NOTÍCIA

Edição 276

Os atributos da boa governança segundo o IBGC

Luiz Martha, gerente de pesquisas e conteúdo do IBGC, elenca os atributos de uma boa governança e conta um pouco da história do Instituto

Publicado em 06/07/2023

por Sandra Seabra Moreira

Luiz Martha Luiz Martha, do IBGC, é o entrevistado da edição 276 (foto: divulgação/IBGC)

O assunto aparece e desaparece da agenda dos gestores ao longo do tempo, mas uma certa emergência por discutir e compartilhar ideias acerca dele se anunciou nos últimos anos, com o boom do ESG. O “G” da sigla é a senha para uma imagem de confiabilidade e segurança. Os processos de governança, quando praticados em sua essência, satisfazem empreendedores, investidores, colaboradores, clientes, fornecedores, enfim, todos os stakeholders. E impactam positivamente a sociedade.

Há vinte anos atuando no IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – Luiz Martha é, hoje, o gerente de pesquisas e conteúdo. Ele é formado em administração de empresas pela Faculdade de Economia e Administração da USP, com MBA sobre relação com investidores, especializado em direito societário, área bastante vinculada à governança. Nesta entrevista, Martha elenca os atributos de uma boa governança e conta um pouco da história do IBGC. Ele também detalha as dificuldades geradas pela cultura local, caracterizada pela concentração do poder decisório e pelo grande número de organizações familiares.

 

O conceito de governança surge a partir de quais necessidades das organizações?

A governança surgiu como uma forma de alinhar interesses. As empresas começaram a crescer muito e os sócios não conseguiam mais acompanhar o dia a dia das organizações. Falando de Estados Unidos e Reino Unido, que é onde apareceu mais fortemente essa discussão, os sócios eram numerosos e tinham uma participação cada vez menos relevante, cada um deles com potencial pequeno de acompanhar o dia a dia da companhia para monitorar e supervisionar os gestores, os conselheiros, os executivos. A governança surgiu como um sistema para fazer com que os executivos e os conselheiros atuassem no melhor interesse da companhia e não nos seus próprios interesses.

Alguns procuravam maximizar o seu benefício, faziam o que protegia o seu posto, o seu cargo, o que aumentava a sua remuneração, e não necessariamente aquilo que gerava valor para a empresa e aos acionistas. O poder diluído dos acionistas não propiciava a organização para a fiscalização e orientação. Então, a governança traz uma série de recomendações para fazer esse alinhamento de interesses, mostrar que o interesse da companhia precisa ser preservado e que esses mecanismos ajudam a que todo mundo tenha esse objetivo comum em mente e atue a partir dele.

 

A governança faz sentido para empresas de capital fechado?

 

Sim. Faz sentido não só para as empresas de capital fechado como para outras organizações, como fundações, por exemplo, que são organizações do terceiro setor. Porque, apesar de nascer nesse universo empresarial, de empresas de capital aberto, listadas em bolsa, a governança foi evoluindo para tratar dessas questões de conflito de interesses que também podem acontecer numa empresa de capital fechado. Há conflitos entre o sócio majoritário e o minoritário, entre os membros da família, entre o sócio que está na gestão e o que não está na gestão, partes que às vezes podem ter interesses diferentes.

A governança vem se expandindo justamente porque suas práticas e principalmente seus princípios são adaptáveis a qualquer tipo de organização. É para alinhar interesses, para organizar como as relações acontecem dentro da administração da companhia e fazer com que elas aconteçam da melhor maneira possível, para que os objetivos da organização sejam alcançados.

Uma prática ou outra pode não se aplicar porque é muito específica para uma empresa listada em bolsa, por exemplo. Também há legislação e regulação específicas do setor, que proíbem ou permitem determinadas coisas, e são necessárias adaptações. Mas os princípios da governança – transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa – se aplicam a qualquer organização.

 

Quais são as principais dificuldades das organizações brasileiras para conseguir implantar e agir de acordo com os princípios da governança corporativa que você acabou de elencar? Há entraves culturais?

Há uma diferença bem relevante principalmente quando falamos de organizações privadas. É a questão da presença de um acionista majoritário, menos comum no ambiente americano ou do Reino Unido. No Brasil, geralmente há um sócio controlador, que fundou a organização, que a fez chegar até aonde está. Quando se começa a falar em governança, há a divisão de poderes e responsabilidades e isso impõe uma transição cultural bastante grande. A pessoa está acostumada a ter todos os chapéus – dono, gestor, executivo – e precisa começar a dividir esses chapéus, porque ela não dá conta de administrar tudo sozinha. E, aí, monta-se o conselho, a pessoa sai da gestão e vai para o conselho, o processo decisório é colegiado, a pessoa já não decide mais tudo sozinha – é um processo bem penoso.

