Imagine o romance
O primo Basílio , de Eça de Queirós (1845-1900), publicado com a seguinte nota: “Alertamos alunos e professores de que esta obra destila um moralismo retrógrado, pois pune com a morte a mulher que tentou, por meio do adultério, se libertar do jugo de um casamento opressor e machista”. Já
Memórias póstumas de Brás Cubas , de Machado de Assis (1839-1908), poderia vir com este alerta: “Recomendamos aos professores e alunos que, durante a leitura, pulem o Capítulo LXVIII, intitulado ‘O vergalho’, pois o trecho referenda a prática do escravismo e, pior, defende a tese de que os seres humanos estão fadados a repetir nos seus semelhantes as injustiças de que foram vítimas”.
Os exemplos – “risíveis”, como ele sublinha – são do editor e crítico literário Rodrigo Gurgel, e têm o objetivo de “mostrar o ridículo, o grotesco, o absurdo que existe em toda e qualquer forma de censura, de amordaçamento e de ato restritivo da livre expressão”. Uma eventual onda de “notas explicativas” como as duas acima seria, na sua análise, um dos efeitos mais perniciosos do Parecer 15/2010 da Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE).
No documento, a CEB analisa ofício protocolado no CNE pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seprir), gerado a partir de denúncia sobre o conteúdo racista de
Caçadas de Pedrinho , de Monteiro Lobato (1882-1948), publicado em 1933. De acordo com o pesquisador Antonio Gomes da Costa Neto, a edição mais recente da obra, adotada em escola particular do Distrito Federal, não toma cuidados para contextualizar seus estereótipos raciais.
Leitura condicional Aprovado em 1º de setembro, o parecer determina publicação de “nota explicativa” em próximas edições do livro – embora lembre que o MEC deva evitar a indicação de “obras clássicas ou contemporâneas” que tragam “preconceitos” e “estereótipos”. A forte reação a essa determinação, na imprensa e nas redes sociais, levou o MEC a solicitar que a CEB faça nova avaliação do caso.
“Se a tal ‘nota explicativa’ for aprovada, será um perigoso precedente, a partir do qual todo autor que não escrever de acordo com o que o CNE considera certo, justo e ‘politicamente correto’ ou não será adotado nas escolas ou receberá uma reprimenda pública ou, no mínimo, uma ‘nota explicativa’, na qual serão listados seus supostos defeitos”, observa Gurgel. “Estaremos, assim, de volta aos autos de fé medievais ou a um passo da criação de um
nihil obstat (nada impede) do CNE, por meio do qual o governo certificará que, aprovado pelos censores do Estado, o livro nada contém que seja contrário à fé, à moral e aos bons costumes.”
O parecer 15/2010 inclui, entre as “ações que deverão ser encadeadas”, a “necessária indução de política pública pelo Governo do Distrito Federal junto às instituições do ensino superior – e aqui se acrescenta, também, de Educação Básica – com vistas a formar professores que sejam capazes de lidar pedagogicamente e criticamente com o tipo de situação” registrada em
Caçadas de Pedrinho , ou seja, “obras consideradas clássicas presentes nas bibliotecas das escolas que apresentem estereótipos raciais”.
Depois de afirmar que “a literatura pode ser vista como uma das arenas mais sensíveis para que tomemos providências a fim de superar essa situação”, o parecer usa citação de uma das principais especialistas em Lobato, Marisa Lajolo. “Analisar a representação do negro” na obra do autor pode, segundo ela, “contribuir para um conhecimento maior deste grande escritor brasileiro” e “renovar os olhares com que se olham os sempre delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política.”
As ações estabelecidas pela CEB nascem de “certo problema básico”, de acordo com Gurgel: um “Estado paternalista, que se acredita tutor dos cidadãos, que os trata não como indivíduos capazes de exercer seus direitos e deveres, em termos civis e políticos, mas como filhos imaturos, crianças incapazes de discernir, de escolher entre o bem e o mal”. O comportamento seria “contraditório”, pois “esse mesmo Estado, quando cobra altos impostos, e sucessivamente aumenta a carga de tributos”, encara os cidadãos como “adultos responsáveis”.
