Salovey deixará a presidência de Yale em 2024, voltando às atividades de pesquisa e docência
Salovey assumiu a presidência da universidade Yale em 2013 (foto: Senior Master Sgt. Adrian Cadiz)Não é todo dia que um psicólogo ascende ao cargo de presidente de uma importante universidade de alcance global. Mais raro ainda que ele permaneça por onze anos no cargo, o dobro da média de presidentes de universidades estadunidenses, conforme a pesquisa The American College President (1). O dono dessa marca é Peter Salovey, que, juntamente com John Mayer, primeiramente desenvolveu a teoria da Inteligência Emocional; aquela mesma que, posteriormente, foi popularizada pelo também psicólogo Daniel Goleman.
Salovey assumiu a presidência da universidade Yale em 2013 e recentemente declarou que deixará o cargo em 2024, voltando ao corpo docente e às atividades de pesquisa e docência. Indicadores sinalizam que Salovey foi muito bem sucedido e penso que a sua trajetória é uma inspiração para muitos de nós, que temos desafios semelhantes em nosso dia a dia. Em uma dimensão, no entanto, ele não foi bem sucedido e irei tratar desse assunto mais à frente, como contraponto às realizações e como exemplo de que mesmo presidentes muitas vezes não conseguem mudar uma cultura enraizada.
Fundada em 1701 na cidade de New Haven, estado de Connecticut ((2), (3)), Yale se estabeleceu como uma das mais prestigiosas universidades estadunidenses e, em 2013, havia recentemente completado 300 anos quando Salovey foi apontado como seu 23° presidente. Ele havia trabalhado em quase todas as posições que um acadêmico podia ocupar no caminho para a presidência; foi chefe de departamento, Dean da escola de Artes e Ciências, da Yale College, Provost e, finalmente, Presidente.
Yale sempre se destacou pela sua conexão com as Humanidades, sendo o seu curso de Direito particularmente renomado e influente. Outras formações, como Ciência Política e Estudos Globais também são muito procuradas. No entanto, apesar desse sucesso relativo em algumas frentes importantes, a universidade, em 2013, tinha alguns desafios pela frente, que incluíam aumentar a visibilidade global, investir nas áreas de STEM (Sciences, Technology, Engineering and Mathematics) e ampliar as políticas de acesso e inclusão.[
É usual, nas grandes universidades norte-americanas, que seja formado um comitê de busca para selecionar o sucessor ou a sucessora ao cargo de presidente da instituição. No caso do processo que resultou na seleção de Salovey, é interessante notar como a busca pelo candidato ideal respondia aos desafios identificados pelo comitê como prioritários para a perenidade da instituição:
“Nossa busca presidencial não apenas resultou na seleção de um líder excepcional para esta grande universidade, mas também catalisou um autoestudo de nossa instituição que trouxe novas percepções sobre as necessidades e aspirações da comunidade de Yale,” disse Pyle. “O diálogo contínuo que foi iniciado durante a busca ajudará a moldar o futuro de nossa universidade e garantir que Yale seja o principal centro de inovação em pesquisa e ensino.” (4)
Salovey era visto como excelente administrador e líder inspirador, muito atento às necessidades de estudantes, professores e da comunidade como um todo. Pela sua compreensão do comportamento humano, era reputado como pessoa com grande capacidade de influência, competência fundamental para liderar organizações complexas como uma grande universidade.
Salovey declarou, em seu discurso de posse, quatro grandes pilares que guiariam sua gestão: (a) união, (b) inovação, (c) acesso e (d) excelência.
Por união ele se referia a projetos conjuntos que tirassem proveito das várias escolas e áreas de conhecimento de Yale. Por exemplo, um centro que juntasse as escolas de artes e de engenharia. O pilar inovação era fortemente voltado para o avanço em STEM, dado que Yale já tinha uma tradição amplamente consolidada nas humanidades, além do aprofundamento das relações da universidade com a cidade de New Haven por meio de um serviço continuado à comunidade local. Acesso dizia respeito tanto a tornar Yale mais visível internacionalmente e acessível a pesquisadores internacionais, por exemplo, quanto a possibilitar o acesso financeiro a jovens com destacado potencial acadêmico. Finalmente, ele colocava a capacidade de Yale realizar atividades com excelência como um dos critérios de seleção de novos projetos:
“E finalmente, excelência: de certa forma, mais fácil de definir e mais difícil de alcançar. Devemos sempre nos perguntar — ao pensarmos em novos programas, novas oportunidades — esta é uma atividade que será excelente, pode ser excelente ou aprimorará a excelência de algo mais que estamos fazendo? E se não pudermos responder a uma dessas perguntas de forma positiva, devemos parar para considerar se faz sentido prosseguir. Por que gostaríamos de fazer algo que não seja o melhor em sua categoria? Essa deve ser sempre a nossa aspiração.” (5)
Recebido com muita esperança e expectativa, de fato, Salovey teve uma gestão muito atuante, nas mais variadas dimensões da instituição. Por ter sido professor durante toda a carreira, não abandonando a função mesmo depois de começar a assumir responsabilidades administrativas, ele manteve um foco contínuo nas funções de educação e pesquisa, promovendo grandes investimentos em infraestrutura e instalações. Durante o seu mandato, foram criados cerca de 204 mil m² em novas instalações de aula e pesquisa!
