Educação

Colunista

Karina Tomelin

Educadora, psicóloga, pedagoga e mestre em educação

Profundidade e dialogicidade em materiais didáticos para EAD

Professor autor precisa dominar sua área de conhecimento, garantindo que o conteúdo seja legítimo, autêntico e atual

Materiais didáticos EAD Professor autor é aquele que terá autonomia autoral

No divã: Fabiano Ormaneze, jornalista, professor e coordenador de curadoria de conteúdos

 

Fabiano OrmanezeEmbora seja jornalista e nunca tenha feito uma licenciatura, como boa parte dos professores que atua no ensino superior, considero que, de uma forma ou outra, sempre fui educador. Lembro-me de que, ainda quando estava na educação básica, gostava de ajudar meus colegas com eventuais dúvidas. Aconteceu a mesma coisa na faculdade, quando atuava como monitor. Dois anos após ter me graduado,  já estava dando aula no mesmo curso em que me formei, assumindo a disciplina com que eu mais tinha me identificado na graduação. Depois, fiz mestrado, doutorado, pós-doutorado e lá se vão 15 anos de sala de aula. Hoje, além de professor, atuo como coordenador de curadoria de conteúdos, mas já passei por outras várias funções ligadas à docência. 

Minhas grandes inquietações sempre envolveram a linguagem. Não só porque minhas disciplinas perpassam-na como tema, mas também porque é por meio dela que atribuímos sentido e constituímos comunicação e interação. 

Ao começar a atuar no ensino a distância (EAD), essa preocupação sobressaltou-se. Tinha clareza de que era necessário que a linguagem empregada também desse conta de possibilitar uma aprendizagem significativa a partir da mediação tecnológica. Para isso, era necessário elaborar conteúdos com linguagem afetiva, envolvente, dialógica, mas sem perder a profundidade e os objetivos de uma formação consistente. Aprendi, então, que ser autor de conteúdos era bem diferente de escrever um artigo científico ou um livro. 

Karina, como equilibrar profundidade e dialogicidade em materiais didáticos para EAD?

 

Na teoria

 

Olá, Fabiano. Que bom ter você aqui. Esse é um tema instigante e relativamente novo na prática docente. Tenho encontrado muitos professores que sentem esses mesmos desafios. Buscamos novas referências sobre ser professor e uma delas está na forma como apresentamos os conteúdos aos estudantes.

Se pedir a você, Fabiano, para descrever a função de um professor, provavelmente você mencionará que é um profissional que se posiciona diante de um grupo de estudantes, os quais estão sentados, enquanto é apresentado um determinado conteúdo. Pode ser que você já imagine este professor em atividades mais interativas, conduzindo alguma prática ou, ainda, que tenha uma abordagem mais digital. Quando pensamos no professor pesquisador, o  imaginamos imerso em muitas leituras, pesquisas e produção escrita.

 

Docência no divã #7: Como criar experiências de aprendizagem integradas com as IAs

 

Bem, os tempos mudaram e novas referências estão sendo criadas sobre ser professor. Uma delas se relaciona com a atuação em ambientes de aprendizagem digitais. Estes ambientes são novos para muitos docentes, que buscam encontrar inspirações sobre a forma eficiente de se portar, dialogar e se comunicar com seus estudantes. Para alguns, pode ser mais difícil, porque, antes de construir esta nova referência, eles precisam desconstruir outras que estão muito arraigadas ao fazer profissional, como, por exemplo:  

  • Desconstrução #1: Linguagem impessoal: no Ensino Superior, a maioria dos professores passou pelo mestrado e/ou doutorado. Durante a produção de seu trabalho de pesquisa, aprendeu a redigir seus textos, organizando-os de forma impessoal, garantindo a neutralidade do discurso e uma linguagem mais formal. Qualquer movimento que se distanciasse desta recomendação seria muito mal visto e interpretado como frágil, antiacadêmico ou sem rigor.
  • Desconstrução #2: Não é só sobre conteúdo: já foi a época em que todo conteúdo do mundo estava em uma enciclopédia ou parte dele em um professor. O conteúdo está em todo lugar. Então, porque o professor vai “produzir”, “reproduzir” ou costurar uma grande colcha de retalhos de conteúdos? Produzir um material referencial não é sobre expor ou transcrever conteúdo, mas organizar uma experiência de aprendizagem. Isso exige novas referências. 
  • Desconstrução #3: Professor conteudista: na busca por construir novas referências, é fundamental refletirmos sobre o simbólico presente nas expressões que criamos para a construção destas referências. Quando nomeamos, comunicamos ou elegemos determinadas palavras, falamos muito sobre nosso passado, nosso presente e até nosso futuro. Minha provocação é justamente pensarmos no termo: “professor conteudista”. Acredito que ele não deveria mais ser utilizado por nós. 

