NOTÍCIA

Edição 270

A ciência do século 21 será aberta e acessível a todos

Coordenadora geral de pesquisa e manutenção de produtos consolidados no Ibict, Bianca Amaro tem se dedicado às questões que envolvem o acesso aberto a produções científicas desde 2003

Publicado em 21/10/2022

por Sandra Seabra Moreira

Bianca Amaro "A ciência brasileira precisa de divulgação", afirma Bianca Amaro (Foto: divulgação/Ibict)

Bianca Amaro é doutora em Linguística Aplicada, trabalha há 35 anos no Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, o Ibict, onde é coordenadora geral de pesquisa e manutenção de produtos consolidados. Entre suas atividades, Bianca tem se dedicado às questões que envolvem o acesso aberto a produções científicas desde 2003 e à ciência aberta, temas abordados nesta entrevista. A tecnologia tem propiciado o compartilhamento de todo tipo de informação e conhecimento e os muros da ciência vão cedendo aos poucos a essa grande transformação mundial.

Bianca também é presidente da La Referencia – Rede Federada LatinoAmericana de Repositórios Institucionais de Publicações Científicas, portal que reúne produções científicas de acesso aberto dos países latino-americanos. O Ibict é pioneiro nos movimentos de acesso aberto e ciência aberta, contribuindo de maneira decisiva para o rompimento de barreiras entre a pesquisa científica e a sociedade, inclusive criando e gerenciando o Oasisbr – Portal Brasileiro de Publicações e Dados de Pesquisa em Acesso Aberto, conforme veremos a seguir.

 

O que é o movimento de acesso aberto?

O movimento de acesso aberto nasceu com a declaração de Budapeste, em 2002. Na verdade, há três declarações conhecidas como as que fundaram esse movimento. A primeira foi a declaração de Budapeste, a segunda foi a declaração de Bethesda e a terceira, a de Berlim. Nelas, está desenhada toda a questão do que se queria dizer sobre acesso aberto à informação científica. O movimento prevê que todos tenhamos acesso aberto à literatura científica.

 

Quais fatos levaram ao movimento de acesso aberto? 

A maior parte da literatura faz parte de revistas científicas com assinatura, cujos valores são astronômicos, muitas vezes similares aos valores de um carro de luxo. Não somente nós, mas também os países desenvolvidos começaram a ter problemas. As bibliotecas de universidades, inclusive as de Harvard e Sorbonne, tinham dificuldades para pagar essas assinaturas. Foram eles que se uniram e conceberam o movimento de acesso aberto à produção científica. Envolve acadêmicos do mundo inteiro, tem mais força na Europa, onde foram criadas as declarações fundantes, mas é do mundo inteiro.

 
Leia: Quando a Ciência é… Comunitária

 

O Ibict tomou conhecimento por intermédio de Hélio Kuramoto, hoje em dia já aposentado, que trouxe a ideia para implantarmos no Brasil, o que caiu como uma luva, porque se eles estavam com problemas para pagar assinaturas, imagine nós. Então, a ideia é não ter que pagar e poder compartilhar documento e texto completo – não somente referência. Uma premissa importante dentro da filosofia do acesso aberto é que tudo aquilo que é produzido com dinheiro público precisa estar público. Exigimos muito isso em relação a outras áreas governamentais. A sociedade tem o direito de ter essa resposta.

 

Quais as estratégias para a implantação?

No mundo todo, o movimento prevê a atuação por meio de duas estratégias. Uma é a via dourada: os autores passam a publicar seus artigos em revistas científicas eletrônicas, de acesso aberto. Aquelas que não cobram para publicar e também não cobram para deixar em acesso aberto e, a partir desse momento, a pesquisa fica livre para qualquer pessoa. No mercado das revistas científicas, o pesquisador paga para publicar; muitas vezes o pesquisador paga apenas para submeter o artigo para ser avaliado pelos pares e a pesquisa nem é publicada. Esse é o modelo de negócio das editoras comerciais. As editoras científicas estão cada vez mais ricas e nós, que somos os produtores do insumo dessas revistas, cada vez mais pobres. Muitas vezes, as instituições não têm recursos para pagar a publicação e o resultado de uma pesquisa não vem a público por isso.

A outra estratégia é a da via verde: uma vez publicado o artigo numa revista científica, ou o pré-print – aquilo que o pesquisador envia para a revista antes da publicação –, ele a deposita em repositórios institucionais de acesso aberto.

 

Qual a importância dos repositórios institucionais? 

Um repositório é uma base de dados. O repositório institucional é onde se reúne a produção científica de cada universidade. Uma das funções desses repositórios é auxiliar na própria gestão da produção científica, é tornar conhecida a produção científica da instituição. É uma resposta à sociedade porque ali fica exposta a maneira como a instituição está investindo em ciência. Outra questão importante é que a partir dos repositórios é possível preservar o material que está ali guardado. Uma das questões-chave para mim atualmente é o processo de preservação, porque hoje em dia não temos mais o papel, as revistas impressas. Como será pesquisar daqui a cem anos o que foi produzido hoje? Então, temos que pensar na questão da preservação digital para que as gerações futuras possam ter acesso e há pouca preocupação com isso.

