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Formação

Da aldeia à academia – a luta para preservar a cultura dos povos originários

MEC lança consulta pública para a construção da primeira universidade indígena do país

Publicado em 23/07/2024

por Gustavo Lima

Universidade indígena “Montar um currículo que dê conta da universalidade dos 305 povos e das 274 línguas indígenas que temos no Brasil hoje se constitui como um desafio” (foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)

No dia 5 de jullho, o Ministério da Educação deu início à consulta pública para o desenvolvimento da primeira universidade indígena do país. A proposta não é nova, simboliza a luta de diferentes gerações que desejam ver a instituição ganhar forma. O objetivo da consulta, que ocorre em forma de seminários, é ouvir e garantir a participação da população indígena em todas as etapas do processo de construção da IES.

Natural de Rio Negro, no Amazonas, Arlindo Baré se mudou para São Paulo em 2019, “atrás de uma perspectiva coletiva.” Estudante do curso de engenharia elétrica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da União Plurinacional dos Estudantes Indígenas (UPEI), ele explica: “faço o curso coletivo, não o escolhi individualmente. Faço engenharia elétrica com a vontade de levar uma energia limpa, sustentável e que não agrida as nossas formas de se relacionar com o mundo. Volto fazendo esse diálogo para explicar qual tecnologia estou levando para o meu povo, para não levar lixo tecnológico ou violência.”

Baré integra o grupo de trabalho para a universidade indígena, instituído pelo MEC em abril, e coordena os seminários da região Sudeste. Com sua experiência no universo acadêmico, consegue enxergar uma universidade indígena tanto na perspectiva das aldeias quanto na perspectiva dos estudantes matriculados “em uma das melhores universidades da América Latina.” Para ele, o momento é histórico. “São três gerações lutando. A geração da constituinte, a geração de acesso à universidade e a nossa geração, que já participa muito ativamente pela necessidade e pela quantidade de estudantes indígenas que estão atualmente matriculados nas universidades”, comenta.

 

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A iniciativa passará por 12 estados brasileiros. Quando o GT foi instituído, Rosilene Araújo Tuxá, coordenadora-geral de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), defendeu a existência de uma “legislação própria” para a educação escolar indígena. À época, ela pontuou que os cursos implantados “devem ter o olhar para o meio ambiente, para os projetos de bem viver e para o potencial dos territórios.” Acesse a declaração completa.

Arlindo Baré

Arlindo Baré, estudante de engenharia elétrica da Unicamp e presidente da União Plurinacional dos Estudantes Indígenas: “o povo indígena está deixando de ter medo” (foto: arquivo pessoal)

“Nossa maior preocupação é quem serão os estudantes do futuro. Uma das falas do cacique Almir [Suruí] é que esses estudantes ‘seriam aqueles que realmente viessem à universidade para validar os nossos conhecimentos e as nossas ciências’. Esse foi o sonho das nossas grandes lideranças e a nossa preocupação é exatamente que essa universidade se torne espaço de diálogo dos saberes”, explica Baré.

O estudante aproveita para fazer uma observação acerca do termo usado. “Saberes é uma palavra que não gosto muito porque existem literaturas que colocam as nossas ciências como ‘saberes’ em uma tentativa de diminuí-las. Acredito muito na universidade como plataforma não só para dizer quem somos a partir dos espaços de pesquisa mas, ao mesmo tempo, promover esse diálogo tão necessário para a humanidade entender o que já fazemos enquanto povos indígenas. A universidade vai validar as nossas concepções e, a partir disso, conseguiremos atuar em diálogo com o Estado”, acrescenta.

 

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José Carlos Tupinambá, graduado em letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) e doutorando em antropologia social pela Universidade de Brasília (UnB), esteve presente no primeiro seminário da consulta, em Salvador, na Bahia. “Falamos sobre o tipo de universidade que queremos e qual o currículo que melhor se adequa à essa realidade.” A tarefa, como lembra o doutorando, não será simples. “Montar um currículo que dê conta da universalidade dos 305 povos e das 274 línguas indígenas que temos no Brasil hoje se constitui como um desafio.”

Para Tupinambá, o currículo deve dialogar com as tradições, com o respeito aos mais velhos e com a ciência de cada povo. “Se você observar, o currículo da academia é ‘esbranquiçado’ e não valoriza muito, ou quase nada, essas práticas culturais”, critica.

De acordo com a proposta da Universidade Intercultural Indígena, distribuída pelo MEC durante os seminários, a instituição “pretende ser lócus do estudo e difusão das culturas dos povos indígenas brasileiros e da América Latina, respeitando e valorizando as identidades e diversidades culturais”.

Na avaliação de Arlindo Baré, “fortalecimento” também deve ser palavra-chave no DNA da nova instituição. “Deve abarcar a produção de ciências nos territórios para o fortalecimento das nossas tradições, culturas, formas de viver e de se relacionar com a natureza.” Para Baré, a Universidade Intercultural Indígena pode servir de caminho para que estudantes indígenas tenham acesso às grandes e melhores instituições do ponto de vista ocidental, como USP e Unicamp, e, assim, trabalhem a ciência dos povos originários de forma conjunta com o melhor que a ciência ocidental têm a oferecer.

 

Permanência na academia

José Carlos Tupinambá destaca que garantir o acesso da população indígena ao ensino superior é importante, mas não o suficiente. “O acesso por si só não garante a permanência porque são estudantes oriundos de comunidades indígenas que, às vezes, precisam criar uma estrutura de sobrevivência na cidade, estão acostumados com a aldeia e suas tradições. Há casos em que o espaço acadêmico não é acolhedor, pois não observa essas necessidades culturais.”

O doutorando salienta que, atualmente, o Brasil conta com diferentes professores atuantes nas questões indígenas, que têm acolhido os estudantes nos mais variados programas e cursos de formação. Ele relata que, durante o seminário em Salvador, um dos temas apresentados foi o tipo de profissional que a população quer dentro da universidade a ser criada. “Por mais que tenhamos um avanço gigantesco, há alguns ritos do governo e das instituições federais. Por exemplo, não temos profissionais indígenas o suficiente para que o corpo docente dessa universidade seja composto apenas por professores indígenas. Mas temos um público bom que pode, sim, ser professor.”

“Na discussão, um dos pontos que colocamos foi que prioritariamente tenhamos profissionais indígenas capacitados, que estejam na pós-graduação, no mestrado ou no doutorado. E, na falta destes, que sejam profissionais não indígenas, mas dentre os que já trabalham com as nossas questões. Sejam eles antropólogos, linguistas, pedagogos que, nas universidades desenvolvem algum projeto ou que já conhecem os territórios e vêm contribuindo com a causa”, comenta.

 

Orgulho de ser

Segundo o IBGE, o número de indígenas residentes no Brasil em 2022 era de 1.693.535 pessoas. Na edição mais recente do Mapa do Ensino Superior no Brasil, elaborado pelo Instituto Semesp com dados do Inep, a informação é de que, no mesmo ano, 29.468 estudantes se autodeclararam indígenas na rede privada, enquanto na rede pública as matrículas de alunos indígenas totalizava em 16.784.

Seja nas universidades ou na sociedade como um todo, a população indígena deve crescer. Isso porque, segundo Baré, “o povo está deixando de ter medo.”

 

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“Eu posso confirmar que 50% dos meus parentes têm vergonha de dizer que são indígenas por medo do preconceito e do racismo. Essa coragem vai surgindo e as pessoas vão se declarando como indígenas. É provável que no próximo Censo esse número dobre por toda luta e resistência que temos construído”, afirma.

É na luta que a população encontra fôlego para dizer quem é, assim como Baré encontrou ao olhar para o avô, e como o filho, de 18 anos, encontrou no pai. “Meu filho faz treinamento de atletismo de alto rendimento aqui em Campinas e vai com toda a proteção, com o seu colar. Na idade dele, eu tinha medo do preconceito. Mas ele já têm essa coragem porque sabe o que tem por trás, é bem informado e sabe dos seus direitos”, conta.

 

O que está por vir

A proposta da Universidade Intercultural Indígena prevê três eixos de formação: graduação, pós-graduação e educação continuada. Espera-se que os cursos iniciais – a serem definidos com base na demanda apresentada pela população indígena –, sejam nas áreas de formação de professores, engenharia e tecnologias, saúde, gestão ambiental e territorial, gestão de políticas públicas, direito e agroecologia.

O projeto contará com um campus-sede em Brasília e desenvolverá uma rede de Institutos de Formação Indígena em universidades federais. O MEC também indica a criação do Observatório da Vida Estudantil, que visa dar o suporte necessário para garantir a permanência e o sucesso dos discentes. 

 

Autor

Gustavo Lima


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