O futuro da inteligência artificial na educação será moldado por decisões pedagógicas conscientes, coletivas e críticas
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Eu prometi a mim mesma que não falaria mais de inteligência artificial nesta coluna. Mas foi uma promessa vã. Porque se há um tema urgente, inquietante e inevitável na educação de hoje, é este. A IA já está entre nós — não como promessa futurista, mas como realidade cotidiana, às vezes sutil, às vezes avassaladora.
A Unesco lançou recentemente o marco referencial de competências em IA para professores, um documento robusto que tenta trazer ordem ao caos. Mais do que um guia operacional, é um chamado ético-pedagógico. A proposta se organiza em cinco dimensões, atravessadas por três níveis de desenvolvimento (adquirir, aprofundar, criar), sinalizando que o uso da IA na docência não é binário — é evolutivo. Esta visão se materializa por meio das 5 dimensões.
1) Mentalidade centrada no ser humano – A tecnologia deve ampliar a empatia, não soterrá-la.
2) Ética da IA – Algoritmos sem valores reproduzem desigualdades silenciosas.
3) Fundamentos e aplicações – O professor precisa compreender a lógica por trás dos sistemas.
4) Pedagogia da IA – Integrar com intenção pedagógica, não apenas aplicar com eficiência técnica.
5) IA para o desenvolvimento profissional – Porque educadores que aprendem continuamente são aqueles que transformam.
Esse documento nos desafia: educar com IA, mas jamais por IA.
Como alerta a filósofa Shoshana Zuboff, “a tecnologia não é neutra. Cada código carrega uma visão de mundo.” E na sala de aula, seja ela presencial, semipresencial ou digital, o mundo que queremos construir começa nas escolhas que fazemos — inclusive digitais.
A IA entrega o que sempre nos faltou: tempo. Planeja, sugere, corrige, organiza. E muitas vezes, surpreende. Mas o tempo que ganhamos só é valioso se não vier acompanhado de distanciamento.
Em abril de 2024, uma notícia da revista Entrepreneur percorreu universidades, grupos de WhatsApp e salas de aula: um aluno universitário pediu reembolso da mensalidade ao descobrir que seu professor estava usando o ChatGPT para corrigir trabalhos e preparar aulas.
A frase do estudante foi como um soco: “Se a IA fez tudo, por que estou pagando por um humano?”
O episódio provocou uma discussão que já estava latente: até onde a IA pode ir sem esvaziar a presença do professor? O problema não foi o uso da ferramenta — foi o uso sem mediação, sem escuta, sem intencionalidade pedagógica.
Quando o professor se ausenta, o aluno percebe. E mais: o aluno se desconecta.
Porque, no fundo, os estudantes não estão atrás apenas de respostas eficientes.
Estão buscando uma presença real.
Alguém que olhe, que escute, provoque, se envolva e compartilhe o processo, não apenas o resultado. Isso, nenhuma IA consegue simular com verdade. O problema não foi o uso da IA, mas a ausência de presença pedagógica.
Esse caso nos obriga a perguntar:
Ela escreve. Mas quem é o autor?
Ela corrige. Mas quem ensina o erro?
Ela planeja. Mas quem conhece o contexto da turma?
Ela responde tudo. Mas quem ainda ensina a perguntar?
Esses dilemas não são mais teóricos. Eles estão entre nós: nas salas de aula, nas rubricas, nos textos “bons demais”, nos silêncios que não dizem nada.
Presença não é só física — é intencional.
Mais de 80% dos professores brasileiros reconhecem os benefícios da IA. Cerca de 60% já a utilizam no planejamento e criação de aulas (CENPEC, 2024). Nos EUA e no Reino Unido, esse número ultrapassa 80%. Mas adesão não significa apropriação crítica.
A infraestrutura precária, a escassez de formação e a ausência de debate ético deixam muitos professores em um território ambíguo: reconhecem o potencial, mas não sabem por onde começar — nem até onde ir.
O risco é claro: quando a adoção vem sem reflexão, vira automatismo. E automatismo é o oposto da educação com sentido.
A IA não elimina o papel do educador — ela o reinventa.
De transmissor, ele passa a ser curador e mediador. De autor isolado, a cocriador consciente. Como ensinou Paulo Freire: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção.”
A IA pode apoiar esse processo. Mas isso exige intencionalidade, valores claros e compromisso com o ser humano.
O futuro da IA na educação não será definido apenas por startups, plataformas ou grandes relatórios internacionais. Ele será moldado por decisões pedagógicas — conscientes, coletivas e críticas.
A pergunta já não é se vamos usar IA. A pergunta é:
Com que propósito? Com quais limites? E sob quais princípios éticos? Educar com IA é possível. Mas só será transformador se a tecnologia for instrumento de expansão, e não de delegação.
Se a IA organiza, nós ainda somos quem define o sentido. Se ela propõe, cabe a nós validar, adaptar, cuidar. O centro da educação continua sendo o encontro. E nenhum sistema, por mais sofisticado, substitui isso.
A inteligência artificial pode fazer muito. Mas não pode fazer tudo. Pode escrever textos, mas não interpreta silêncios. Sugere caminhos, mas não conhece as trilhas de cada aluno. Acelera processos, mas não entrega o que mais importa: a presença com propósito.
Educadores são — e continuarão sendo — o algoritmo mais sensível e estratégico da educação. Porque ensinar é um ato humano. E isso, nenhuma IA reproduz com verdade.
O marco referencial de competências em IA para professores nos lembra que o protagonismo do educador não está em dominar ferramentas, mas em conduzir, com consciência e valores, o uso dessas tecnologias. Mais do que aprender a operar sistemas, é preciso aprender a perguntar por que e para quem os operamos.
A formação docente, portanto, precisa sair da esfera técnica e assumir sua dimensão política e humanizadora. Porque, como reforça o Marco da UNESCO, ensinar com IA é possível. Mas educar com sentido continuará sendo, sempre, uma escolha profundamente humana.
Por: Thuinie Daros | 08/07/2025