NOTÍCIA
Eles ajudam jovens "problema" estabelecendo vínculos difíceis de serem alcançados no ambiente escolar. Prestes a terem sua profissão regulamentada, os educadores sociais defendem a necessidade de unir esforços em benefício do educando
Publicado em 10/08/2012
A diferença da lógica do ensino formal se reflete no envolvimento dos alunos |
Mediador de riscos
O debate acerca da educação social tem sido impulsionado pelos pareceres favoráveis na Câmara dos Deputados ao projeto de lei (PL 5.346/09) que regulamenta a profissão de educador e educadora social. De acordo com o texto, de autoria do deputado federal Chico Lopes (PCdoB-CE), o profissional da área é responsável por “ações afirmativas, mediadoras e formativas” e atua em contextos educativos fora do âmbito escolar. O educador social, ainda segundo o documento, está envolvido, em primeiro lugar, com pessoas e comunidades em situação de risco ou vulnerabilidade social, violência e exploração física e psicológica. Além disso, pode atuar pela preservação de povos e comunidades remanescentes e tradicionais, na difusão de manifestações de culturas populares, em atividades socioeducativas com adolescentes privados de liberdade ou em regime de semiliberdade e também para a população carcerária, na promoção da arte-educação e da educação ambiental, com pessoas portadoras de necessidades especiais, da terceira idade e dependentes químicos e ainda em prol dos direitos de segmentos marcados pela exclusão social como mulheres, crianças, adolescentes, negros, indígenas e homossexuais.
O projeto de lei, em processo de tramitação, passou pelas Comissões de Educação e de Trabalho, Administração e Serviço Público. Agora, deve passar pela de Constituição e Justiça, antes de ir para o Senado Federal.
A escola na berlinda
Os problemas pedagógicos, estruturais e a crise de legitimidade do universo escolar vêm fazendo com que os responsáveis por projetos desenvolvidos em espaços de educação não formal tentem a todo custo fugir da lógica do ensino formal. Esta diferença se reflete na postura e no envolvimento das pessoas atendidas. Segundo Daniel Monteiro da Silva, professor de filosofia em escola pública e privada e que já trabalhou em espaços de educação não formal, enquanto o professor remete a uma figura desgastada, o educador social deve ser o seu “avesso positivo”, como parte das solicitações de coordenadores de ONGs.
Ele, que defendeu em 2010 a dissertação de mestrado “ONGs e escolas públicas básicas: o ponto de vista de docentes e “educadores(as) sociais”, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), a partir da própria experiência como “agente duplo”, isto é, professor e educador social, enfatiza que a educação não formal oferece novas propostas e propicia possibilidades de experimentação. “Não estamos brincando de uma coisa é boa e outra é ruim. Uma das minhas linhas de pesquisa é pensar o que um trabalho pode contribuir com o outro em benefício do educando”, destaca.
A experiência como educador em uma organização não governamental localizada no Campo Limpo, na zona sul da cidade de São Paulo, levou-o a perceber que o jovem aderia ao programa social por encontrar ali o que a escola não lhe oferecia no curto prazo: a qualificação profissional. Daniel conta que, mesmo sem a garantia de uma “colocação no mercado”, existia a expectativa de uma indicação para um estágio em uma das empresas privadas parceiras do projeto. “Já na escola pública é preciso cumprir determinadas normas, rituais como trabalhos e provas, realizar determinadas rotinas que servem somente para obter a aprovação dos professores ou de suas próprias famílias, mas a coisa só vai até aí, ele não consegue ver um objetivo claro”, analisa.
Durante o período em que tinha esta dupla atuação, Daniel chegou a trabalhar com os mesmos adolescentes nos dois espaços educativos. Ele relata que sentia certa necessidade de pedir desculpas aos estudantes por não poder, na escola, agir da forma como era possível na ONG. Além disso, acredita que o tratamento dos jovens que sabiam do seu trabalho no projeto social era diferenciado em relação a ele. “Sentia que os alunos me respeitavam mais, como se pensassem ‘Ah, além de ser professor ele também faz outra coisa'”.