“Não se trata de entender ‘a verdade’ do episódio, mas de saber como nos relacionamos com ele e o que ele traz à tona”, pondera a filósofa e escritora Márcia Tiburi, que lembra quando soube do parecer. “Dava um conto que Lobato poderia ter escrito. Estava na manicure do shopping do bairro onde moro. Uma senhora rica (ouro nos dedos e lóbulos e pulsos, cabelos bem pintados, roupa fina) fazia a manicure com uma moça negra vestida com o uniforme branco da firma.”
Retratos do Brasil As duas trocavam ideias, lembra Márcia, sobre a relação brancos-negros no Brasil. “Parecia até uma conversa evoluída e amistosa em que uma ajudava a outra a entender o processo. A senhora branca indignava-se por não poder chamar de pretos os ‘afro-não-sei-o-quê’, enquanto a moça negra explicava que dizer ‘negro’ era um nome bom. Até que a senhora branca disse ‘só o que me faltava era agora proibir o Monteiro Lobato nas escolas’.”
A moça não soube o que responder. “Talvez não tivesse argumento, talvez não se lembrasse de Monteiro Lobato, talvez não o tivesse lido”, especula Márcia. “Talvez a escola não tenha ficado em sua memória. Nesse ponto me intrometi na conversa, dizendo: ‘Não vejo mal nenhum em tirar Lobato da escola. Se ele é racista, é ultrapassado’. A senhora retrucou, escandalizada: ‘Mas essa é a história do Brasil’. Eu, para não ser grosseira, disse apenas: ‘Há muito autores interessantíssimos não contemplados pelas escolas’.”
No fundo, Márcia diz que pensava estar diante da própria “história do Brasil”. “Afinal, não era a senhora branca que fazia as unhas da negra… Nada contra uma fazer as unhas da outra, mas se olhamos pelo lado de quem detém os bens de produção e de quem tem apenas a força de trabalho para oferecer, percebemos que está em cena uma relação de poder.” Para ela, “nosso racismo é profundo”. “Não vejo mal em quem se indigna com Lobato. Melhor do que quem se indigna com a inaceitabilidade da crítica. Por que o critério a favor de Lobato (e das grosserias – ou será barbárie mesmo? – que ele escreveu) é válido e não o contrário? Mera confirmação do racismo profundo, a meu ver.”
A preocupação com o “politicamente correto” pode até ser “louvável”, afirma o historiador e professor universitário Herom Vargas, mas a forma de “operacionalizá-lo” pela CBE “cai num radicalismo cego”. “Os trechos criticados e apontados como racistas são, na verdade, produto da fala coloquial que, quando Lobato escreveu, era muito usual. Ninguém, nesses anos todos desde a publicação, é racista por conta disso. Assim, me parece que o episódio revela mais a cegueira e uma certa ‘caça às bruxas’ contra possíveis teores racistas do que uma análise de contexto, de cultura ou de estética literária.”
Vargas lembra “caso parecido” que ocorreu, durante a recente campanha eleitoral, contra humoristas que brincavam com os candidatos. “Imagine se vão proibir de uma piada ser feita? Esses críticos politicamente corretos parecem não perceber a veia satírica da cultura brasileira, do deboche e do escárnio, algumas das fontes da criatividade nacional…” E, assim como Gurgel oferece ironicamente possíveis “notas explicativas” para outros livros, Vargas aplica o raciocínio à música popular.
“Imagine se acusarem a marchinha
Coração de jacar é de agressão contra os animais ou contra a família”, brinca. “Ou as modas de viola de Alvarenga e Ranchinho, cheias de deboches cantados em suas típicas falas ‘erradas’, serem criticadas por irem contra figuras históricas nacionais, como Getúlio Vargas, ou por atentado à língua portuguesa? Adoniran Barbosa deve estar se revirando no túmulo!”
Márcia diz não ser a favor da “patrulha do politicamente correto”, mas também não considera “eticamente boa” a patrulha do “contra o politicamente correto”. “Quando uma e outra viram discurso de poder, eis que está em cena a questão. Como professora, meu papel é ajudar a esclarecer formas de discurso e posicionamentos. Isso não quer dizer que eu deva deixar de ter um posicionamento pessoal que também tem o direito de ser exposto. A tarefa de quem educa é ajudar a pensar, e participar de uma discussão é essencial nesses casos.”