 

O Ibict teve papel importante na criação desses repositórios? 

Sim, o Ibict auxiliou muito na criação desses repositórios em instituições públicas federais, estaduais e municipais, em todos os âmbitos. Interessa que a produção científica seja disponibilizada a todos. O material contido neles é coletado automaticamente para um grande portal que junta todas essas informações, o Oasisbr – Portal Brasileiro de Publicações e Dados de Pesquisa em Acesso Aberto (Oasisbr.ibict.br). Ele foi criado e é gerenciado pelo Ibict para reunir toda a produção em um mesmo local.

É um portal que hoje contém mais de quatro milhões de fontes documentais provenientes da produção científica brasileira. É possível realizar download desses documentos sem custo. Temos outro sistema que é a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), que reúne esse material das universidades e institutos de pesquisa. É um sistema à parte, mas o que tem no BDTD é coletado pelo Oasisbr e também o conteúdo de várias revistas de acesso aberto. Por isso temos esse volume incrível de todas as áreas que pode ser consultado livremente.

 

E a ciência aberta, o que preconiza? 

O mundo viu que era muito interessante compartilhar. Os avanços tecnológicos trouxeram essa ideia de compartilhamento na sociedade como um todo. Um bom exemplo é o YouTube: sem cobrar nada, uma pessoa posta um vídeo explicando como faz para ligar um telefone. Os cientistas começaram a pensar que seria interessante compartilhar tudo, e criaram aquilo que chamamos de o guarda-chuva da ciência aberta. E então não é só o acesso aberto à produção científica, mas sim a outros elementos que compõem o ciclo da ciência, tudo o que a envolve. Aqui, estamos falando também de dados científicos abertos, de revisão por pares aberta, softwares abertos, de um conceito bastante novo que é o da ciência cidadã.

São as redes sociais científicas como o portal do ResearchGate (www.researchgate.net), de recursos educacionais abertos e até dos cadernos de pesquisa abertos, todos pilares da ciência aberta. Estes últimos ainda vão demorar. Até que todos tenham consciência de que é uma via importante, o acesso aberto a esses cadernos de pesquisa vai demorar, terá muita resistência, demandará trabalho duro. Não vou ver, estarei aposentada ou talvez já terei morrido. Nesses cadernos se apresenta passo a passo o caminho percorrido pelo pesquisador. Terá muita resistência por causa da ideia que os pesquisadores têm de que vão lhes roubar a pesquisa.

 

Você já mencionou o acesso aberto. Com quais outros pilares da ciência aberta o Ibict está trabalhando neste momento? 

Agora trabalhamos com as questões relacionadas aos dados de pesquisas. Nas ciências humanas ou exatas, toda pesquisa trabalha com dados. Estamos construindo repositórios desses dados de pesquisa. Ou seja, a pesquisa gerou dados e eles são colocados nos repositórios para que sejam reutilizados por outros pesquisadores. Inclusive porque a fase que demora mais numa pesquisa é a coleta de dados e também é a que custa mais. Por exemplo, o pesquisador estudou a formiga, queria saber a média do tamanho das patas, pois tinha a teoria de que elas têm tamanhos diferentes. Outro pesquisador quer estudar aquela mesma formiga e sua hipótese é em relação à cabeça das formigas; ele vai utilizar os dados já coletados para estudar a cabeça. São aspectos diferentes do dado. E a coleta de dados está diretamente associada ao resultado da pesquisa.

Acreditamos muito naquilo que está escrito na metodologia apresentada nos artigos científicos, mas nem sempre essa metodologia leva àquele resultado. Se o pesquisador tem os dados, pode reproduzir a pesquisa, para saber se, de fato, com aquela metodologia se alcança aquele resultado. Tanto o acesso aberto quanto a ciência aberta trazem mais qualidade às pesquisas. Por quê? O que o pesquisador tem de mais precioso? O nome. Então, ninguém vai publicar ou deixar o acesso aberto a algo de má qualidade. Nesse caso dos dados, a mesma coisa. Deixando os dados abertos, alguém vai poder pegar aquela metodologia, seguir passo a passo, e ver se o pesquisador chegou mesmo àquele resultado. Se existe resistência ao acesso aberto à produção científica, imagine em relação aos dados de pesquisa.

 

O que é e como funciona a rede La Referencia, da qual você é presidente? 

A rede La Referencia é um portal que agrega pesquisas científicas de países da região latino–americana, com participação também da Espanha, que achou muito interessante a iniciativa e quis entrar. Assentimos, mas avisamos que não mudaremos a caracterização da rede, que é latino-americana. Reunimos toda a produção científica de acesso aberto da América Latina, o que amplifica enormemente a visibilidade das pesquisas brasileiras junto à comunidade latino-americana. O conteúdo de La Referencia é coletado por uma iniciativa europeia de agregação que se chama Openaire (www.openaire. eu). Ou seja, a produção científica brasileira se torna visível para o Brasil, para a América Latina, para a Europa. A pesquisa de uma universidade pequena brasileira fica visível na Europa.

