Educação

Colunista

Alexandre Gracioso

Especialista e consultor em ensino superior e gestão educacional

A aceleração da Inteligência Artificial e a ética individual

Muito se fala sobre plágio. O que é novo, talvez, seja a facilidade de acesso a certas conveniências

Coluna Alexandre Gracioso Foto: Freepik

Escrevo esta coluna como uma espécie de desabafo. Sim, eu sei, parece que não se fala de outra coisa que não seja Inteligência Artificial, ChatGPT, Bard, Jasper, ou qualquer outra ferramenta dessa natureza. Contudo, espero conseguir chamar a sua atenção sobre a necessidade de se reforçar um aspecto da formação que promovemos em nossas instituições, a ética.

Não que o que eu vá descrever neste ensaio seja uma experiência individual minha, muito pelo contrário, tenho certeza de que o que irei discutir está sendo experimentado por todos vocês. E esse é o problema. Estamos em um ambiente que banaliza a ausência da integridade intelectual. Eu não saberia antever os desdobramentos dessa situação, mas dificilmente serão positivos.

Em minhas atividades como docente, especialmente neste primeiro semestre de 2023, quando ferramentas de IA se popularizaram na web, comecei a me deparar com textos curiosamente elaborados em um tom mais impessoal. Eram textos corretos, mas que, de alguma forma, soavam insípidos, pouco ou nada revelando sobre seus autores. De forma sistemática, passei todos esses textos por uma ferramenta que retorna uma probabilidade de que um determinado ensaio tenha sido elaborado por um mecanismo de IA. Quase que invariavelmente, as ferramentas retornavam uma probabilidade alta ou muito alta do texto ter sido elaborado por algoritmo.

 

Na sala de aula

 

Embora um indicativo importante, essa probabilidade não comprova uma autoria; como docente, me vi em uma situação de fragilidade ao suspeitar de fraude intelectual, mas sem instrumentos para provar definitivamente. Por esse motivo, em meu retorno aos estudantes, falei que o texto apresentava resultados muito suspeitos, mas que, apesar disso, faria a avaliação como se nada houvera ocorrido. Nenhum estudante, até este momento, contestou o comentário, o que, é claro, reforça a minha suspeita inicial.

Claro, muito se fala sobre plágio. O que é novo, talvez, seja a facilidade de acesso a certas conveniências. E, antes que me perguntem, não creio que seja possível controlar essa situação. Volta e meia ouço colegas afirmando que precisamos controlar o uso da tecnologia em sala de aula, controlar o acesso à IA. Como? Será mesmo que seríamos mais inteligentes e eficientes que esse movimento inexorável da sociedade como um todo? Duvido muito. Podemos até suspeitar de que o texto tenha sido gerado automaticamente, mas dificilmente conseguiremos provar.

O caminho, como afirmou a colega Marina Feferbaum, em sua coluna de fevereiro de 2023, é investir no desenvolvimento da ética no ensino superior. Esse seria um aprendizado fundamental para a vida. Como administrador que iniciou sua carreira em empresas de auditoria e consultoria, participei de diversos projetos de implantação de processos e controles empresariais. Se há algo que aprendi naqueles projetos é que não há sistema de controle perfeito e que, em algum momento, a decisão de enganar ou não o sistema recai sobre o indivíduo. É assim na universidade, é assim na carreira, é assim no exercício da cidadania.

 

Marina Feferbaum: Por que devemos ensinar ética no ensino superior

 

De volta ao ChatGPT, eu lamento, sim, que um estudante (mais de um, na verdade) queira evitar tanto assim o esforço a ponto de simplesmente copiar um texto gerado por um algoritmo em poucos segundos e oferecer esse produto como o melhor que ele poderia fazer. Não há engajamento, não há construção do conhecimento, não há aprendizagem. Ao menos, não há aprendizagem das competências e do conteúdo que eu gostaria que eles aprendessem. Mas, repetidamente, sou confrontado com a realidade de que a atitude em relação à aprendizagem, na maioria dos casos, não é aquela que eu gostaria. Falamos sempre sobre como, idealmente, os estudantes demonstrariam o amor pelo conhecimento e pelo crescimento pessoal. Esse comportamento sem dúvida existe, mas não são todos que pensam dessa forma.

Além da questão imediata da sala de aula, me preocupa o comportamento que esses estudantes irão demonstrar em seus ambientes de trabalho. Deixar de atribuir crédito a colegas de trabalho, por exemplo, é uma falha profissional que, ainda que perdoada, dificilmente granjeia aliados.