Vícios da escola
Vandeí de Oliveira, professor de filosofia de uma escola estadual de Suzano, Grande São Paulo, outro “agente duplo”, lida com diferentes jovens, o que lhe proporciona experiências diversas. No Instituto Paulista de Juventude (IPJ), atua voluntariamente em projeto de formação de lideranças comunitárias vinculadas a movimentos sociais, em Guaianases, na zona leste de São Paulo. Os jovens, com cerca de 25 anos, chamam atenção pela articulação e pela politização, apresentando um comportamento maduro e participativo. Ele trabalha também no Programa Jovens Urbanos, inicialmente como educador social e agora como consultor pedagógico. Este projeto é organizado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e desenvolvido por entidades locais dos bairros de Jardim Helena e São Miguel, na zona leste, e Cidade Ademar e Jardim Ângela, na zona sul da cidade. A iniciativa tem como foco a ampliação de repertório cultural de jovens em regiões de vulnerabilidade social, com base no direito à cidade. O público atendido, de 15 a 20 anos, é muito semelhante àquele do ensino médio da escola estadual onde trabalha como professor. No Programa, Vandeí costuma lidar com alguns “vícios da escola,” segundo ele levados pelos jovens: chamam de professor, permanecem com fone no ouvido, reclamam que não gostam de ler e escrever. Aos poucos, o comportamento vai se modificando: ao perceberem que existe espaço para se expressarem, passam a construir uma relação de respeito uns com os outros.
O educador afirma que os garotos vistos como “problemas” na escola são aqueles que, no projeto social, tendem a “se sentir em casa”. Atribui esta identificação à relação de diálogo que se estabelece entre o jovem, o grupo e o profissional, marcada por uma proximidade difícil de ser construída no ensino público formal, dada a diferença de contexto. “Já tentei usar estratégias da educação não formal na escola e não deu certo, porque o tempo e o espaço são outros.”
Vandeí relata o caso de um estudante que, em aula, não realizava nenhuma atividade. Conversando com ele, ouviu sobre uma dificuldade de adaptação à estrutura escolar. Descobriu ainda que o adolescente tinha interesse por grafite e hip hop e passou a acompanhar o envolvimento dele em projetos extra- classe. Certa vez, o jovem comunicou uma vontade de começar a ler com mais frequência e pediu um livro; o autor solicitado foi a surpresa: Karl Marx, nome que havia ouvido em uma letra de rap. “Ele percebeu que esse sistema da escola como está, dividido em série, classe, fileira, matéria, não dá conta de algumas potencialidades, de alguns desejos”, explica.
Fruto de mobilização
Numa travessa da Estrada das Lágrimas, na rua da Mina, em Heliópolis, zona sul da capital paulista, funciona a sede da UNAS, a União de Núcleos, Associações e Sociedades dos Moradores de Heliópolis e São João Clímaco. A entidade, que surgiu na década de 1980 a partir da mobilização de mães pela criação de creches, é pautada pelo entendimento em torno da importância da educação para as crianças e os adolescentes do bairro. Hoje, a organização administra oito CCAs, vinculados à Secretaria de Desenvolvimento Social, e 11 creches conveniadas com a Secretaria de Educação, atendendo aproximadamente 800 pessoas.
Num exemplo de articulação entre educação formal e não formal, a UNAS realiza há 16 anos uma sólida parceria com a Escola Municipal Presidente Campos Sales, em ações voltadas para a formação de professores e para o combate à violência na região, como a Marcha pela Paz, que conta com pelo menos dez mil participantes.
A escola se tornou uma referência quando, em 2008, teve as paredes de suas salas de aula derrubadas, dando lugar a grandes salões, num processo de radicalização de uma mudança pedagógica que já vinha ocorrendo desde que o diretor Braz Rodrigues Nogueira conheceu o projeto da Escola da Ponte, de Portugal.
Genésia Miranda, educadora social e gestora do CCA Mina, localizado em frente à sede da UNAS, defende a reformulação de modelos educacionais tradicionais para obter um diálogo mais efetivo com as novas gerações. Para ela, as escolas não oferecem momentos significativos para o jovem dizer o que pensa e ser ouvido. Já nos contextos de educação não formal, existe espaço para um exercício de liberdade. Mas deixa claro: “não há uma cartilha”. E acredita que, se não houver uma parceria com a família, as dificuldades serão maiores.
Apesar de seu posicionamento crítico em relação à rede pública de ensino, considera fundamental reforçar a importância da escola na vida das crianças e adolescentes. Para isso, entende que este trabalho deve ser dividido com os pais e os estimula a conversar alguns minutos por dia com os filhos sobre a relação deles com a escola.
