação no Brasil, diz que nos últimos 20 anos houve “um grande estímulo, de diversas formas, institucional e financeiro, às IES privadas”, que cresceram muito mais que as públicas; por isso que hoje temos a maioria dos cursos e alunos de licenciaturas e pedagogias em escolas particulares. Ainda de acordo com a especialista, tanto o monitoramento nas novas faculdades como a qualidade não acompanharam o ritmo do crescimento. “Houve uma liberalidade muito grande por parte do MEC, que permitiu a proliferação de muitas faculdades ruins. Tivemos, sem dúvidas, um ganho quantitativo, mas pouco ou nenhum ganho qualitativo”, diz.
Uma das soluções, de acordo com Gatti, seria uma mudança no sistema oficial de avaliação para se criar uma forma exclusiva e mais precisa de mensurar os cursos formadores de professores, pedagogia e licenciaturas. Para a especialista, a avaliação do jeito que é feita hoje é muito genérica e não dá conta de captar as especificidades de tais cursos em suas vertentes presencial e on-line. Com isso, o MEC tem dificuldade de cobrar melhorias das IES e as faculdades não conseguem visualizar com clareza as próprias deficiências, perpetuando falhas que poderiam ser sanadas com um diagnóstico mais efetivo.
O diretor do Instituto Ayrton Senna, Mozart Neves Ramos, concorda com a proposta, e acrescenta que, além de melhorar a qualidade, é fundamental ampliar a atratividade dos cursos e da carreira de professor. Ainda que, evidentemente, a responsabilidade em melhorar o salário e definir um plano de carreira mais atrativo para os professores seja do Estado, as IES podem e devem trabalhar em conjunto por pautas comuns. Em sua visão, as faculdades privadas podem sensibilizar seus alunos, professores e a própria sociedade em prol da melhoria da educação básica. Podem também atuar junto aos governos, sugerindo ações, e como parceiras. “Todos só têm a ganhar com a melhoria da educação básica no Brasil, inclusive as IES privadas, que formam a maioria dos professores e recebem a maior parte dos alunos do ensino básico”, explica Ramos. Ele complementa que o trabalho é desafiador por sua complexidade e variedade de fatores envolvidos, como “trocar o pneu com o carro em movimento”, mas é absolutamente necessário fazê-lo.
O desafio de formar e capacitar professores não é exclusividade do Brasil, tanto que o Banco Mundial (BM) e o braço da Organização de Estados Ibero-Americanos para a educação criaram um programa com o objetivo de orientar e apoiar o desenvolvimento de iniciativas inovadoras no âmbito da formação inicial e continuada de docentes. O projeto piloto, implantado em 2014 na Colômbia, com o apoio do governo e de diversas IES, acompanhou o trabalho em sala de aula e capacitou 73.077 professores em 12.497 escolas, sendo que 4.190 eram estabelecimentos educacionais de baixo rendimento. Os resultados já estão aparecendo e motivando a perenidade do programa, que deve, em breve, virar uma política de Estado.
Sobre o papel preponderante do Estado na valorização da carreira do professor de ensino básico, Márcia Andréa Schmidt da Silva, coordenadora da pós-graduação em Educação da PUCRS, crê que a baixa qualificação das pessoas que procuram os cursos de pedagogia e licenciaturas é reflexo direto do descaso com a profissão . “Pouquíssima gente quer ser professor, menos ainda entre os jovens bem preparados. E muitos dos que têm um ideal, um sonho, abandonam os cursos porque são de baixa renda”, avalia.
Mas, apesar da constatação desalentadora, a educadora é otimista. Dentre as medidas elencadas como elementares, Schmidt da Silva cita como possíveis de serem implementadas a definição de um plano de carreira claro e atrativo, com gatilhos no salário atrelados à formação continuada; mais empenho dos professores para se atualizar; e concursos mais exigentes. “Com ajustes, seriedade e vontade de todos os atores envolvidos, é possível melhorar nossa formação e educação básica.”
O Instituto Singularidades, que oferece cursos de licenciatura, pós, extensão e consultoria na área da educação, vem aprimorando sua expertise desde 2001. Ao longo dos anos, a metodologia de ensino e os currículos já foram modificados algumas vezes para se manterem atuais e relevantes. O diretor-executivo da instituição, Miguel Thompson, é aberto às mudanças e sabe que sua escola é um ponto fora da curva. “Como somos altamente especializados, temos sempre que estar na dianteira.”
Partidário da constante “refundação dos centros formadores de professores” para conseguir acompanhar as mudanças do mundo contemporâneo, ele entende que enquanto as faculdades seguem sendo muito compartimentadas e estáticas , a sociedade, o conhecimento e a informação são cada vez mais fluidos, mutáveis e intercambiáveis.
Um ponto crucial aplicado no Singularidades, e exaltado por outros especialistas ouvidos pela reportagem, é a ampliação tanto no tempo como na forma de fiscalização do estágio obrigatório de 400 horas exigido pela resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) de 2002. Outro diferencial são os diferentes modelos de aulas. “As licenciaturas, em sua maioria, são mais tradicionais que outros cursos. É preciso mudar essa mentalidade. O futuro professor não pode aprender da maneira como ele estudou em sua infância e adolescência. Tem que aprender diferente para saber como fazer isso depois”, diz Thompson. Diante desta premissa, os alunos do Singularidades têm cada vez menos aulas expositivas e uma carga maior de aulas e trabalhos em grupos, atividades performáticas e práticas.
Outro centro de excelência em formação de professores, o Instituto Vera Cruz, que oferece graduação em Pedagogia, diferentes pós em educação, cursos de extensão e consultoria pedagógica, reformulou drasticamente seu currículo há pouco tempo, e desde 2017 está trabalhando com o modelo novo. “Dizem que a graduação em Pedagogia deixa muito a desejar e que há uma faculdade em cada esquina. Há uma parcela de verdade nessa generalização”, admite Andréa Luize, coordenadora pedagógica e professora do Instituto. O principal objetivo da mudança foi aproximar os alunos com o dia a dia das escolas parceiras. Assim, os futuros professores acabam cumprindo mais que a carga horária de estágio exigida pelo MEC.
“Temos parcerias com escolas públicas e privadas. Como são instituições que trabalham há algum tempo conosco, desenvolvemos uma boa sintonia. Elas realmente fazem parte do processo de formação dos nossos alunos”, explica a coordenadora. As disciplinas do curso de Pedagogia foram reunidas em módulos temáticos e todo o conteúdo é passado por meio de trabalhos. Os futuros professores já aprendem utilizando as metodologias que irão trabalhar no futuro. Os alunos também têm de desenvolver projetos dentro das escolas em que atuam, sempre sob a orientação dos professores da casa e da faculdade.
O Censo da Educação Superior de 2017 traz dados importantes sobre o futuro da formação dos professores. Somente entre as licenciaturas, o percentual das matrículas a distância atingiu 46,8% em 2017, e a tendência é o EAD superar o ensino presencial em breve. Os dados mostram que não dá mais para discutir, planejar ou trabalhar a formação de professores sem incluir o ensino a distância na equação.
De maneira geral, os especialistas consultados pela reportagem não são contra o ensino on-line, mas defendem atualizações no conteúdo, na metodologia e a adoção de um modelo híbrido — com todas as 400 horas, ou até uma carga horária superior a isso, de residência pedagógica obrigatória cumpridas no dia a dia de uma escola e dentro de salas de aula. “Hoje o EAD continua sendo feito do mesmo modo que foi implantado, com vídeos expositivos, textos em PDF e a prova on-line de múltipla escolha. Não é suficiente, é preciso melhorar muito esse padrão”, constata Miguel Thompson.
Bernardete Gatti, presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, explica que os educadores não são contra o ensino on-line, pois isso seria ir na contramão dos avanços, seria um erro. Mas, por outro lado, ela afirma que “EAD do jeito que existe aqui no Brasil não tem mais em nenhum lugar do mundo, é algo muito ultrapassado”. Para Gatti, ou as faculdades formadoras se comprometem em um trabalho sério de atualização e melhoria dos cursos, ou “a situação pode fugir totalmente do controle, com impactos diretos na qualidade do ensino lá na ponta, ampliando o descompasso entre as escolas públicas e privadas”.
Thompson complementa e afirma que um dos maiores gargalos está justamente na gestão dos grandes conglomerados educacionais, que se fortaleceram com as recentes aquisições que o mercado vivenciou. “Os grandes grupos trabalham em escala e por isso têm mais dificuldade de romper com o atual modelo e inovar o ensino em EAD”, avalia. E essa complexidade acaba impactando centenas ou até milhares de cursos, que vão ficando defasados.
A pedagoga Heloisa Argento, coordenadora de Tecnologias Digitais na Educação no Colégio São Bento, no Rio de Janeiro, afirma que a tecnologia existente hoje possibilita experiências de ensino muito dinâmicas, com vídeos interativos, jogos, atividades colaborativas, uso didático das redes sociais, maior ênfase na comunicação visual, trabalhos transmídias e multidisciplinares, entre outras práticas que já existem no mercado. “Não é necessário reinventar a roda, mas é preciso fazer uma atualização e para isso basta usar o que já existe de mais moderno”, explica Argento.
Analisando a grande oferta de licenciaturas on-line, o educador Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, diz entender o lado das IES. “Os cursos de EAD são muito mais baratos tanto para as instituições quanto para os alunos, portanto a expansão seguiu uma lei de mercado”, avalia. Porém, como mais de 80% dos professores de ensino básico são formados nas instituições privadas, estas faculdades têm a obrigação de “subir o sarrafo” e melhorar a qualidade dos cursos ofertados. Ramos crê que é fundamental a presença de tutores bem preparados para a condução das atividades e principalmente a fidelização dos alunos. “A evasão no EAD é quase o triplo do presencial; é muito importante fidelizarmos esse aluno, incentivando-o e ajudando-o a se formar.”
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