NOTÍCIA

Edição 289

Amplitude de visão

Com o livro de Jeferson Tenório, as cotas ganham sua primeira representação literária

Publicado em 13/12/2024

por Rubem Barros

Jeferson Tenório O grande dilema em De onde eles vêm é a permanência do protagonista na universidade, afirma o autor Jeferson Tenório (fotos: Rafael Barros)

Uma das características da literatura brasileira deste século é o fato de grande parte de seus autores elegerem temas que falam com um público mais amplo, como provam títulos com vendagens significativas. É o caso de O avesso da pele (2020), segundo romance do carioca Jeferson Tenório, que superou os 200 mil exemplares comercializados.

Radicado no Rio Grande do Sul desde o início dos anos 80 até 2022, mestre e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o autor vive hoje na capital paulista. Depois de atuar 18 anos como professor dos ensinos fundamental e médio, seu foco está agora na criação literária.

Seu terceiro romance, De onde eles vêm, chegou às livrarias em outubro. Conta a história de Joaquim, cotista vindo da periferia como o próprio Tenório. Mas, apesar de dialogar com a sua própria vida e tentar preencher uma lacuna em termos de representação literária dos cotistas brasileiros e suas agruras, a obra busca trabalhar camadas mais profundas da experiência humana. Joaquim não é Jeferson. Sob muitos aspectos a vida da personagem é mais árdua do que foi a do escritor. Ao mesmo tempo, ele é mais convicto sobre o que quer. Tenório só se assegurou do seu desejo na universidade. Joaquim já chegou querendo ser poeta. Em comum, a descoberta de ambos em relação à importância da leitura como fonte de conhecimento do mundo.

 

Como surgiu a ideia de escrever sobre cotas e o acesso à universidade de uma população antes quase alijada desse ambiente?

Surgiu depois que publiquei O avesso da pele, em 2020. Era um desejo de contar a história dos primeiros cotistas na universidade pública. É, de certo modo, um desejo pessoal, porque também fui cotista da Universidade Federal [do Rio Grande Sul]. E ainda havia uma lacuna dessa representação na literatura brasileira, do que chamo de revolução silenciosa que aconteceu na universidade. Mas eu tinha muito claro que não queria fazer uma discussão sobre o processo de cotas, sobre sua validade ou não. Eu queria descrever a trajetória de estudantes negros na universidade e fora dela, mostrar como foram alcançando uma certa consciência de classe e racial. Ou seja, os alunos negros que saem da periferia e sua relação com os livros, com o conhecimento, como começam a questionar determinadas coisas. Foi um desejo de retratar um momento histórico, a implantação das cotas.

 

Você foi cotista no começo desse processo. Houve muitas mudanças de lá para cá? A integração dos alunos cotistas hoje é diferente daquela época?

É, primeiro pelo sentimento do cotista. Os primeiros cotistas entravam meio envergonhados. Havia um discurso muito forte de que as cotas eram… havia menosprezo à inteligência dos cotistas, como se aquilo fosse um favor, como se o processo seletivo dissesse alguma coisa sobre a inteligência dos cotistas. Nesse primeiro momento, não havia nenhuma articulação de acolhimento dentro da universidade, algum tipo de bolsa ou mobilização dos departamentos, dos professores para acolher esses alunos. E havia também uma desconfiança muito grande dos colegas não cotistas e dos professores.

Passados mais de 20 anos – a primeira implantação foi em 2002 na UnB (Universidade de Brasília) –, a gente vê uma mudança muito significativa. Hoje em dia a universidade é mais diversa, tem uma outra cor, uma bibliografia diferente, discussões diferentes. Houve uma popularização também da gramática antirracista. Hoje, pelo menos no círculo acadêmico e intelectual, é possível falar de lugar de fala, da branquitude, enfim, toda essa gramática que foi popularizada depois da entrada dessas pessoas. É outra universidade.

 

Em muitos sentidos, é a trajetória do Joaquim, o personagem principal de De onde eles vêm que está representada nas tuas respostas. Uma insegurança sobre o próprio capital cultural e de como isso iria contrastar com os outros alunos…

É interessante porque os empréstimos que faço da minha biografia para o Joaquim estão ali, estão dados. Mas há um outro caminho que o Joaquim faz que eu não fiz, que é o de um aluno que entra já querendo ser escritor, querendo ser poeta, já é um grande leitor, é alguém que, de certo modo, já domina o jargão literário. E comigo tudo se deu muito tardiamente, durante a universidade.

