Reflexões sobre práticas e inteligência (natural e artificial) no ensino superior
Não se trata apenas de usar ferramentas prontas, como os conhecidos assistentes generativos, mas de compreender os algoritmos, a lógica e a matemática que os estruturam. Acompanhe a conversa de Karina Tomelin com o professor Flávio Souza (foto: arquivo pessoal)
O professor da vez no Docência no Divã tem uma trajetória singular: engenheiro de formação, apaixonado por tecnologia e, hoje, um educador que mergulha com intensidade nos desafios da sala de aula. Conheci Flávio Souza durante uma visita à Universidade de Belo Horizonte (UniBH), instituição que o indicou com entusiasmo para participar da coluna. Fui prontamente atendida por ele, de forma atenciosa e generosa; em poucos minutos após o primeiro contato, já trocávamos mensagens e alinhávamos a entrevista. Sua alegria com o convite era evidente: “Seria uma honra”, escreveu, logo na nossa primeira interação.
Flávio é professor da área de engenharia e tecnologia na UniBH, com mestrado e doutorado em engenharia elétrica, além de experiência anterior como técnico em telecomunicações e consultor para micro e pequenas empresas. Começou a lecionar em 2012 e, desde então, a sala de aula se tornou seu principal território de atuação. Longe de seguir um caminho tradicional, Flávio enxerga a docência como espaço vivo, em constante transformação, um lugar em que a tecnologia, a afetividade e o senso crítico se entrelaçam. Ao longo da entrevista, mostrou-se inquieto, reflexivo e profundamente comprometido com o papel do professor nos tempos atuais: “Eu não nasci professor, me tornei professor”, afirmou com convicção e vai nos contar o porquê.
Uma das questões mais delicadas para quem entra na docência universitária pela via técnica, como é o caso de muitos profissionais das engenharias, exatas e ciências aplicadas, é perceber que saber muito sobre determinado assunto não significa, necessariamente, saber ensiná-lo. Foi esse o ponto de partida para o professor Flávio, que logo nos primeiros anos de docência se deu conta de que havia necessidade de uma costura entre o domínio técnico e a capacidade pedagógica. “Não basta dominar o conteúdo. O desafio é: como transmitir esse conhecimento para estudantes diferentes, com repertórios, ritmos e histórias tão distintos?”, questiona.
Flávio não esconde que foi um processo árduo. Acostumado ao ambiente empresarial, onde os resultados são cobrados com objetividade, ele precisou entender que ensinar exige mais do que entrega e resultados, que apesar de serem necessários, vão além. “No mercado, você faz. Na sala de aula, você precisa fazer com que o outro consiga fazer. E isso muda tudo”.
Para lidar com esse novo cenário, ele mergulhou em estudos sobre aprendizagem, explorou as taxonomias educacionais, testou diferentes metodologias e passou a enxergar cada aula como um laboratório vivo. Reconhecer os próprios limites, errar, corrigir a rota e seguir tentando: essa se tornou sua rotina.
Flávio desenvolveu estratégias para captar o interesse dos estudantes, oferecendo desafios que dialogam com a realidade deles, usando exemplos concretos da indústria, incentivando o raciocínio aplicado e reconhecendo o esforço individual. Mais do que ensinar tecnologia, ele se compromete com o aprendizado, aquele que permanece. “Ensinar é identificar se o estudante realmente aprendeu e fazer com que ele mesmo perceba isso. Esse é o maior desafio. E não há fórmula mágica. É um desafio que se reinventa toda aula”.
Ao mesmo tempo, ele não romantiza a jornada. Sabe que muitos dos seus estudantes chegam exaustos, emocionalmente sobrecarregados ou inseguros. Por isso, defende que o professor esteja “por inteiro” em sala: disponível, atento e disposto a adaptar sua prática. “Você está ali com alunos que, muitas vezes, vêm do trabalho, com problemas pessoais, e mesmo assim precisa conseguir motivá-los. Isso só é possível quando você também se coloca no processo”.
Apaixonado por inovação desde muito antes da sigla “IA” virar moda, Flávio fala de tecnologia com a intimidade de quem a compreende por dentro. Para ele, ensinar sobre recursos digitais e aplicá-los em sala de aula são parte do mesmo gesto: preparar os estudantes para um mundo em transformação. Mas isso não significa defender o uso indiscriminado ou acrítico das tecnologias, muito pelo contrário. O professor é conhecido entre os colegas por uma metáfora que ajuda a ilustrar sua visão: “Tecnologia é como um carro. Ela pode te dar conforto, fazer você chegar mais rápido, mas você precisa saber como dirigir, quando acelerar e, principalmente, quando frear”.