 

É difícil abrir mão do processo decisório?

 

É uma dificuldade que enfrentamos no Brasil e que é diferente de outros lugares, onde já existe o pensamento “eu não sou o dono de tudo, eu não sou o único decisor, eu sou o dono de um pedacinho e eu tenho alguns direitos e responsabilidades”. Além disso, no Brasil, a maioria das organizações, de qualquer setor, nasce e se desenvolve como familiar. As questões familiares acabam influindo no ambiente empresarial. É outra dificuldade que é mais presente aqui do que em outras localidades.

Surge, então, a governança familiar, de empresas familiares ou governança de famílias empresárias, dependendo da nomenclatura, com o objetivo justamente de evitar que os conflitos de família interfiram na empresa e que os conflitos da empresa interfiram na família. Há famílias que acabam por conta da empresa e empresas que acabam por conta da família. Essa separação das questões de família e de negócios precisa ser bem tratada para que as coisas funcionem adequadamente.

 

Você pode detalhar os princípios da governança?

São quatro princípios. Equidade: tratar as pessoas, seus stakeholders, de maneira justa. Transparência: oferecer informação para as pessoas poderem decidir com segurança. Prestação de contas: quem tem poder decisório se responsabiliza de fato por fazer aquilo acontecer e pelas consequências. E a responsabilidade corporativa: pensar não só no resultado econômico, mas pensar na organização dentro de uma sociedade, então, é preciso olhar para questões sociais e ambientais. São questões que talvez sejam básicas para todo mundo: garantir confiança nas informações, sejam elas financeiras ou não financeiras. Estamos falando de criação de instâncias de decisão que possam olhar mais para o futuro, que é um dos papéis dos conselhos, por exemplo. É sair do dia a dia, pensar um pouco menos focado na mão na massa e questionar: para onde estamos indo? Para onde deveríamos ir? O que vai impactar o nosso negócio?

Há, então, uma separação de papéis, há uma instância olhando isso e uma instância olhando de fato a gestão do dia a dia, tomando conta dos processos. Na organização familiar é mais importante ainda separar os papéis, quem está na gestão, quem não está, quem toma decisão e quem não toma, que patrimônio é de quem. Separar claramente os patrimônios, não deixar que se misturem. O familiar não pegará do caixa da organização o recurso para viajar no fim de semana, nem a organização pegará dinheiro emprestado da família quando faltar para fechar o caixa no fim do mês.

 

A governança é um processo contínuo?


Sim. Governança é uma jornada, não um destino. É preciso sempre rever, aprimorar e adaptar às necessidades. Cria-se uma estrutura de governança que atenda hoje, e amanhã ela muda, porque a organização cresceu, ou foi vendida, o grupo de sócios é diferente. Ou, por exemplo, surge uma nova regulação setorial que exige mudar as práticas de governança para se adequar a uma nova realidade. Então, é um processo contínuo. Nós até recomendamos que haja um responsável para constante avaliação da adequação da governança ao momento atual da organização, justamente porque ela não pode ser estática. Nem pode ser só um checklist. Não adianta falar “olha, eu fiz tudo que está no código do IBGC”. Fez mesmo ou só criou as estruturas e documentos e não pratica aquilo no seu dia a dia? É o que chamamos de essência e aparência. A organização está com uma aparência de governança ou está praticando na essência as recomendações?

Não adianta só fingir que tem governança. É mais importante uma estrutura menor e praticá-la efetivamente. É preciso uma reflexão acerca do que vai, de fato, fazer a diferença na organização. Não tem receita de bolo. É, por exemplo, pegar os documentos do IBGC e pensar: isso aqui vai me ajudar nisso, isso aqui não cabe na minha organização hoje, então eu não vou fazer, refletirei de novo sobre isso mais para a frente. Mas o que a organização se compromete a fazer, que seja feito na essência, ou seja, colocar em prática, virar uma rotina, virar uma cultura nova, uma nova forma de agir. Se não for assim, haverá uma falsa sensação de segurança, a pessoa acha que a organização está protegida com aquela governança, e não está, porque a governança não passa de um monte de números e documentos.