 

Quanto você está próximo ou distante da autoficção?

Existem escritores que fazem questão de deixar mais evidente que fazem autoficção. E outros que procuram esconder. Eu não me importo muito com essa classificação. Se quiserem classificar a minha literatura como autoficção, autobiografia, por mim não tem problema nenhum. A minha única questão é se essa classificação diminui o valor estético do que eu escrevi. Aí já é outra coisa.

 

O livro tem um personagem-chave, do ponto de vista dos caminhos do Joaquim, que é o Sinval, um ex-professor que abre um pouco os horizontes da vida dele por meio das trocas sobre livros e leituras. Como surgiu esse personagem?

A ideia do Sinval era apresentar um personagem negro, intelectual, alguém que não pertencesse à universidade, então ele é um professor aposentado. E eu também não queria que o Sinval fosse uma espécie de mentor. Queria que eles tivessem um contato inicial, mas que depois houvesse um distanciamento, para que o Joaquim pudesse pensar por si, fazer as próprias escolhas. Mas esse primeiro momento com o Sinval é importante porque marca uma discussão que vai terminar o livro, que é o que significa uma literatura negra, o que é uma literatura negra.

E nessa conversa, uma conversa bastante dura que ele tem com o Joaquim, ele diferencia o que é um texto panfletário, um texto de reivindicação e o que é um texto literário. E o Joaquim é um jovem de 24 anos que está aprendendo ainda como se faz um conto, está começando a se aventurar na escrita criativa. Essa conversa é para dizer; “olha, para fazer literatura, isso aqui é secundário. Ou seja, com o que você precisa se preocupar é em fazer uma boa história”. E ao longo do livro outras cenas também vão discutir o que seria essa literatura negra.

 

Você acha que, tanto no caso da literatura negra, como no caso da literatura feminista, ou de defesa de outras bandeiras, esse lado panfletário tem sobressaído muito?

A questão do lado panfletário depende da recepção. Porque por mais que eu diga que De onde eles vêm tem muitas camadas, trata de vá-rios temas, o que se compreende é que é um livro sobre cotas. Isso coloca o livro num tema. rovavelmente, o que se espera de um livro sobre cotas é que ele seja um livro de reivindicação, de protesto. Depois, quando a pessoa lê e percebe que não é bem isso, vai depender de como ela julga o livro. Pode, mesmo assim, dizer que é um livro que tem pautas identitárias, de reivindicação. Agora, o sistema literário admite muita coisa, inclusive textos que sejam mais de reivindicação ou panfletários, o que sempre houve na história da literatura, não é uma novidade das minorias. Há, ao longo da história da literatura, textos que são mais diretos, que não têm muitas metáforas. Isso é bastante comum.

 

Ao se deparar com um repertório mais amplo no universo acadêmico, ao ampliar o olhar, o que mudou na tua linguagem?

Comecei a ter acesso, a ter a possibilidade de conhecer uma bibliografia que, se eu estivesse fora da universidade, talvez demorasse mais tempo para me apropriar. São referências ocidentais, eurocêntricas, brancas, ou seja, a minha formação começa com esses autores, com Homero, Cervantes, Shakespeare, todos esses autores que são cânones e pertencem a uma cultura eurocentrada.

Mais para o final da minha graduação, começo a me apropriar de uma literatura produzida por autores negros, principalmente os norte-americanos. Depois, já entrando no mestrado, começo a ler mais os autores negros brasileiros. Descubro que o Machado de Assis era negro. E quando eu junto esses universos que parecem tão distantes consigo produzir um livro como O avesso da pele, que tem um professor negro de literatura que leva Crime e castigo, do Dostoiévski, para alunos de EJA [Educação de Jovens e Adultos]. Essa é a ideia: ampliar a nossa visão de mundo sem que haja exclusão. Porque a exclusão é bem colonialista, ou seja, para uma coisa existir você tem de aniquilar a outra. Penso de modo diferente, acho que a concomitância de conhecimentos amplia a nossa visão.

 

Se você fosse elaborar o currículo de literatura para o ensino médio ou superior, quais conteúdos você incorporaria? O que traria dessa matriz africana, negra? Quais são as forças maiores que você enxerga?