 

Mas por que este termo é inadequado?

 

Porque quando falamos em professor conteudista, associamos a referência de um professor que atua na aprendizagem digital, à exposição ou pura produção de conteúdo. Para ajudá-lo a compreender este conceito, veja a diferença que proponho entre ser autor e conteudista:  

 

Professor  autor Professor conteudista
Foca na experiência: reflete sobre como o conteúdo poderia ser transformado em um objeto interativo ou posto de forma a se tornar mais compreensível e atraente ao estudante.  Foca no conteúdo: está preocupado na quantidade de texto, conteúdo que precisa ser exposto, cumprido e entregue, sem considerar o formato ou a acessibilidade da escrita. 
Cria: a criatividade é mobilizada para criar algo novo, conectando conteúdos com outras referências e práticas da vivência do estudante. Copia: há uma mistura de repertórios. Não há nada novo, somente uma junção de teorias e conceitos expostos ao estudante. 
Intencionalidade pedagógica: a preocupação é com a experiência multimodal. Identificar como um conhecimento pode se tornar um elemento digital atraente e interativo, considerando diferentes preferências de aprendizagem.  Intencionalidade cronológica: a preocupação é o cumprimento de uma carga horária, de uma quantidade de laudas ou horas de vídeo como sinônimo de aprendizagem. 
Dialógico e empático: o conhecimento é exposto de forma conectiva, afetiva, atraente potencialmente engajadora a partir de um storytelling intencional e motivador.  Indiferente e impessoal: a escrita ou a produção audiovisual é distante, indiferente e fria, gerando pouca conexão com o estudante. 

 

Dito de outra forma, o professor autor é aquele que terá autonomia autoral, que utilizará das suas vivências e conhecimento do conteúdo para organizar a melhor experiência de aprendizagem para os estudantes. O foco não é no conteúdo em si, mas no design da aprendizagem, na mobilização de referenciais práticos, na curadoria detalhada e na escolha de elementos interativos.  O professor autor, além de utilizar exemplos práticos para ilustrar a aula, abusará de narrativas que aproximam a sua linguagem com a realidade dos estudantes, sem deixar de introduzir conceitos técnicos nem perder o rigor científico.

 

Docência no divã #5: Como evitar o burnout docente?

 

Na prática

 

Destaquei um tripé da organização de conteúdo, para refletirmos sobre três categorias da produção autoral considerando os aspectos do estudante, da experiência e do conteúdo. 

 

Foco no estudante Designer de aprendizagem Repertório
Estudante Experiência  Conteúdo

 

Foco no Estudante: 

 

Se importar com o estudante é fundamental para a melhora de seu desempenho em qualquer nível ou modalidade de ensino. Em um primeiro momento, significa  respeitar sua história, seu tempo e reconhecer suas diferenças. Ao produzir um material escrito ou audiovisual, é importante identificar ou imaginar que este estudante possa ser desde um total neófito no assunto até um especialista. Ao fazer isto, buscamos modular nossa produção para garantir certa acessibilidade comunicacional. Além disso, o respeitamos quando valorizamos seu tempo, organizando uma comunicação clara, focada e de fácil compreensão. 

Assim como na experiência presencial, nós, professores, precisamos nos lembrar que, apesar de atuar, por exemplo, com a disciplina de história da arte para o segundo semestre há oito anos, estes estudantes estão, pela primeira vez, ouvindo falar sobre isso. Logo, produzir uma disciplina para educação a distância não deve ser um ato egoísta, mesmo que você não esteja vendo ou conhecendo os estudantes neste momento. Uma forma de romper com isso é promover uma linguagem dialógica que favoreça a conexão e aproximação com o estudante, engajando sua atenção por meio de gatilhos, curiosidades ou mesmo linguagem empática. Quer ver alguns exemplos?

“Quer saber mais sobre este tema?”

“Pode ser que esteja um pouco confuso ainda, mas fique tranquilo, já vamos voltar a este assunto”.

“Como isto funciona na prática?”