Ele investiu fortemente em ciências e engenharia, com foco em áreas como soluções planetárias, neurociência, engenharia quântica e ciência de dados. Nas humanidades, ele criou a Escola de Assuntos Globais Jackson de Yale, a primeira nova escola profissional da universidade em quase meio século.
Com esses investimentos, a escola conseguiu aumentar seu alunado, passando de cerca de 12 mil estudantes, em 2013, para aproximadamente 15 mil em 2023, de acordo com dados fornecidos pela própria universidade em seu site (6) e (7). É nítido o esforço da universidade para atrair mais mulheres, especialmente nos cursos de pós-graduação.
É claro que essas conquistas não são atingíveis sem recursos financeiros e, também nessa dimensão, Salovey foi muito bem sucedido. Em um esforço de arrecadação para investimentos em estrutura, ele conseguiu arrecadar 7,2 bilhões de dólares para financiar o crescimento da universidade. Além disso, o endowment da universidade foi ampliado, durante a sua gestão, de 20,8 bilhões de dólares em junho de 2013 para 41,4 bilhões de dólares em junho de 2022.
É muito provável que o mandato de Salovey seja visto como um período de grande desenvolvimento da universidade; sob muitos aspectos ele realmente conseguiu avançar a missão institucional. Mas, mesmo com todo esse sucesso, que certamente exigiu grande capacidade de influência e articulação, há aspectos da cultura organizacional que mesmo um presidente com onze anos de permanência no cargo talvez não consiga mexer.
No caso de Yale, esse limite parece ser o tratamento dado a estudantes com problemas de saúde mental. Nos EUA, muitas universidades adotam a prática de solicitar a estudantes com desempenho abaixo do esperado que se retirem do programa. Yale, no entanto, foi mais longe, solicitando que estudantes com problemas de saúde mental se afastem dos programas. Esses estudantes “voluntariamente” afastados por problemas mentais poderiam solicitar, após dois semestres, reintegração aos programas, mas, para isso, precisariam ser aprovados por um comitê de reintegração.
Conforme noticiado pelo Washington Post, essa situação começou a chamar a atenção do público com o suicídio de uma aluna, Rachael Shaw-Rosenbaum, em 18 de março de 2021 (8). De acordo com a matéria, que data de novembro de 2022, Rosenbaum estava preocupada com a possibilidade de ser afastada da universidade caso procurasse novamente o hospital universitário, que é obrigado a compartilhar com as coordenações acadêmicas quando os estudantes dão entrada, inclusive, os estudantes precisam assinar um documento autorizando esse procedimento para serem admitidos à universidade.
Em um podcast de 2023 (9), o mesmo Washington Post apresentou a entrevista com outra estudante que teve problemas de saúde mental e que “voluntariamente” se afastou dos seus estudos. Ela relata que, após ter acordado no hospital e ter sido orientada a assinar o termo de afastamento, ela foi acompanhada por um agente de segurança da universidade e teve que se retirar do campus em apenas duas horas. Como ela morava no campus, isso significou que ela teve que esvaziar seu apartamento nesse tempo.