 

Houve crescimento no interesse sobre o assunto a partir da atual disseminação das práticas ESG?

O interesse é crescente, mas tem as suas oscilações. Há momentos de maior e menor crença. Quando surge um escândalo corporativo, por exemplo, com uma empresa que tinha um checklist completo de governança, tem-se a impressão de que a governança não funciona. Logo se percebe que o problema foi que a governança não era praticada na sua essência. Ou é ação de pessoa mal-intencionada mesmo. Existe até uma frase que diz “nada segura uma pessoa mal–intencionada”. A governança pode dificultar a vida dessa pessoa, mas, se ela quiser fazer algo errado, vai encontrar uma maneira. Seja como for, a governança ajuda na organização e reforça as questões éticas por meio de seus princípios. Além disso, a governança evolui para resolver demandas da sociedade, por isso volta a entrar na pauta.

O “G” deveria ser o primeiro da sigla, porque é a partir da governança que as decisões são tomadas, é de onde vêm a orientação estratégica, a direção, o tom da organização.

 

O tema da governança vem ganhando espaço nas universidades, na formação de novos líderes?

Vem ganhando importância, mas poderia ser aprofundado. Alguns cursos, como administração, contabilidade e direito, têm disciplinas de governança na grade optativa. Na minha formação, o tema foi mencionado rapidamente nas disciplinas de finanças, por exemplo, e nas de teoria geral da administração. Na maioria das vezes, o aluno sai da universidade sem saber que a empresa não termina no presidente, que existem mais aspectos para cima, que precisam de organização para o bom funcionamento da empresa. Fomentar esse conhecimento desde a formação acadêmica é uma maneira de o estudante chegar mais preparado ao mundo do trabalho em relação à importância da governança. Ao mesmo tempo, entendo que há uma dificuldade, pois a grade de disciplinas a ser cumprida é extensa. Defendemos essa relevância, que acaba passando por professores que inserem mais conteúdo sobre governança nas suas disciplinas.

 

Quando foi criado o IBGC e qual é o objetivo de sua atuação?

Este ano, o IBGC faz 28 anos. Foi fundado em 1995. Já era prevista na legislação brasileira a figura do conselho de administração, mas uma dupla de visionários percebeu que seu papel era muito pro forma, era apenas o de chancelar as decisões dos executivos, não tinha o caráter de dar um direcionamento estratégico para as companhias, não cumpria de fato a tarefa de suportar e auxiliar os gestores nas suas atividades, ou mesmo de monitorar as atividades dos executivos. O Brasil precisava de uma organização que ajudasse na profissionalização desses conselhos administrativos. Essa dupla juntou outros abnegados e formaram, à época, o IBCA, o Instituto Brasileiro de Conselheiros de Administração.

A discussão começou focada no aprimoramento dos conselhos e dos conselheiros. Conforme as discussões avançaram, entendeu-se que além de falar de conselho de administração era necessário falar de boas práticas também para outras instâncias das empresas. Ao mesmo tempo, na virada do milênio, enquanto no Brasil a discussão sobre governança corporativa ainda era incipiente, ganhava força no mundo. O foco, então, foi para a governança, e o IBCA se tornou o IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. De um instituto focado nos conselheiros, tornou-se um instituto voltado aos agentes de governança: sócios, conselheiros, executivos, auditores, todos aqueles que de alguma maneira ajudam as organizações a serem mais bem administradas, gerenciadas.

 

Por meio de quais iniciativas o IBGC atua?

A atuação do IBGC é sempre na educação e disseminação do conhecimento. São três pilares. O primeiro deles é o desenvolvimento de conteúdo e conhecimento em relação à governança. Fazemos isso por meio da própria equipe do instituto e associados, que também ajudam a desenvolver o conteúdo que disseminamos. Temos o site Portal do Conhecimento IBGC (conhecimento.ibgc.org.br), com conteúdo gratuito, qualquer pessoa ou entidade pode acessar, basta fazer o cadastro. O outro pilar é a educação. O objetivo é educar pessoas e mercados acerca da governança, e o fazemos por meio de eventos, treinamentos, cursos e palestras. O terceiro pilar é a atuação do IBGC, de maneira proativa ou reativa, nas questões de legislação e regulamentação. Entendemos que as organizações com boas governanças serão melhores e, consequentemente, melhoram a sociedade. Então temos esse papel de ajudar o poder público.

 

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Autor

Sandra Seabra Moreira


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