 

Designer de aprendizagem:

 

Se importar com a experiência é se importar com a efetivação da aprendizagem. Um determinado conteúdo pode ser apresentado de diferentes maneiras para o estudante e, longe de parecer repetição, só ampliará sua experiência e conexão com o tema. Desenhar a experiência de uma aula é organizar, de forma intencional, os recursos de aprendizagem com os objetivos que se deseja alcançar.

Um professor focado na experiência é aquele que tem claro o objetivo de aprendizagem da sua aula e busca formas efetivas para garantir o sucesso do seu estudante. Para tanto, se apoiará em recursos digitais interativos, imersivos, gamificados, sensoriais, que estimulem a conexão de forma memorável. Ao fazer isto, também imprimirá sua própria identidade docente, transbordando sua forma de pensar, organizar e ser docente. Sua criatividade, comunicação ou organização, reconhecidas em uma sala de aula presencial, também serão notadas e percebidas na manifestação de um conteúdo digital. Vivências, experiências e estilo de escrita incorporam autenticidade à experiência proposta. Vamos ao exemplo: 

Depois de abordar um conceito de forma escrita, o professor grava um pequeno podcast de como ele se aplica na prática profissional do estudante. Outra forma seria apresentá-lo de forma gráfica por meio de um infográfico estático ou interativo. Pode ainda incluir um pequeno quiz, de autodiagnóstico, para o próprio estudante checar se compreendeu.

 

Repertório técnico e atual:

 

Se importar com o conteúdo se torna imprescindível em uma época de inteligências artificiais generativas, infotoxicação, fake news e velocidade exponencial da informação. O professor autor precisa dominar sua área de conhecimento, garantindo que o conteúdo seja legítimo, autêntico e atual. Isso implica em estudo, pesquisa, curadoria, levantamento de fontes confiáveis e sua indicação aos estudantes. Isto é fundamental para garantir o rigor técnico e a responsabilidade com a aprendizagem do estudante. Apoiar a tradução, transposição de conceitos e sua conexão com a realidade ou futuro da profissão demonstrará mais autoridade do professor sobre o tema, reconhecendo sua capacidade de criar, para além de costuras de repertórios. Neste caso, o professor poderia: 

Além de indicar um vídeo ou uma leitura adicional para os estudantes, relacionar esta indicação à urgência de aprender. Por que é interessante e importante? O que vou encontrar ao ver este vídeo ou ler este texto? Como esse conteúdo pode transformar minha vida? 

 

Fabiano, espero que estas reflexões te ajudem no seu desafio de apoiar professores na produção autoral de suas aulas. Para te inspirar a ir além, separei duas sugestões: 

Uma delas é um infográfico produzido pelo Semesp sobre a Autonomia Autoral Docente Digital, que você acessa neste link. Nele, você encontra 10 dicas rápidas de como transformar professores conteudistas em autores. 

A outra é um clássico americano que aborda técnicas para escrever, da melhor forma possível e com coerência, qualquer tipo de conteúdo. O livro “Como escrever bem” traz muitas provocações para todo professor ou escritor interessado em melhorar seu processo de produção. 

 

Na sala de aula

Como escrever bem: O clássico manual americano de escrita jornalística e de não ficção eBook : Zinsser, William, Ajzenberg, Bernardo: Amazon.com.br: Livros

 

Para deixá-lo motivado, separei 10 frases que grifei durante minha leitura deste livro. Veja se concorda com elas: 

  • A escrita é uma relação íntima entre duas pessoas levada ao papel. 
  • Se você for você mesmo, o assunto de que tratar exercerá o seu próprio poder de atração. Acredite na sua própria identidade.
  • Toda escrita é, em última instância, um modo de resolver um problema. 
  • A frase mais importante de qualquer texto é a primeira. 
  • A boa escrita é enxuta e segura.
  • Faça parágrafos curtos. Escrever é algo visual – as letras capturam os olhos.
  • Procure sempre alguma forma de se mostrar disponível para as pessoas que você está tentando atingir. 
  • Você não vai escrever bem enquanto não entender que escrever é um processo contínuo.
  • A maior parte da reescrita consiste em remodelar, enxugar e refinar o material bruto. 
  • As pessoas escreverão melhor e com mais prazer se o fizerem de algo que tem a ver com elas. 

 

Obrigada por escrever para mim. Esse foi o Fabiano no Divã, o próximo pode ser você. Envie seu relato para mim e participe das próximas colunas.

 

Karina Nones Tomelin

Educadora, psicóloga, pedagoga, mestre em Educação. Colunista na Revista Ensino Superior.

Por: Karina Tomelin | 15/12/2023


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