Desde 2013, ele estuda e aplica inteligência artificial (IA) em seus projetos e aulas. Não se trata apenas de usar ferramentas prontas, como os conhecidos assistentes generativos, mas de compreender os algoritmos, a lógica e a matemática que os estruturam. Isso o coloca numa posição peculiar: ele não teme a tecnologia, a conhece profundamente, mas também não a idealiza. Por isso, se recusa a tratá-la como solução universal para os problemas da educação. “Uma pergunta que pouca gente gosta de fazer é: quando a tecnologia não deve estar presente na sala de aula?”
Essa reflexão o leva a criar experiências de aprendizagem em que a tecnologia entra com intencionalidade clara. Em uma de suas disciplinas, por exemplo, os estudantes desenvolvem códigos e comparam os próprios resultados com os gerados pela IA. A tarefa não é apenas técnica — é também formativa. Os alunos são provocados a avaliar, julgar, argumentar. “A IA pode até dar uma resposta funcional, mas cabe ao estudante dizer se ela é boa ou não. E, para isso, ele precisa ter repertório”.
Esse processo, aliás, envolve um letramento mútuo: o professor ensina sobre IA ao mesmo tempo em que está se letrando sobre ela. É uma via de mão dupla. “O desafio não é só do aluno. O professor também precisa entender o que está por trás da IA, suas aplicações, suas limitações, seus riscos. Só assim vai saber decidir quando ela cabe e quando atrapalha”. E, nesse ponto, ele alerta: o uso descontrolado ou precoce de tecnologias pode aprofundar desigualdades e criar atalhos perigosos para quem ainda não consolidou as bases do conhecimento. “A IA não pode substituir a inteligência natural. E tem muito aluno usando IA antes mesmo de ter construído o próprio pensamento”.
Para ele, a presença da tecnologia em sala deve ser estratégica, e não uma moda ou uma exigência externa. “Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar”, diz, brincando. O que importa é que o professor saiba o que está fazendo e por quê.
Se ensinar é, para Flávio, um ato de presença, escuta e reinvenção constante, então ensinar em tempos de inteligência artificial é também um convite à coragem. Coragem para admitir que não sabemos tudo, que estamos aprendendo junto com os alunos, e que isso não diminui a autoridade do professor, pelo contrário, a humaniza. “A IA está aí, não tem mais como negar. Mas ela não substitui o olhar do professor, o seu julgamento, a sua experiência”.
Com generosidade e honestidade, ele compartilha algumas práticas que desenvolveu ao longo do tempo: atividades que alternam momentos com e sem IA, desafios que obrigam o estudante a testar e criticar respostas geradas por ferramentas digitais, e, principalmente, a criação de um ambiente onde a dúvida é bem-vinda. “Ensino meus alunos a não contar tudo para a IA. Porque se não, ela pode devolver uma groselha, e ele não vai saber reconhecer”.
Flávio insiste em algo que pode parecer simples, mas que faz toda a diferença: em suas disciplinas, há espaço tanto para a experimentação digital quanto para a prática manual. “Peço sim para os alunos usarem IA, mas também peço que escrevam na sala de aula. Que elaborem com suas próprias palavras, que desenvolvam um raciocínio. Porque só assim eles aprendem de verdade”. Para ele, não se trata de uma proibição da tecnologia, mas de um uso estratégico que ajuda o estudante a desenvolver pensamento crítico, repertório e autoria.
Para os colegas que ainda se sentem perdidos diante das transformações, Flávio tem um conselho direto: comecem pelo começo. Estudem o que é inteligência artificial de fato, sua origem, sua estrutura, suas aplicações. Não se deixem seduzir apenas pelos produtos prontos. “Antes de aprender a escrever prompts, o professor precisa entender os fundamentos. IA é, acima de tudo, matemática. Quem entende isso, entende que ela tem limites. E que o conhecimento continua sendo essencial”.
Ele defende que os docentes se apropriem da tecnologia, mas sem abrir mão de seus princípios. Para ele, a autoridade do professor não está em repetir fórmulas prontas, mas em saber avaliar a qualidade do que está sendo entregue, seja por um aluno, seja por uma máquina. “Se o estudante não sabe o que é qualidade, ele também não sabe o que é conteúdo. E cabe ao professor mostrar isso”.
Ao final da conversa, Flávio retoma um ponto que perpassa toda sua fala: a valorização da docência como prática intencional, ética e afetiva. “Assim como o computador chegou e muita gente achou que ia acabar com a escola, a IA também está chegando com esse peso. Mas o professor que se atualiza, que estuda, que se reinventa, vai seguir sendo essencial. A gente não tira a coluna da casa, mas algumas paredes, sim, a gente vai ter que mexer”.
Por: Karina Tomelin | 11/07/2025