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Paulo Blikstein critica a aposta exagerada nas plataformas adaptativas para democratizar a educação. Para atingir esse objetivo, o caminho é investir no professor, em gestão escolar e no uso equilibrado da tecnologia, diz ele
Publicado em 19/12/2022
Para o professor Paulo Blikstein, da escola de educação da Universidade Stanford, na Califórnia, e diretor do Stanford Lemann Center, o papel da tecnologia na educação é auxiliar o professor na sala de aula – e jamais substituí-lo. “As plataformas adaptativas podem ser uma ferramenta a mais, mas estão longe de ser uma revolução ou um milagre como se anuncia”, diz. Na entrevista a seguir, Blikstein, engenheiro pela Escola Politécnica da USP, fala sobre o papel dessas ferramentas no cenário educacional do Brasil e dos EUA.
Com a presença maior de novas tecnologias em sala de aula, muitas vezes trazidas como uma solução para a educação brasileira, como fica o papel do professor? De que maneira ele pode intervir no uso de uma plataforma adaptativa, por exemplo?
Há cem anos tentamos substituir o professor por tecnologia, e nunca deu certo. É como querer substituir o médico na sala de cirurgia, não faz sentido. É o jeito errado de pensar tecnologia educacional. O que faz sentido é dar ferramentas tecnológicas para o professor melhorar o que ele faz na sala de aula, assim como um médico usa tecnologia para melhorar o diagnóstico e o tratamento. Mas o professor precisa ser extremamente bem treinado no uso dessas tecnologias. Gastamos dinheiro demais nos equipamentos e pouco na formação. Para cada R$ 1 gasto em equipamento, precisamos de R$ 9 em formação. Com a formação adequada, as novas tecnologias podem ser extremamente poderosas na sala de aula, não como forma de substituir o professor, mas para potencializar a sua ação, por exemplo, com tecnologias “maker”, laboratórios de ciências computadorizados, robótica, softwares de simulação, ferramentas de pesquisa on-line e de mapeamento de informação etc. As plataformas adaptativas podem ser uma ferramenta a mais, mas estão longe de ser uma revolução ou um milagre como se anuncia.
Há uma crítica de que as plataformas adaptativas poderiam ampliar o fosso entre os alunos com melhor e pior desempenho. Qual a opinião do senhor sobre isso?
O que temos hoje no Brasil, e mesmo nos EUA, não são plataformas adaptativas. Esse é um nome bom para fazer propaganda, mas não corresponde ao estado da tecnologia. O meu grupo de pesquisa investiga essas plataformas, portanto fico muito à vontade para dizer que essas plataformas deveriam ser chamadas de “sistemas de treinamento para provas de múltipla escolha”, ou “sistemas de recomendação de conteúdos”. Mesmo nos EUA, eu vi muitas empresas anunciarem suas plataformas “adaptativas” que no fim viraram sistemas de treinamento para o Enem ou para o SAT (a prova de admissão para faculdades americanas), que, apesar de ainda serem úteis, estão longe de ser revolucionárias ou democratizadoras. Me incomoda quando usam esse discurso de “vamos democratizar a educação” e depois de um ano estão vendendo produtos para alunos de escolas particulares. Para alunos que já sabem uma parte do conteúdo, e precisam de reforço, essas plataformas podem ser ótimas, principalmente para conteúdos mais simples. Mas para quem não sabe nada, ou sabe muito pouco, colocar uma criança na frente de um computador assistindo a um vídeo e respondendo testes de múltipla escolha é muito pouco efetivo. Eu visito escolas de baixa renda fazendo isso e dá vontade de se jogar pela janela – é um cenário triste. E no fim isso acaba aumentando a diferença, porque os alunos com mais dificuldades veem muito pouco benefício. O outro problema é o custo de oportunidade: você investe nessas plataformas e deixa de investir em outra coisa, já que os recursos são limitados.
Outra crítica sobre as plataformas adaptativas é que elas, em sua maioria, são baseadas nos currículos e nas divisões por série americanas, portanto de difícil aplicação nas escolas brasileiras. Como resolver essa questão?
Em educação, não basta somente importar as coisas americanas. É preciso investir – e muito – em adaptar à realidade brasileira. Se estamos fazendo uma base curricular comum no Brasil, não faz sentido que os materiais e plataformas que tenhamos não sejam desenhados para a base brasileira. E, claro, em testes de múltipla escolha você não consegue avaliar as competências do século 21 – então mais do que pensar na base curricular, ou nos relevantes cem anos atrás, temos de pensar no que queremos que os alunos saibam para a vida do século 21.
Para finalizar, o que um algoritmo ideal deveria “enxergar” no aprendizado de um aluno, mas a tecnologia ainda não foi capaz de desenvolver?
Em primeiro lugar precisamos ser mais realistas sobre essas plataformas e entender para quê elas são úteis. Vamos parar de chamar softwares simplórios de testes de múltipla escolha de “plataforma adaptativa”. Para serem verdadeiramente adaptativas, essas plataformas precisam saber interpretar coisas mais complexas, uma resposta escrita, um gráfico, um diagrama, uma equação, uma pequena redação. É o mesmo que chamar um carro de avião de baixa altitude – se você quer uma plataforma realmente adaptativa, tem de investir em pesquisa e desenvolvimento. Tenho colegas em universidades norte-americanas trabalhando em plataformas verdadeiramente adaptativas, mas só para construir um módulo de álgebra eles levaram dez anos. É essa a dimensão do desafio. Essas plataformas podem e vão ser muito úteis para alguns tópicos do currículo, e para um certo perfil de aluno. São plataformas de reforço e não para aprender do zero. Para realmente democratizar a educação de qualidade, sabemos como fazer: professor na sala de aula, valorização profissional, tecnologias na medida certa, boa gestão e formação profissional de alta qualidade. E a sociedade brasileira tem de decidir se quer pagar essa conta e encarar esse desafio, sem profetas ou milagres.