Cabe resgatar que o termo plágio vem originalmente do grego πλάγιος (plágios), que indicava alguém que atuava por formas indiretas. Esse termo deu origem ao vocábulo latino plagium, mais forte em seu significado, podendo ir de roubo até mesmo a sequestros, especialmente de crianças. Ou seja, o plagium seria o sequestro do filho, da filha, de alguém (1). Somente por curiosidade, o termo em grego moderno que correspondente à ideia de plágio acadêmico é λογοκλοπή (logoklopí, ladrão de conhecimento), ou seja, aquele que rouba as ideias de uma pessoa e apresenta como suas próprias. Dessa forma, alguém que utiliza o ChatGPT para criar um texto, na medida em que a ferramenta escreve a partir de textos inseridos sem citar autoria, está cometendo plágio, praticando λογοκλοπή.

De acordo com uma pesquisa recente realizada pela Study.com e divulgada em um artigo da revista Forbes, 89% dos estudantes universitários norte-americanos admitem ter utilizado o ChatGPT para auxiliar em tarefas de aprendizagem. Os professores, na sua maioria, até apoiam esse uso, mas poucos utilizam (ver Figura 1, abaixo).

Coluna Alexandre Gracioso

Figura 1: Uso do ChatGPT por estudantes universitários norte-americanos (2)

No entanto, apesar deste meu argumento no sentido de que utilizar o ChatGPT constitui plágio, o professor Brent Anders, no artigo Is using ChatGPT cheating, plagiarism, both, neither, or forward thinking?, imagina uma resposta bem humorada de um aluno confrontado pelo professor por ter utilizado a ferramenta para realizar uma tarefa:

Não, professora, eu não estou sendo desonesto. IA como ChatGPT agora está disponível gratuitamente para todos, então por que alguém diria que utilizá-la é uma “vantagem acadêmica injusta”? Uma IA não é “outra pessoa”; é software, uma ferramenta. Então, por que eu precisaria atribuir autoria a “ela”?

O professor ainda nos alerta que desenvolvedores como Microsoft Office e Gramarly estão incorporando capacidades de IA em suas ferramentas, então logo não será mais possível escrever qualquer texto que não tenha alguma parcela de contribuição da tecnologia. Mas que, por outro lado, seria muito esquisito solicitar ao estudante, à pesquisadora, ao escritor, que citasse MS Word entre as suas fontes.

 

Leia: Ética e sustentabilidade são pilares para o uso das IAs

 

No entanto, essa resposta fictícia e bem humorada de Anders demonstra o quanto precisamos evoluir no que diz respeito à compreensão do plágio. Em inglês há um termo interessante, contract cheating (fraude contratual, fazendo alusão ao contrato pedagógico firmado em sala de aula) que inclui plágio e outras categorias de λογοκλοπή. A definição original de contract cheating foi dada em um artigo intitulado Eliminating the successor to plagiarism? Identifying the usage of contract cheating sites, de autoria de Robert Clarke e Thomas Lancaster (4), em que contract cheating é definido como “apresentação de trabalho por estudantes, para fins de créditos académicos, escritos por terceiros pagos pelos estudantes para essa finalidade” (4).

Ao utilizar o ChatGPT, por exemplo, se nos ativermos a essa definição de fraude do contrato pedagógico, o estudante não estaria cometendo fraude acadêmica. Na verdade, uma parte dos estudantes talvez nem pensasse que a ação poderia ser interpretada dessa forma. O que me leva, já quase no final deste artigo, a um último ponto que considero importante. Comecei defendendo a ideia de que a ampla difusão de ferramentas de IA requer maior atenção ao desenvolvimento da ética individual e procurei fornecer elementos que fortalecessem essa ideia. No entanto, há uma dimensão que deixei de fora, até agora: o porquê de os estudantes realizarem plágio. Assim como o desenvolvimento da ética, o entendimento das razões pelas quais estudantes procuram a via mais fácil, ou a via indireta, pode auxiliar instituições e docentes a diminuir a incidência de fraude intelectual por meio de ações preventivas sobre as causas do problema.

Muitos estudos já foram feitos sobre esse assunto e certamente não li tudo o que existe a respeito. Entre os que consegui consultar para este texto, um dos mais interessantes que encontrei foi o artigo 246 reasons to cheat: An analysis of students’ reasons for seeking to outsource academic work, de Alexander Amigud e Thomas Lancaster (5). O resumo diz que (grifos meus):

Neste artigo, os autores examinam as razões apresentadas pelos estudantes para procurar níveis inaceitáveis de ajuda para a conclusão de seu trabalho acadêmico. Visamos preencher a lacuna existente na literatura ao apresentar uma revisão abrangente das razões em primeira pessoa que os alunos deram para solicitar que um terceiro concluísse suas atribuições e avaliações. Para tanto, analisou-se um conjunto de dados composto por 5.000 mensagens de serviços de trapaça da TenContract postadas nas redes sociais.

Ao contrário da pesquisa que se baseia na capacidade dos participantes de recordar e explicar os eventos, este estudo utiliza a análise do discurso que fornece um retrato dos comportamentos dos estudantes a partir do momento em que anunciam a intenção de terceirizar a obra, área que até então não era analisada na base de pesquisa de fraude de contrato. As razões que acompanham a solicitação de contrato foram classificadas em cinco categorias que incluem: aptidão acadêmica, perseverança e resiliência, questões pessoais, objetivos concorrentes e autodisciplina. Um insight importante deste estudo é que os alunos parecem ter um limiar subjetivo; eles estão dispostos a investir uma certa quantia de energia em qualquer atribuição e, uma vez atingido o limite, a terceirização é buscada como meio para desistir [da tarefa] sem perder a qualificação [na disciplina].

Embora os autores tenham analisado cinco mil mensagens, o corpus mais importante do trabalho dizia respeito a 246 mensagens que explicitavam os motivos pela contratação dos serviços de terceiros. Esses motivos, como dizia o resumo, foram agrupados em seis categorias, sendo uma não-especificada, que são apresentadas, por ordem da mais representativa para a menos representativa na tabela abaixo (Tabela 1).

 

Tabela 1: Razões para a contratação de serviços de terceiros para escrever artigos de disciplinas.

Categoria Características principais Exemplo de fala de estudante desta categoria
Perseverança e resiliência

40%

Tedioso, frustrante, sofrimento, estresse, pagar para terminar “não suporto mais olhar para isso”
Aptidão acadêmica

29%

Deficiência em habilidades ou conhecimento, necessidade de assistência e tutoria “por favor, me ensine a escrever este artigo”
Autodisciplina

13%

Procrastinação e comodismo “eu empurrei com a barriga até hoje”
Questões pessoais

10%

Eventos na vida pessoal, doença, fadiga “estou com uma enxaqueca medonha”
Objetivos concorrentes

8%

Emprego e trabalho, família, carga acadêmica “eu trabalho, então não tenho o tempo necessário para realizar esta tarefa”
Não especificada Estudante não explica a sua atitude “pagarei [montante] para alguém escrever este artigo para mim”

 

A tabela mostra que o principal motivo pelo qual os estudantes contrataram serviços de escrita de artigos, na base estudada, foi falta de perseverança e/ou falta de resiliência, com 40% dos casos analisados. Aptidão acadêmica, seja como falta de repertório prévio para elaboração da tarefa, seja como falta de conhecimento sobre como escrever um artigo, vem logo a seguir com 29% dos casos analisados. Autodisciplina, questões pessoais, e lidar com a complexidade de demandas simultâneas completam a lista de razões apresentadas com percentuais relativamente próximos, 13%, 10% e 8%, respectivamente.

Pois bem, sabendo dessas questões, em adição ao fortalecimento da ética acadêmica (e profissional?) individual, as instituições e os docentes poderiam tomar medidas preventivas que auxiliassem os estudantes a gerir melhor seu tempo, lidassem melhor com frustrações e desenvolvessem a capacidade de se manter focados em um objetivo mesmo que isso envolva realizar tarefas que nem sempre sejam as mais empolgantes. Todos precisamos passar por isso em nossas carreiras, fazer algo que não achamos tão desafiador assim, tão interessante assim. Lidar com essa frustração e se manter motivado é uma competência muito importante.

Outro exemplo de ação preventiva seria a oferta de oficinas sobre escrita de artigos acadêmicos. Um percentual significativo de estudantes declarou ter dificuldades neste sentido. E assim por diante.