Uma coisa que precisamos ter é visibilidade para pesquisa que é feita aqui. No início do movimento de acesso aberto, eu ia fazer palestras e tinha que escutar do povo do Norte que o Sul não produzia ciência, apenas consumia. E esse movimento trouxe para nós a visibilidade: sim, aqui se faz ciência, e de alta qualidade. Só temos a ganhar com esses movimentos, isso tenho muito claro, só temos a ganhar com a visibilidade nacional, regional, internacional.

É importante que o Brasil, como líder da ciência na região, seja um exemplo. Acho um grande equívoco que as pós-graduações das universidades, inclusive das instituições privadas, não estejam acompanhando todo esse movimento do acesso aberto. Porque a visibilidade que o movimento de acesso aberto provê é importante não só para o pesquisador, mas para a instituição também. É importante para os recém-mestres e recém-doutores que ainda não são conhecidos pela comunidade e que podem participar da mesma maneira que um doutor sênior.

 

Os pesquisadores ainda dependem bastante da publicação de artigos nas revistas científicas. Como isso pode mudar? 

Sim, a forma de avaliação do pesquisador é muito relacionada a onde ele publica, e em geral essas revistas são comerciais. Na hora de avaliar pesquisadores, ainda somos reféns das chamadas revistas de alto impacto, que são exatamente as revistas de editoras comerciais. É uma política equivocada. É preciso mudar a cabeça de todos que conformam a cadeia da produção científica, em relação ao resultado e também na produção de pesquisas. Isso está ocorrendo no mundo todo. As grandes agências de fomento, como a americana National Science Foundation, ao financiar a pesquisa, exigem que o resultado fique em acesso aberto. Temos que mudar cabeças; trata-se de avançar na maneira como a ciência é feita hoje.

O mundo inteiro e o Brasil estão discutindo novas formas de avaliação dos pesquisadores, tomando como base as ações relacionadas ao acesso aberto, e não apenas por meio de todos esses índices e indexadores internacionais. Para tanto, no Brasil, o Ibict propôs à OGP – Open Government Partnership, iniciativa internacional da qual o Brasil faz parte, e é gerenciada pela Controladoria Geral da União (CGU) – como um dos planos de ação para este ano, a criação de um modelo de avaliação que contemple as práticas de ciência aberta. Nesse sentido, estamos reunidos com Fiocruz, Embrapa – a SBPC ainda não conseguimos –, CNPq, Capes, Finep, Confap, universidades, realizando discussões muito interessantes e até final de dezembro devemos tirar uma proposta.

 

O pesquisador pode não querer sua pesquisa em acesso aberto? 

Ainda pode, porque infelizmente não temos uma legislação nacional que trate do tema. É uma lástima. Vários países da América Latina já possuem lei de acesso aberto ou ciência aberta. O Ibict está tentando desde 2007 que seja aprovada uma lei, naquele tempo relativa ao acesso aberto, hoje em dia relativa à ciência aberta. Mas até agora não foi aprovada. Um exemplo de uma boa lei é a da Argentina. Inicialmente, tomou como base para sua redação o projeto de lei brasileiro, e lá foi aprovada. O projeto de lei brasileiro é moderno, porque trabalha tanto com a produção científica quanto com os dados, determinando a criação de repositórios de um e de outro e a obrigatoriedade do depósito nos repositórios. Precisaria que fosse obrigatório que os pesquisadores depositassem a produção científica e seus dados, salvaguardadas as exceções. Isso ainda não é obrigatório.

 

Quais são as exceções? 

Acompanhando essa evolução da ciência aberta existe uma frase que é basilar: a ciência deve ser tão aberta quanto possível e tão fechada quanto necessária. Por exemplo, materiais sigilosos referentes à segurança nacional não devem ser abertos. Uma dessas exceções também é a pesquisa que pode vir a ser uma patente. Esse tipo de material não entra e nem deve estar num computador conectado à internet, porque sabemos que há pirataria e alguém realmente pode roubar. É algo que realmente não deve estar em acesso aberto. Também o que já está firmado por contratos de direitos autorais, com editoras, por exemplo.

 

Leia: Ensinar é também um ato político

 

Autor

Sandra Seabra Moreira


Leia Edição 270

Bianca Amaro

A ciência do século 21 será aberta e acessível a todos

+ Mais Informações
image-2

A virada da Fundação Santo André

+ Mais Informações
pexels-rodnae-productions-7413915

Inovações na educação e melhora no ensino

+ Mais Informações
ES_capa_page-0001

Destaques da edição de outubro da Revista Ensino Superior

+ Mais Informações

Mapa do Site