Pessoalmente, eu tenho dificuldade em acreditar que Peter Salovey, reputado como uma pessoa extremamente humana e gentil, aprovasse esse tipo de conduta institucional. Ainda assim, ele publicou no site de Yale, em 16 de novembro de 2022, uma resposta ao Post (10), repudiando a matéria e afirmando que o jornalista não havia apresentado, no texto, os reais esforços da universidade em acolher estudantes com problemas de saúde mental. Dizia Salovey:
“O artigo não reconhece o apoio, os processos e as políticas em vigor, nem os resultados positivos associados ao nosso trabalho. Para ser claro, a saúde e o bem-estar dos estudantes de Yale são prioridades primárias da universidade.” (10)
Pode ser, mas o fato é que os estudantes ainda não percebem muita mudança. E eu me pergunto o quanto dessa resposta de Salovey representa o que ele realmente pensa e o quanto ele está cumprindo o seu papel de proteger a instituição de um potencial ataque à sua reputação. Afinal, ele criou um programa de acolhimento e pertencimento para fortalecer os laços dos estudantes com a universidade. Tenho dificuldade em acreditar que esse mesmo presidente tenha tolerância com um procedimento que pede que um policial acompanhe uma estudante para fora do campus. Mas, devo admitir, eu sou fã de Salovey, uso seus textos em minhas aulas e posso estar me deixando levar pela admiração que tenho por ele.
Onze anos depois de assumir seu mandato, Peter Salovey decide retornar ao corpo docente. Cumpriu sua missão, entregando ao conselho de Yale uma instituição mais forte do que a que recebeu. Nas palavras dele próprio, “não há um momento perfeito para uma transição presidencial, mas o melhor momento para realizar esse processo é quando as coisas vão bem” (11).
Creio que muitas lições podem ser retiradas dessa trajetória longa e exitosa. A primeira começou mesmo antes do mandato de Salovey: o processo de escolha do novo presidente. Obedecendo a uma visão estratégica sobre o futuro da instituição, o comitê de seleção procurou um candidato alinhado com essa visão e com a missão da instituição. Quantas das nossas instituições têm sua visão estratégica definida bem o bastante para servir de norte na escolha de uma nova liderança?
As qualidades mencionadas como principais motivadores pela indicação de Salovey também merecem reflexão: capacidade de influência, interesse em pessoas e gosto por ouvir e construir relacionamentos, conhecimento em primeira mão das necessidades acadêmicas, compreensão do ser humano; em resumo, qualidades que esperamos de uma boa liderança, que sabe que mobilizar um organismo complexo como uma instituição de ensino superior só se dá pela conquista de nossos interlocutores para o apoio às nossas ideias.
A forma como Salovey elencou as suas prioridades também nos dá uma dimensão dos desafios enfrentados pela liderança de instituições globais. Ele precisava superar, por assim dizer, os limites do DNA original de Yale, ligado às humanidades, sem perder a articulação com as raízes e com a missão institucional. Seu empenho em fazer crescer as áreas ligadas às ciências e à medicina pode ser medido pelo crescimento das receitas com serviços médicos prestados pelo hospital de Yale, que cresce de USD 540 milhões em 2012 (12) para USD 1.4 bilhão em 2021 (13), ou seja, quase triplicaram no período.
Talvez esse ponto nos remeta àquele que, para mim, seja o maior aprendizado dessa experiência: a confirmação de que universidades são organismos complexos, não resistindo a simplificações exageradas de suas identidades. Especialmente no mundo contemporâneo, em que a resolução de problemas normalmente ultrapassa limites claramente definidos, a academia precisa reconhecer a interdependência de campos de conhecimento se quiser se manter relevante.
(1) American Council for Education, TIAA Institute. (2023): The American College President 2023 Edition, disponível em https://www.acenet.edu/Documents/American-College-President-IX-2023.pdf
(2) https://en.wikipedia.org/wiki/Yale_University
(3) https://guides.library.yale.edu/yalehistory
(4) https://medicine.yale.edu/news-article/peter-salovey-is-elected-as-yales-next-president/
(5) Trecho do discurso de posse de Peter Salovey, transcrito na Revista dos ex-alunos de Yale, disponível em https://yalealumnimagazine.org/articles/3600-the-president-elect-elaborates
(6) Yale Common Data set 2012 – 2013: https://oir.yale.edu/sites/default/files/cds2012_2013.pdf
(7) Yale Common Data set 2022 – 2023: https://oir.yale.edu/sites/default/files/cds_yale_2022-2023_vf_07142023.pdf
(8) https://www.washingtonpost.com/dc-md-va/2022/11/11/yale-suicides-mental-health-withdrawals/
(9) https://www.washingtonpost.com/podcasts/post-reports/what-if-yale-finds-out/
(10) https://president.yale.edu/student-mental-health-yale
(11) https://news.yale.edu/2023/08/31/yale-president-peter-salovey-return-faculty-full-time-2024
(12) https://your.yale.edu/sites/default/files/2012-2013_annual_financial_report_0.pdf
(13) https://your.yale.edu/sites/default/files/2020-2021-yale-university-annual-financial-report.pdf
Por: Alexandre Gracioso | 12/09/2023