Nada devia ser proibido, acredita Márcia, mas “nada deve ser simplesmente aceito como verdadeiro simplesmente porque assim foi posto por esta ou aquela elite, esta ou aquela minoria”. “Temos de mostrar a história da literatura, da arte, e tentar encontrar o que elas significaram em seu tempo e o que elas podem nos dizer hoje. De qualquer modo, simpatizo com minorias porque vejo que nelas mora o resultado de processos históricos e de relações de poder que merecem avaliação. Se nosso paradigma de ensino é a democracia, devemos nos preparar para o debate e a exposição de nossos pensamentos, bem como para a recepção de pensamentos diferentes. Educação hoje é uma prática de emancipação.”
Caçada a Lobato |
Acompanhe a cronologia do episódio que envolve o livro Caçadas de Pedrinho:
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- Em 30 de junho, a Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), vinculada à Presidência da República, protocolou ofício no Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão vinculado ao Ministério da Educação (MEC) e que tem por missão “a busca democrática de alternativas e mecanismos institucionais que possibilitem, no âmbito de sua esfera de competência, assegurar a participação da sociedade no desenvolvimento, aprimoramento e consolidação da educação nacional de qualidade”.
- O ofício consistia em processo formalizado na Seppir a partir de denúncia feita pelo pesquisador Antonio Gomes da Costa Neto, aluno do mestrado em Educação da Universidade de Brasília e técnico em gestão educacional da Secretaria de Educação do Distrito Federal, sobre a adoção do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, em escolas do DF.
- A edição atualizada do livro, segundo Costa Neto, toma cuidados em relação à contextualização da obra no campo dos avanços políticos e sociais da preservação do meio ambiente, ao incluir notas sobre a legislação que atualmente protege animais silvestres, mas não adota o mesmo procedimento quanto aos estereótipos raciais.
- No Parecer 15/2010, aprovado por unanimidade em 1º de setembro, a Câmara de Educação Básica (CEB) do CNE – que reúne 12 conselheiros, entre eles a relatora desse parecer, a antropóloga Nilma Lino Gomes, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e nomeada em maio para integrar a CEB – divulga “orientações para que a Secretaria de Educação do Distrito Federal se abstenha de utilizar material que não se coadune com as políticas públicas para uma educação antirracista”.
- A CEB avalia no parecer que “as ponderações” de Costa Neto “devem ser consideradas”, e que “cabe à Coordenação-Geral de Material Didático do MEC cumprir com os critérios por ela mesma estabelecidos na avaliação dos livros didáticos indicados para o PNBE, de que os mesmos primem pela ausência de preconceitos, estereótipos, não selecionando obras clássicas ou contemporâneas com tal teor”.
- De acordo com a CEB, a Secretaria de Educação Básica do MEC deverá exigir que as editoras de livros que “componham o acervo do PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola)” e “apresentem preconceitos e estereótipos”, incluindo Caçadas de Pedrinho, publiquem “nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura”.
- O MEC devolveu ao CNE, em 11 de novembro, o Parecer 15/2010, para que fosse realizada nova avaliação do caso na reunião ordinária da CEB agendada para o início de dezembro.
- Em nota, a CEB afirmou que “debateu sobre a repercussão” do Parecer 15/2010 em sua reunião de 9 de novembro e que “não excluiu, não desqualificou e não depreciou a obra analisada”. “A CEB, no cumprimento de suas obrigações legais e regulamentares, tão somente recomendou e dispôs sobre os cuidados necessários ao seu aproveitamento com fins educativos”, diz o texto.
- Ao considerar que “o debate provocado pelo parecer está sendo importante por trazer à luz a questão do racismo e dar visibilidade às formas de preconceito e de discriminação ainda subsistentes na sociedade brasileira”, a CEB informou que faria a nova análise do tema para “verificar se existem pontos que possam ter sido eventualmente mal-interpretados quando de sua primeira publicação”.
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