Quando um comportamento agressivo passa a ser notado, a criança ou o adolescente é chamado para conversar. Muitas vezes, pede desculpas e a postura tende a mudar. Segundo Genésia, que valoriza a pertinência dos conflitos no aprendizado, eles não aceitam mais o pensamento de que têm de se submeter a um poder incontestável do adulto. “O que eles querem é ser respeitados. É o mínimo que exigem da gente.”
Nos CCAs são realizadas oficinas de teatro, hip hop, leitura e escrita, esporte, além de meio ambiente, cidadania, ética e robótica. Todo o trabalho é motivado pelo desejo de contribuir com a formação de crianças e adolescentes e, consequentemente, da região. “A gente tem uma missão que é o desenvolvimento local da nossa comunidade”, afirma a gestora.
+Leia mais: Pesquisa revela o significado da escola para jovens infratores
Projeto de lei gera controvérsia | |
Entre os educadores sociais parece haver uma percepção geral sobre a importância do projeto de lei (PL 5.346/09) que regulamenta a profissão. “Toda e qualquer tentativa de legitimar ou mesmo oficializar uma profissão exercida por tantos profissionais é importante”, afirma Daniel Monteiro da Silva, professor de filosofia em escola pública e privada e que já trabalhou em espaços de educação não formal. No entanto, há discordâncias quanto ao texto. “Temos muitas ressalvas em relação à escolaridade, às concepções sobre os espaços de atuação, à compreensão de intersetorialidade, jornada de trabalho e sobre o processo de formação desses profissionais”, elenca Ronaldo Costa, presidente da Associação Estadual dos Educadores e Educadoras Sociais de São Paulo (AEESP). E completa: “esses profissionais estão sozinhos, sem um piso salarial, são invisíveis perante a legislação trabalhista e estão à mercê de seus empregadores”. Um dos artigos do projeto estabelece que o Ministério da Educação será responsável pela elaboração e regulamentação de uma formação em Educação Social e define o ensino médio como “nível de escolarização mínima para o exercício da profissão”. Neste ponto, há uma polêmica que diz respeito ao contexto de origem e de atuação do educador social, que, historicamente, tende a vir de movimentos de educação popular, de um trabalho militante e cuja formação é construída na prática. “Temos casos de educadores [sociais] excelentes que vieram da rua, que entendem a problemática, sabem conversar, porque já passaram por aquilo, que ali fazem um trabalho de educação importante e eventualmente não têm ensino médio”, comenta Maria Helena Franco, coordenadora de projetos da organização não governamental Comunicação em Sexualidade (ECOS). Por outro lado, para alguns profissionais, a lei, caso seja aprovada, pode contribuir justamente na formação dos educadores sociais. É a posição de Vandeí de Oliveira, professor de filosofia de uma escola estadual de Suzano, Grande São Paulo, e atuante na educação não formal em projetos vinculados a duas ONGs. Sem negar a importância da experiência prática, defende a criação de um curso de graduação em Educação Social para a valorização e reconhecimento do trabalho. De acordo com ele, que teve como primeiro registro em carteira o termo “facilitador” em uma atividade como educador, a lei também ajudaria a resolver certa confusão gerada por diferentes nomenclaturas. Para Ana Maria da Silva, arte-educadora que trabalha com adolescentes da Fundação Casa, a iniciativa também tem sua importância até mesmo para “esclarecer para os professores da rede pública que não somos concorrentes. Estamos somando forças”, diz. |
Vencendo o desinteresse | |
Um mapeamento afetivo e de percepção do próprio bairro. Com essa proposta, os educadores sociais do projeto Fliperama, realizado pela ECOS, vêm aproximando jovens de Unidades Básicas de Saúde situadas em regiões como Brasilândia, na zona norte de São Paulo. Isso ocorre por meio de registros, a partir de recursos multimídia, de espaços, aspectos e experiências relativas a pontos da localidade. Terminais foram instalados em cada UBS, onde ocorrem os encontros semanais para a produção de conteúdo com base na perspectiva do mapa. Dessa forma, os adolescentes modificam a relação que estabelecem com o bairro e mesmo com a cidade, ocupando-se de atividades interessantes e criativas, numa tentativa de acessar uma noção ampla de saúde e qualidade de vida. Ao longo do projeto, os participantes passaram a repensar determinados pontos de vista sobre áreas urbanas próximas, redimensionando a prática