NOTÍCIA
Livros mudos nos convidam a dizer algo mais. Temos de aprender a ler melhor o que está à nossa frente. E comunicar aos nossos alunos um segredo
Publicado em 03/07/2012
Ilustração de Roger Mello, do livro “A flor do lado de lá”, da editora Global Editora |
Mas é no silêncio que nascem as palavras dos leitores. A nossa imaginação encontra espaço para preencher o vazio. Que não é bem um vazio total. É um vazio cheio de possibilidades e sugestões.
Os livros mudos são professores que fazem mímica. Temos de adivinhar tudo!
Ir e voltar
Na década de 1970, Juarez Machado publicou Ida e volta (Editora Agir), um livro mudo. A primeira página é a própria capa. Onde aparece o boxe de um banheiro. Alguém saiu do banho. Mas não o vemos. Vemos apenas suas pegadas. Pegadas de pés descalços e molhados. Temos de segui-las. E ao abrir o livro…
Surgem mais pegadas. Pegadas azuis. Os pés ainda estão molhados. Mais uma página. Ah, chegamos atrasados! Um armário aberto indica que o personagem já se vestiu. Dentro do armário ficaram gravatas, um terno, uma bola, botas e… uma roupa de Super-Homem! Mas hoje ele não vai salvar ninguém. Optou por algo discreto.
Agora as pegadas são dos seus sapatos. O misterioso personagem tomou café da manhã rapidamente. Na mesa ficou o guardanapo, há migalhas de bolo no prato, uma xícara de café… já sem café. As pegadas prosseguem. Mais uma página. As pegadas indicam que o personagem dançou ao som de um antigo gramofone. É um nostálgico! Depois pegou um chapéu. Ganhou a rua. Outono. Uma árvore. É uma macieira. Ele colheu uma maçã. Comeu-a.
Quem será ele, afinal? Estará feliz? Estará apaixonado? Comprou flores. E as deixou nas mãos de uma velhinha. Encontrou uma bola de futebol. Brincou com ela. Acabou quebrando a vidraça. Foge. Entra na loja de bicicletas. Não o vemos ainda, mas as marcas dos pneus mostram que desceu a ladeira em velocidade, e acabou batendo num letreiro colorido (com a palavra CIRCUS), tinta fresca, deve ter se sujado com todas as cores. Tira os sapatos e… entra no boxe do banheiro outra vez. Fecha a cortina e liga o chuveiro. Já estamos na última capa. E ninguém conseguiu vê-lo.
O livro de Juarez Machado me faz ir e voltar. Posso incluir centenas de histórias entre as imagens. Eu mesmo posso me ver nessa pequena aventura. Entre um banho e outro, muita coisa pode acontecer.
Na rua das cores berrantes
A escritora Angela-Lago publicou em 1994 um livro mudo, com cores gritantes. Chama-se Cena de rua (Editora RHJ). As ilustrações são berrantes. Contam a história de um menino nas ruas desumanas de uma grande cidade. Na primeira cena ele tenta vender frutas para um motorista. Este, vermelho, lança um olhar de raiva. Na página seguinte, entre dois carros amarelos, o menino é hostilizado por dois cães vermelhos, e o motorista de um dos carros tem dentes afiados como os dos cachorros. Noutra cena, uma motorista rouba uma das frutas do menino. Noutra cena, uma senhora segura a bolsa. Tem medo de que o garoto seja um ladrão. E de cena em cena, o menino vai se aprofundando na tristeza. O menino tinha três frutas. Uma lhe foi roubada. A segunda ele comeu. A terceira, deu para um vira-lata faminto. Desesperado, rouba de um carro uma caixa amarela com laço azul. Sai em fuga, ameaçado por carros e motoristas verdes. Num canto escuro, abre a caixa. E lá dentro encontra… três frutas.
Na última página, o menino está outra vez tentando vender as frutas para o mesmo motorista vermelho do começo, que de novo lança um olhar de raiva.
A história é cíclica. São cenas expressionistas que impressionam e assustam. As cores exageradas refletem a agressividade dos motoristas e as emoções desencontradas do menino. Os carros são verdes, vermelhos e amarelos – as cores dos semáforos. As três frutas repetem essas três cores. Para o menino, a vida está parada, presa no círculo do abandono.
A anta e a flor
Em 1999, a Editora Global publicou A flor do lado de lá, de Roger Mello. Nesse terceiro livro mudo, vejo a pequena anta na beira do mar, fascinada pela flor que está numa ilha à sua frente. A ilha se move. É a chance de chegar à flor. Mas a ilha se afasta de novo, e a flor se distancia.
A anta, perplexa, se lança às águas. Não sabendo nadar, quase se afoga. É salva por um golfinho. Na praia, tristonha, atravessa a noite contemplando a flor impossível.
Subitamente nos é revelado pelo escritor-ilustrador que a ilha não é uma ilha. É o dorso de uma baleia, no qual uma flor se alojou. E a baleia se dirige para o alto-mar. Na ótica da anta, porém, é a ilha que vai embora, levando para sempre a amada flor. Cai em prantos.
Na última página, vê-se que, atrás da anta, há um jardim inteiro de flores. Flores idênticas àquela que a ingênua apaixonada não conseguiu alcançar.
Ler é ver
São exercícios de leitura de imagens. Ler é descrever o que se vê para contar as histórias não escritas. Tantas histórias a escrever!
Leituras assim despertam a liberdade de criar. Os três livros mudos sobre os quais falei nos convidam a dizer algo mais. Não se trata somente de olhar os desenhos, os traços, as formas, as cores, mas mergulhar nas nossas próprias palavras.
Como a pequena anta que um dia vai descobrir a felicidade… nós, leitores, temos de aprender a ler melhor o que está à nossa frente. E comunicar aos outros leitores (nossos alunos) um segredo.
E o segredo é o seguinte: o essencial da leitura só é visível aos olhos da nossa imaginação.