NOTÍCIA
Muitas escolas ensinam tudo, exceto o aprender a pensar e a aprender
Publicado em 27/03/2012
A Rosa quer ser pianista. Mas, para chegar à fruição de um Chopin, não bastará que, disciplinadamente, repita escalas, sabendo que esse exercício é indispensável a uma boa execução pianística. Ela também terá de atravessar um deserto de “ideias inertes” (expressão criada por Alfred Whitehead), ideias que não lhe vão servir para coisa alguma, excepto para passar no vestibular.
Creio ter sido o Manuel quem, num dos seus poemas, perguntou: Quais são as capitanias hereditárias? Quem sabe responder? E o Manuel. respondeu: Infelizmente, ainda me lembro de algumas. Certamente, o poeta já não as saberá citar, como não se recordará de conteúdos supostamente aprendidos, quando frequentou a escola: mesóclises, piroclásticas, efeito de Coriolis, eugenol. Ou aqueles que o meu amigo Rubem extraiu de um livro didático da Biologia: catálases, peroxíssomos, lioxissomos, hialoplasmas, coloides, citoesqueletos, microtúbulos, organoides, retículos sarcoplasmáticos, pinocitoses, fagossomos, fragmoplastos, axonemas.
Por que razão as escolas insistem em fazer acumulação cognitiva? Por que penar doze anos de fundamental e médio a vomitar em prova e depois esquecer? Se a memória esperta apaga estes e outros preciosismos de um currículo obsoleto, por que razão se perde tempo a abarrotar a mente das jovens almas? Se, ao cabo de alguns anos, mais de metade dos conteúdos decorados definitivamente já se ausentaram da memória de longo prazo, por que usar mnemónicas e outros artifícios, para debitar em prova conteúdo inútil e, depois, esquecer? Por que sacrificar milhares de dias letivos nessa insana tarefa? Por que razão os nossos jovens não aprendem aquilo que é essencial e útil na Matemática, na Física, na Geografia? Por que não se ensina a viver? Por que não se aprende honestidade? Os corruptos de colarinho branco frequentaram bons colégios. Foram nota dez na Matemática, mas erram no somar e subtrair…
Aquilo que eu queria aprender quase ninguém me ensinou. Aquilo que me obrigaram a decorar eu já esqueci. Há muito tempo eu esqueci o que são mesóclises e piroclásticas. De um curso inteiro de vários anos de Mecânica e Eletrotecnia nada resta. Os conhecimentos nessas áreas são importantes para quem trabalha nessas áreas. Mas eu optei por abandonar a eletrônica, para ser educador. Hoje, nada resta de dezesseis anos de “estudo”. Quase tudo aquilo de que faço uso foi aprendido após esse tempo de purgatório escolar.
Setenta por cento dos brasileiros não consegue interpretar um texto, mas as escolas continuam a exigir decorebas de “piroclásticas”, “dolomitas” e “crivos de Erastóstenes”. Picasso, certamente, nunca aprendeu o que é uma mesóclise, e isso não o impediu de ser um gênio. Saiu da escola sem completar o fundamental, e talvez isso o tenha salvo de ser um “aluno normal”. O mesmo sucedeu com Einstein, que não terá aprendido na escola a Lei de Boyle-Mariot. Zélia Gatai não terá sabido o que é um dígrafo, porque se quedou pela quarta série. Isso não a impediu de ocupar uma cadeira da Academia Brasileira de Letras. Não se pense que faço apelo à ignorância e ao abandono da escola. Ainda acredito na remissão da instituição que sirvo há mais de quarenta anos. Mas muitas escolas ensinam tudo, exceto o aprender a pensar e a aprender, incorrendo numa espécie de lobotomia educacional, reduzindo a complexidade, produzindo receitas, fórmulas feitas. Tendem a reduzir o complexo ao simples, são reducionistas, quando separam aquilo que está ligado e unificam aquilo que é múltiplo, como diria o sábio Edgar.
*José Pacheco
Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal) josepacheco@editorasegmento.com.br