política de se colocar diante dos espaços públicos. “Os jovens tinham um olhar preconceituoso em relação a regiões ainda mais periféricas, como Pinheirinho, em São José dos Campos”, conta Téo Araújo, coordenador do projeto, referindo-se a uma das cidades onde as ações são realizadas. Tanto os jovens quanto os educadores puderam conhecer mais de perto as condições de vida, a organização e todo um pensamento sobre habitação elaborado pelos moradores da comunidade, um pouco antes da violenta desocupação. Téo comenta o tratamento por parte dos adolescentes no que se refere às atividades sugeridas nos encontros. “Tem muito entusiasmo e ao mesmo tempo tem muita resistência às propostas. ‘Ai, tô cansado’, ‘ai, não quero andar até lá’… Daí vai, descobre e acha o máximo.” Ele entende que um dos aprendizados como educador foi justamente vencer este desinteresse inicial, “porque aí eles se envolvem e se envolvem muito mais do que a gente tinha previsto”. Sobre a relação entre os jovens, o profissional relata uma conhecida situação em um grupo de adolescentes: formação de pequenos grupos e certa exclusão de um ou outro. “É uma questão com a qual a gente tem de lidar, e não só no sentido de combater, mas de reconhecer. É um movimento natural ou importante na construção de identidade”, diz. Dessa forma, os educadores tentam propor atividades que estimulem a alteração destes estados já configurados. Uma das surpresas do trabalho esteve na constatação da ausência de escolas em um dos mapas produzidos. O fato reflete, de alguma forma, certa indiferença dos jovens com estas instituições de ensino. Apesar de alguns terem reforçado o vínculo com a escola a partir do projeto, outros nem mesmo demonstraram preocupação por terem reprovado de ano, por exemplo. Para Téo, posturas como esta revelam uma crise evidente do papel da escola. No entanto, procura fugir de discursos críticos generalizantes e entende que há diferenças nas propostas da educação formal e da não formal. “Por isso elas podem se somar e não uma substituir a outra”, opina. |
Privados da liberdade | |
O Projeto Arte na Casa, uma parceria entre a Fundação Casa e a ONG Ação Educativa, visa a garantia do direito à cultura dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa. Mas, para a arte-educadora Ana Maria – ou Ana Borboleta, como é conhecida, “é uma oportunidade de estar com os adolescentes para que eles possam, através do teatro, colocar para si e para os outros algo muito maior do que aquilo que está escrito no prontuário”. A modalidade escolhida é o Teatro do Oprimido, conjunto de técnicas teatrais voltadas para a transformação social, elaborado por Augusto Boal, para quem todos são atores. A profissional também atua no CEU Parque Bristol, localizado no Ipiranga, na zona sul da cidade, como educadora social do Projeto Ampliar, caracterizado pela oferta de atividades culturais para além do horário da escola. De acordo com Ana, não existem muitas diferenças na prática com os adolescentes em medida socioeducativa e as crianças atendidas pelo projeto, já que ambos estão em vulnerabilidade social. “No CEU, eu falo para as mães: ‘eu trabalho para que as meninas e os meninos fiquem no CEU, para que eu não trabalhe com eles na Fundação Casa'”, alerta. O Instituto NUA atende crianças e adolescentes da comunidade de União de Vila Nova, no contraturno da escola, no período da manhã e da tarde, sendo que alguns estão em regime de liberdade assistida. Todos são tratados da mesma forma e participam das mesmas oficinas. “Não posso separá-los aqui, porque eles estão na rua juntos”, afirma Hermes de Sousa. Além disso, de acordo com ele, a proposta está em romper com a heroicização vivida pelo garoto que passou pela Fundação Casa e que é respeitado no bairro pelos “manos”. “Como você quebra isso? Equiparando, colocando no mesmo patamar”, defende. A única diferença é que esses meninos têm mais responsabilidades, uma vez que, além de educandos, são também “educadores mirins” ou “facilitadores”. No entanto, esta não é uma condição exclusiva deles, mas de todos com mais de 12 anos. Cíntia Ribeiro, educadora social da organização, explica que havia entraves em conduzir as atividades por causa da diferença de idade no grupo. Daí surgiu a ideia de convidar os adolescentes para ajudar a cuidar dos mais novos, já que, antes, eles batiam nos menores. “Todos querem ser educadores [mirins], então, acontece uma mudança de postura. E não é de educador, é de cidadão”, conclui. |