O que eu sempre levei durante esses 18 anos na minha formação. Eu tinha uma estratégia de não anunciar. Por exemplo, eu levava Quarto de despejo, da Carolina Maria de Jesus. Colocava entre as leituras do trimestre, ao lado do George Orwell, da Clarice, e dizia “são os livros que a gente vai trabalhar nesse trimestre”. Os alunos liam e depois a gente marcava o dia para debater e fazer um seminário sobre o livro. Discutia primeiro o texto. Fazia uma análise literária, linguística, entrava na questão gramatical. E só depois entrávamos na questão de quem é o autor e que elementos ele traz no seu texto.

Trabalhei com a Carolina Maria de Jesus, com o Lima Barreto, com o Luís Gama, com a Conceição Evaristo, com o Machado de Assis. Trouxe para eles livros, trechos da Sueli Carneiro, discussões do Frantz Fanon, fui colocando esses autores na minha grade de conhecimentos, coisas que eu tinha de mostrar para eles, mas sem fazer alarde. Porque eu acho que é aí que você afasta, começa a discutir o elemento que está fora do texto, e [a questão central] é privilegiar o texto, a sua construção.

 

Jeferson Tenório

“Depois do acesso, você precisa provar para o professor que é bom. Só que não basta provar que você é bom, tem de provar que você é muito bom”

No livro, o Joaquim consegue se inserir num outro ambiente social, no mundo de classe média de seus colegas. Quanto a vida universitária tem efetivamente proporcionado essa interação?

O jovem, ao ir para a universidade, começa a ter acesso a uma série de espaços que ele não tinha antes. Isso passa pelo espaço acadêmico e também pelo espaço pessoal. Começa a ter relações que não são comuns na experiência dele. De onde é que ele vem? Vem da periferia. Tem amigos da periferia. E logo começa a frequentar espaços e a conviver com pessoas diferentes dele, mas que coabitam o espaço acadêmico. Isso, de certo modo, acaba influenciando na vida pessoal do Joaquim. Começa a influenciar seu entendimento de mundo, sua visão de mundo. Ao mesmo tempo que é um ambiente hostil e difícil, é também uma ampliação da visão de mundo.

Claro que para o Joaquim é um lugar de muita fragilidade. Ele não tem dinheiro, não tem condições de fazer tudo que os colegas fazem, não tem condições de participar de um grupo de pesquisa, precisa cuidar da avó, tem de contar dinheirinho para pagar a passagem de ônibus. Ao mesmo tempo que é cruel, significa também essa ampliação de visão de mundo.

 

E isso pode trazer outro dilema: de no teu universo de origem as pessoas começarem a falar “ah, você agora só quer estar com os branquinhos lá da universidade”, a condenar essas descobertas.

Há uma acusação de que você está traindo a causa, que está traindo uma coletividade que te levou até ali. E esse é um cuidado que eu tomo ao construir um personagem negro. No caso do Joaquim foi mais difícil ainda encontrar esse tom de oferecer uma trajetória que não fosse idealizada, mas que também não traísse a causa. A causa no sentido de todo o discurso que a gente tem contra o racismo, [queria] produzir um personagem humano mantendo esse equilíbrio. Ou seja, não queria um personagem mau-caráter. Ao mesmo tempo, não posso transformar esse personagem negro num grande herói. Preciso encontrar elementos que o tornem verossímil, que façam com que alguém que vá para a universidade olhe para o seu colega e pense: “nossa, o Joaquim poderia ser essa pessoa”.

 

E o dilema entre a sobrevivência que se contrapõe à universidade, a escolha entre trabalhar e estudar?

É o grande dilema do livro, a permanência dele na universidade, e não só na universidade, mas é a permanência dele nesse ambiente, com a namorada, com os colegas, o acesso à escrita, à leitura, ou seja, é algo que ele quer, mas que, por circunstâncias da estrutura racista, não tem permissão para usufruir tudo que a universidade proporciona.

 

É o grande desafio do cotista, lidar com dois mundos difíceis de integrar?

Viver nesses dois mundos, para o cotista e também para as pessoas que vêm da periferia, de uma outra realidade, é passar por muitas violências. Começa, por exemplo, na burocracia, que, entre outras coisas, existe para a exclusão. Pedem coisas quase absurdas, para que haja uma seleção de quem entra e quem não entra. Depois, há a violência do próprio acesso à universidade, ou seja, pegar ônibus cheio, trem, a luta para ter a passagem. Aí tem o acesso. Depois do acesso, você precisa provar para o professor que é bom. Só que não basta provar que você é bom, tem de provar que você é muito bom. Ser mediano é para os outros.

 

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