NOTÍCIA
Para a história do Brasil, repercussão do filme é maior do que qualquer estatueta dourada
Publicado em 14/02/2025
Não é cedo para dizer que 2025 é um ano histórico, pelo menos para o setor de audiovisual. Com Ainda Estou Aqui, longa-metragem baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva e dirigido por Walter Salles, o Brasil celebra três novas e suadas indicações ao Oscar. Desta vez nas categorias de Melhor atriz, pelo desempenho de Fernanda Torres, Melhor filme de língua não inglesa e Melhor filme – a mais importante da premiação. Nem mesmo as tentativas de boicote foram capazes de evitar o sucesso estrondoso da obra que tem enchido salas de cinema desde a sua estreia no circuito. Até o momento, o filme ocupa a quinta posição no ranking de maiores bilheterias do cinema nacional.
Vale observar que o sucesso do longa não se limita à nomeação ao Oscar, está muito além. As indicações servem apenas para potencializar a importância da obra, que mora nos detalhes. Não se trata apenas de um filme brasileiro indicado ao “maior prêmio do cinema”, mas de um filme que foi reconhecido abordando o criminoso regime militar, instaurado no país entre 1964 e 1985. Também não é apenas um filme sobre a ditadura, mas uma produção latino-americana indicada à categoria de Melhor filme no mesmo ano em que retorna à presidência dos EUA um governo marcado pela política anti-imigrantes.
O curioso mesmo é que no ano em que a Academia abre portas para o fantasioso mundo de Oz, com as bruxas e vassouras voadoras de Wicked (musical também indicado ao prêmio), é o Brasil quem marca ponto por desafiar a gravidade.
Para traduzir o impacto de Ainda Estou Aqui, a Ensino Superior ouviu a pesquisadora Eloá Chouzal. Bacharel em História pela FFLCH-USP e pós-graduada em cinema-documentário pela Fundação Getulio Vargas (FGV), Eloá desenvolveu pesquisas para nomes de peso, como Fernando Meirelles e Tata Amaral. Em 2020, fez parte do movimento contra o abandono da Cinemateca Brasileira. Aos 62 anos, a profissional acredita que a arte é capaz de criar uma outra via de acesso à informação, podendo a educação ocorrer através dela. Leia abaixo a entrevista completa.
O impacto é muito grande. Na música, por exemplo, tivemos Aldir Blanc e Gonzaguinha, pessoas que estavam amplamente engajadas. O trabalho deles foi importantíssimo porque conseguiram misturar a história e criar algo didático em certo sentido. A arte cria uma outra via de acesso para as pessoas e é o que estamos vendo com esse filme.
Enquanto historiadora e pesquisadora voltada para imagens e conteúdo, sou chamada para trabalhar com documentários. O alcance de público para os documentários é pequeno, ele pode ir para a televisão em determinado momento, mas não existe essa cultura de consumir produções documentais. Já um filme de ficção com essa potência e que trabalha com sensibilidade um tema tão delicado, tem um alcance maior de público, além de provocar reflexões internas em quem o consome.
O cinema é uma forma de capturar e de trazer reflexões pelo lado da emoção e, nesse caso, temos duas grandes atrizes dramáticas (Torres e Fernanda Montenegro) dando um tom muito especial à obra. Há a possibilidade de futuramente levar esse filme para as escolas, promover debates e, em uma sala de história ou filosofia, observar o alcance dele nos jovens. O docente pode relacionar o longa com assuntos da história brasileira que esteja trabalhando naquela sala.
Informações existem. A questão é como a população acessa essa informação. É preciso dar ferramentas para que as pessoas possam pensar. De alguma maneira, é importante que tenham a possibilidade de uma educação para a política, seja ela formal ou informal.
O tema da anistia política voltou à tona. Os eventos de 8 de janeiro e o que discutimos em relação a esse episódio tem um peso. A sociedade está pressionando para que essas pessoas paguem pelo que fizeram porque lá atrás isso não foi cobrado, houve uma anistia apaziguadora por medo dela não sair.