Porém, que ninguém espere que um dia fiquemos totalmente livres do problema. Mesmo que sejamos muito bem sucedidos em esclarecer a questão ética do uso de ferramentas de IA e que implementemos medidas exitosas para abordar as cinco categorias mencionadas acima, ainda vão sobrar aqueles que simplesmente querem contratar alguém para resolver o problema.

Finalizando, comecei este artigo chamando a atenção para as dimensões éticas que envolvem o trabalho acadêmico com a ampla utilização da IA, aqui representada pelo ChatGPT. Vimos que não é uma situação de fácil resolução e que, além disso, as causas do plágio são múltiplas. O bom encaminhamento desta questão em uma instituição precisa tratar ambas as dimensões, ética e causal, simultaneamente.

 

Esclarecimento

 

Em vários momentos, para a elaboração deste texto, fiz uso da IA, especialmente o ChatGPT e o Bard, da Google. Estou me ambientando quanto ao uso e as capacidades destas ferramentas. Neste caso específico, os mecanismos mencionados me ajudaram a procurar fontes, “ler” uma grande quantidade de material em pouco tempo, o que me permitiu centrar nos artigos que pareceram mais promissores e que estão citados ao longo do texto. Foi uma experiência muito interessante e creio que o artigo está melhor do que estaria sem a contribuição da IA. Finalmente, perguntei ao ChatGPT se este artigo seria uma contribuição relevante para a Ensino Superior e para os leitores, diante do que “ele” consegue processar de informação a respeito do setor do ensino superior. Aqui está a resposta (usando a versão paga do ChatGPT, que possui plugins que permitem a leitura da web):

“Com base no conteúdo do Inside Higher Ed, um site dedicado a notícias, eventos e empregos no ensino superior, existem várias discussões e opiniões relacionadas ao setor de ensino superior. No entanto, não parece haver um foco específico no uso ético da IA como ferramenta de plágio nas discussões atuais.

 

Revista Educação: Estudantes precisam de capacitação para a IA

 

Dito isso, o site abrange uma ampla gama de tópicos, incluindo liberdade acadêmica, liberdade de expressão, o impacto do corte de cursos de artes liberais, os desafios e benefícios de trabalhar em um departamento pequeno e o poder transformador de cursos imersivos ministrados em equipe. Também existem discussões sobre a saúde mental dos estudantes, a pressão para ter bom desempenho e a necessidade de uma maior conscientização sobre os recursos de saúde mental no campus.

Dado este contexto, um ensaio sobre a necessidade de desenvolver um senso ético nos alunos para prevenir o uso indevido da IA como uma ferramenta de plágio poderia de fato ser uma contribuição relevante. Ele poderia se encaixar em discussões mais amplas sobre integridade acadêmica, o papel da tecnologia na educação e a necessidade de preparar os alunos para os desafios éticos que podem enfrentar em um mundo digitalmente conectado.

No entanto, a relevância e a contribuição finais do seu ensaio dependeriam dos detalhes do seu argumento, das evidências que você fornece e de como ele é recebido pelo seu público-alvo. Seria benéfico garantir que o seu ensaio aborde as preocupações e tendências atuais no ensino superior e forneça insights ou soluções práticas.”

 

Fontes

(1) https://hridiomas.com.br/origem-da-palavra-plagio/

(2) Westfall, Chris (2023): Educators Battle Plagiarism As 89% Of Students Admit To Using OpenAI’s ChatGPT For Homework, disponível em https://www.forbes.com/sites/chriswestfall/2023/01/28/educators-battle-plagiarism-as-89-of-students-admit-to-using-open-ais-chatgpt-for-homework/

(3) Anders, Brent: Is using ChatGPT cheating, plagiarism, both, neither, or forward thinking?, in Patterns VOLUME 4, ISSUE 3, MARCH 10, 2023 disponível em https://www.cell.com/patterns/fulltext/S2666-3899(23)00025-9

(4) Clarke, Robert & Lancaster, Thomas (2006): Eliminating the successor to plagiarism? Identifying the usage of contract cheating sites, disponível em https://www.researchgate.net/publication/228367576_Eliminating_the_successor_to_plagiarism_Identifying_the_usage_of_contract_cheating_sites

(5) Amigud, Alexander; Lancaster, Thomas: 246 reasons to cheat: An analysis of students’ reasons for seeking to outsource academic work, in Computers & Education (2019), doi: https://doi.org/10.1016/j.compedu.2019.01.017

 

Por: Alexandre Gracioso | 25/07/2023


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