NOTÍCIA
François Staring, analista de Políticas de Educação Superior da OCDE, e Francesc Pedró, diretor da IESALC/Unesco, debaterão educação digital no Fnesp 2024
Publicado em 02/07/2024
Educação digital significa preparar os estudantes para viver e trabalhar de forma crítica em um mundo que opera cada vez mais com tecnologias digitais. É desejável promover esse tipo de educação por meios digitais, porque dessa forma as pessoas aprendem na prática. Contudo, só os meios e a tecnologia de ponta não bastam. A convivência, a criatividade e valores humanos são indispensáveis para uma educação que seja digital e de vanguarda.
Na verdade, por mais tradicionais que sejam os cursos superiores, hoje é praticamente impensável uma instituição não se apoiar em algum momento no digital, destaca François Staring, analista de Políticas de Educação Superior da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). “O digital está em toda parte. Em todo o universo da educação sempre teremos algum tipo de componente digital hoje em dia. Mesmo em um curso totalmente presencial, há ferramentas digitais na sala, a comunicação será feita por email, o sistema de gerenciamento da instituição vai ser uma plataforma digital”, afirma o analista.
Portanto, não faz sentido usar o termo digital como uma forma de se diferenciar do presencial ou físico. A confusão de terminologias acaba causando ruídos de comunicação. “É importante usar uma definição clara cujo significado todos possam entender. Um curso pode ser presencial ou online. Mas mesmo assim há diferenças, porque pode ser online com encontros na mesma hora, ou pode ser assíncrono, com a pessoa se logando para ler ou assistir a uma palestra gravada”, cita Staring, que falou à Ensino Superior num encontro síncrono por videoconferência, mas estará pessoalmente no Fnesp, em São Paulo, onde participará do painel Vamos resolver esse BUG: Educação Digital NÃO é sinônimo de online, IA e algoritmos.
Nessa seara, um componente vem trazendo uma camada extra de complexidade nos últimos anos: a inteligência artificial (IA). Ao incluir alguma forma de IA nos cursos, deve-se garantir clareza para o estudante sobre quais processos e etapas são feitos por humanos e em quais os algoritmos serão responsáveis. De qualquer forma, ainda falta descobrir quais são as melhores formas de usar a IA no ensino superior. “Até agora, acho que ninguém no setor realmente sabe a resposta de como melhor usar a IA. Tem muitas instituições fazendo pilotos e experiências, com diferentes tipos de políticas”, afirma o analista da OCDE.
Sem minimizar riscos, Staring recusa as visões catastrofistas sobre a IA, diz preferir se focar nas oportunidades e garante até que ela já está provocando certas mudanças positivas. “Em termos de avaliação, a emergência da IA está nos forçando a pensar de forma mais criativa, buscando aumentar a complexidade das questões e das formas de fazer os exames”, exemplifica. Se nas avaliações o impacto até agora parece ser para promover melhorias, um dos grandes perigos é a diminuição do contato humano. Contudo, o analista não acredita que seja esse o cenário mais provável.
“As tecnologias devem nos levar a imaginar uma aprendizagem mais ativa, a criar novas formas de trabalhar com os estudantes. Deu para perceber muito bem durante a fase do isolamento social pela Covid-19 que as pessoas desejam interações humanas. Vejo que a IA pode mostrar a importância do processo de socialização de forma ampla e promover no ensino superior uma abordagem mais focada em competências, como pensamento crítico, capacidade de comunicação e trabalho em equipe”, diz Staring. Em sua visão, para sobreviver num mundo em que os algoritmos resolvem tantas questões, as universidades vão ter de trabalhar mais as competências humanas.
Na realidade, o ensino superior precisa mudar porque toda a sociedade está se transformando. “Temos de fazer um esforço no ensino superior para utilizar novas ferramentas digitais. Já o fizemos antes, mas agora a urgência vem do fato de a utilização da inteligência artificial estar modificando enormemente não só as tarefas realizadas por profissionais com formação superior, mas também os perfis desses profissionais”, diz Francesc Pedró, diretor da IESALC/Unesco (Instituto Internacional de Educação Superior da Unesco para América Latina e Caribe), que estará ao lado do analista da OCDE no painel do Fnesp 2024.
Segundo o diretor da Unesco, o que não se deve fazer é “enterrar a cabeça” na areia e negar o que se passa ao redor, ou o que se passará em muito breve. “Temos de reagir rapidamente, porque aqueles que são estudantes vão encontrar-se amanhã num ambiente profissional e terão de trabalhar com essas ferramentas – em praticamente todas as áreas profissionais”, ressalta.
Entre quem já está no mundo do trabalho, o caminho de volta aos bancos universitários talvez se torne inevitável. Caberá às IES se adaptar para oferecer opções interessantes aos mais experientes. Staring e Pedró imaginam que as tão prometidas “microcredenciais”, pensadas como cursos rápidos para competências específicas, afinal vão se concretizar.
E, apesar de a IA ser uma novidade, metodologias que buscam um aprendizado mão na massa, ou o chamado “aprender fazendo”, não são exatamente uma revolução no que se sabe sobre as aprendizagens. “Para oferecer oportunidades de desenvolvimento em capacidades digitais às pessoas deve-se sim utilizar os meios digitais como canais de formação. É o mesmo que aprender a andar de bicicleta ou nadar: as competências se desenvolvem ao máximo se forem exercitadas na prática”, lembra Pedró.
Além de ajudar a usar as tecnologias que já existem, o ensino superior tem ainda o dever de liderar o desenvolvimento de novas abordagens para elas. “Não fazemos bem em proibir essas ferramentas. Ao contrário, as universidades deveriam ser os espaços onde mais se contribua para o uso avançado delas”, afirma o diretor. E não se trata só de um desejo; Pedró realmente acredita que as IES são capazes disso.
“Claro que nem todas as universidades são inovadoras, nem todas têm o compromisso com o progresso. Mas é uma caricatura fácil dizer que o mundo universitário não evolui tecnologicamente, quando na verdade mais de 70% do novo conhecimento que se produz na América Latina é produzido nas universidades”, destaca ele sobre a importância do setor na pesquisa e inovação.
Pedró defende que as IES, diferente do universo do trabalho e do mundo corporativo, de fato têm uma lógica conservadora do ponto de vista dos valores, num “equilíbrio” que nem sempre é fácil de perceber. “É preciso que as universidades que estão na vanguarda da nossa sociedade sejam conservadoras na convicção da liberdade acadêmica, ou liberdade de expressão, por exemplo. São valores que devem ser preservados. Mas, ao mesmo tempo, elas devem estar na dianteira nas questões da economia, dos sistemas de desenvolvimento da ciência e tecnologia”, afirma.
Para manter as engrenagens de uma instituição que seja firme em valores sem abrir mão de seguir avançando tecnologicamente, uma peça fundamental – e que precisa de atenção constante – é o corpo docente. Nesse ponto, as IES podem atuar de duas maneiras: oferecer aperfeiçoamento e reconhecer os esforços.
“A maioria das universidades de prestígio que conheço têm centros próprios de formação permanente de professores, que ao mesmo tempo são também centros de apoio à inovação do ensino. Acredito que esta tendência que existe há mais de 50 anos em alguns países desenvolvidos está realmente começando a dar frutos”, avalia o diretor da Unesco. Mas de pouco vale a oferta sem prêmios reais na carreira. “Devem reconhecer os esforços que os professores fazem para melhorar as suas competências com incentivos na carreira”, recomenda.