A democracia está na corda bamba. E acredito que sim, pode auxiliar. Mas isso teria que ser aprofundado. O filme toca no tema e, se bem aproveitado, pode gerar reflexão, mas não necessariamente será encaminhado para isso em cada indivíduo.
No governo anterior, tivemos Bolsonaro dizendo que as pessoas deveriam ter sido ainda mais torturadas e mortas, houve ainda a atitude dele de atacar a família Paiva, de cuspir no busto de Rubens Paiva. Essas ações foram feitas impunemente e as pessoas fecharam os olhos para isso. Essa obra é importante para não nos deixar esquecer que aquilo aconteceu de verdade.
Eloá Chouzal, pesquisadora e historiadora: “o cinema é uma forma de capturar e de trazer reflexões pelo lado da emoção” (foto: arquivo pessoal)
Sim. Essa história é maravilhosa porque é também a história de uma mulher. Foram contadas muitas histórias de homens, como [Carlos] Marighella e [Carlos] Lamarca. Mas nesse mesmo período tivemos mulheres que foram marcos da resistência. Temos Clarice Herzog. Sua história é incrível porque em 1978, em plena ditadura, após o assassinato do marido Vladimir Herzog, ela entrou com um processo contra a União, exigindo que a organização fosse responsabilizada pelo assassinato de Herzog, morto dentro de uma prisão. Clarice não entrou com o processo para ser ressarcida monetariamente, mas para que a União se responsabilize por esse crime. Ela ganhou e isso foi um marco, inclusive para a Eunice [Paiva] e para outras mulheres que haviam perdido os maridos.
Mas sem dúvidas existe essa lacuna. Talvez porque a maior parte dos documentaristas seja composta por homens. Fiz um mapeamento de mulheres cineastas para As Protagonistas (2019), documentário da Tata Amaral sobre a história do cinema brasileiro através das mulheres. Foram mapeadas as pioneiras, a primeira cineasta negra, as mulheres trans. Precisamos formar mais meninas, mas elas estão chegando.
Se informar é importantíssimo. O problema é com o que as pessoas estão se informando. O poder das redes sociais hoje em dia é enorme. Elon Musk e Mark Zuckerberg se aliando a Donald Trump com a censura, decidindo o que pode ou não entrar no Facebook e no Instagram, só reforça o domínio que eles têm sobre milhões de pessoas. Há um componente novo na história que é essa revolução tecnológica e isso deve gerar um impacto na sociedade a longo prazo.
Eu vivi o impacto de um governo de ditadura que desmontou a educação. A minha escola pública nos anos 1970 era um brinco, com professores incríveis e uma qualidade muito boa de ensino. Como estudantes secundaristas indo para a guerrilha, o regime militar entendeu que acabando com a educação, desmobilizando, haveria um impacto na população. E teve.
Sim, mas temos muitas outras lutas paralelas, como a regulação do streaming e a cota de tela. Toda essa repercussão nacional e internacional está servindo para isso, aproveitar o momento de luz sobre o cinema nacional para seguir nessas lutas. As plataformas de streaming são poderes globais e é preciso ter coragem para peitar esses poderes que pagam mal, que podem romper contratos e ficar com os temas apresentados pelos autores, que não dão os devidos créditos. É realmente uma luta de classe em um outro nível. Um filme como esse que repercute e que tem visibilidade une a classe.
_ _ _
Na capital paulista, Ainda Estou Aqui será exibido no “Cine debate educação” promovido pelo Coletivo de professores do Janela Aberta em parceria com o Cine Marquise. O objetivo é usar o cinema como ferramenta de aprendizado dentro e fora das escolas. A sessão acontece no dia 23 de fevereiro, às 11h, seguida de análise e debate com os professores do Coletivo. Os ingressos custam R$ 15 (meia entrada) e R$ 30 e podem ser adquiridos no site do Cine Marquise.
A história da família Paiva segue em cartaz nas salas de cinemas brasileiros. Veja o trailer de Ainda Estou Aqui: