NOTÍCIA
Humanize a sala de aula, crie um currículo Marie Kondo, dê autonomia aos seus alunos, não esqueça que isso vai passar e tenha esperança, orientam, neste artigo, duas educadoras da FGV
Publicado em 08/02/2021
Por Marina Feferbaum e Denise Andrade*: Não imaginávamos que o primeiro semestre letivo de 2021 seria uma continuação (tão semelhante) do ano passado — assim como sequer pensávamos um dia viver essa situação extrema de pandemia, que em março completa um ano.
Leia: Competências do professor do futuro. Como aderir?
O cenário geral tem sido muito duro para todos nós. Nas circunstâncias em que estamos vivendo, sem precedentes, para além da questão sanitária e de saúde, temos o descaso na condução das decisões políticas, econômicas e de educação no Brasil. Não há como essas condições instáveis e incertas não nos causarem angústia, afetando-nos emocionalmente, dificultando que planejemos nossas atividades, e no cenário do ensino superior, reflitamos sobre as aulas e retomemos a rotina com alguma tranquilidade.
Somado a isso, há diversas questões pessoais que cada professor e professora enfrenta, com circunstâncias econômicas e familiares delicadas, entes queridos que adoeceram ou morreram. Tudo isso influencia diretamente nosso ânimo e força de mobilização para voltar à sala de aula.
Diante dessas circunstâncias, muitos colegas nos perguntam: com tantas incertezas e conflitos, de onde tirar forças para iniciar o ano letivo? Bem, ao refletir sobre nossas vivências durante 2020 e a de outros docentes, listamos cinco aprendizados consolidados nessa pandemia e que entendemos fundamentais para seguirmos adiante (não é uma fórmula; são apenas os achados de duas professoras, que, com alguma sorte, podem auxiliar alguém que leia esse texto).
Leia: Queremos ardorosamente o ensino presencial. Mas por que mesmo?
1) Humanize a sala de aula. Devemos compreender nossos alunos e alunas como seres humanos completos, que vivenciaram uma experiência marcante e são mais do que estudantes e futuros profissionais. Eles(as) são pessoas que precisam ser acolhidas como seres inteiros, que estão passando por uma experiência complexa, sobreviveram aos 10 primeiros meses e ainda lutam com resiliência para seguir a vida. Portanto, valorize mais do que nunca o contato humano e o poder transformador dessas relações (estudante-estudante e estudante-professor/a), mesmo — e inclusive — online. Realizar atividades que as pessoas possam se sentir pertencentes, promovendo um espaço seguro de troca e escuta, pode proporcionar a tão falada humanização do ensino.
2) Crie um currículo Marie Kondo. Essa denominação, dada pelos professores Jal Mehta e Shanna Peeples, em referência ao método criado pela especialista em organização pessoal Marie Kondo, traduz bem como podemos reestruturar um novo currículo. Cada matéria ou tema que o compõe tem um propósito, sendo fundamental identificar o que é essencial que os alunos saibam hoje, para então planejar uma aula ou curso voltados às necessidades atuais. Por mais que haja temas que antes eram importantes e que ainda nos são caros, hoje podem não ser mais, constituindo um obstáculo para proporcionar um curso melhor. Devemos ter claro o que retirar, o que manter e o que incluir, e deixar, com tranquilidade, alguns assuntos partirem, pois já cumpriram seu propósito em um momento que fazia sentido e com os quais crescemos em nossa prática; porém, diante das transformações vividas nos últimos meses, é chegado o momento de abrir espaço em nossos currículos, e mais, em nossas cabeças, para as necessidades de hoje.
3) Dê autonomia aos seus alunos. Vamos radicalizar a autonomia desse espaço de aprendizagem. Deixe-os realizarem escolhas e confie. Quando der um exercício, acredite que eles o farão, que possuem condições, sim, de aprender sem que você, docente, esteja no controle. Uma das maiores lições que aprendemos em 2020 é que a vida será cada vez mais imprevisível, e, por vezes, instável. E para navegar bem daqui pra frente, devemos ter bastante independência para andarmos por nós mesmos, sem esperar, nem nos limitar, a que terceiros digam como e por onde ir. Assim será para os alunos também: compreender que nada na vida é definitivo, que o movimento é a regra e que a autonomia é a base de um bom profissional. Ah, e não os prendam em aulas intermináveis, transplantando a quantidade de horas do ambiente presencial ao online. A construção de conhecimento vai além das horas em que estamos conectados sincronamente.
4) Não esqueça que isso vai passar. Isso nos remete à parábola conhecida como A lenda do anel do rei, que pediu aos sábios do reino que lhe dessem uma resposta útil para todas as situações, boas e ruins, mesmo quando eles não estivessem presentes. Os sábios depois de conversarem e refletirem pensaram em uma frase: “Isso vai passar”. A ideia era lembrar ao rei, especialmente em situações extremas (fossem de regozijo ou agonia), que somos efêmeros, assim como as situações que nos envolvem: quando estivesse triste, se lembraria que ainda existe felicidade, e quando estivesse feliz recordaria que ainda haveria tristeza. Da perspectiva desse ensinamento, sabemos que todas as circunstâncias vão passar, tanto as ruins como as boas. Que saibamos usar esse momento delicado da humanidade para seguir adiante, sendo os melhores profissionais que podemos ser e valorizando mais os encontros, seja em sala de aula presencial, seja em sala de aula virtual, seja, inclusive, em contextos fora dela.
5) Tenha esperança. Não se trata de ser Poliana, nem adotar uma positividade ingênua, irreal e, até tóxica; porém, somente quando conseguimos projetar como queremos o futuro é que visualizamos nossos objetivos e, consequentemente, para onde queremos ir. Isso nos faz trabalhar em prol de realizar escolhas direcionadas a alcançar esse ideal, como o perfil de egresso para o mundo atual, o cumprimento dos objetivos de aprendizagem do curso que oferecemos ou qualquer outra escolha que façamos. Idealizar esse futuro é o primeiro passo para começar a construí-lo, porque é preciso ter um ponto de partida.
O contexto do ensino superior e as relações que se desenvolvem em sala de aula são poderosos. Não nos esqueçamos que, além de proporcionar condições para que os estudantes se sintam pertencentes, nós, docentes, também devemos nos apoiar. Estamos passando por situações semelhantes e desafiadoras, e não estamos sozinhos(as). Dialoguemos e fortaleçamos nossa rede de apoio! Que mesmo em meio a tantas dificuldades, incertezas e perdas possamos partilhar a nossa melhor versão docente em meio à pandemia, construindo juntos e juntas a melhor experiência de aprendizagem possível aos nossos(as) alunos(as). Um ótimo início de ano letivo a todos e todas.
*Marina Feferbaum é coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) e da área de metodologia de ensino da FGV direito SP, onde também é professora dos programas de graduação e pós-graduação.
* Denise Andrade é professora do mestrado acadêmico e da graduação em direito da Unichritus e professora da FGVLaw – SP.
“Vivemos uma crise de identidade e valor do ensino superior”
Ex-ministro da Educação critica: Brasil é um país apaixonado pela abstração