NOTÍCIA

Formação Docente

Treinando o cérebro

Em voga há pelo menos duas décadas, os conhecimentos sobre neurociência começam a chegar apenas agora em cursos destinados aos professores brasileiros

Publicado em 07/01/2014

por Leandro Quintanilha







iStockphoto
Médico estudando ressonância magnética do cérebro: nunca se aprendeu tanto sobre a mente

Desde a década do cérebro, nos anos 90, a jovem neurociência tem conquistado mentes – e corações. A partir da tecnologia da neuro- imagem, crucial para a investigação das bases neurais do comportamento humano, o mapeamento das funções cerebrais tem influenciado diversas áreas do conhecimento. Na pedagogia, virou praticamente uma febre. Não é para menos: diversos transtornos de aprendizagem ficaram mais claros – assim como as estratégias para superá-los. A ponte entre pesquisa e sala de aula, entretanto, ainda está em construção.


Um dos motivos para isso é a pouca formação docente na área. Ainda são isoladas as iniciativas de capacitação de professores em conhecimentos de neurociência aplicados à educação, mas elas começam a aparecer. Iniciado em 2003, o projeto de extensão NeuroEduca, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), compartilha conhecimentos relativos aos fundamentos neurobiológicos da aprendizagem.
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Cursos de extensão
De acordo com estimativa da coordenadora Leonor Bezerra Guerra, médica com doutorado em Fisiologia e Morfologia, o projeto já atingiu cerca de 20 mil educadores, de escolas públicas e privadas, envolvendo desde educacão infantil até ensino superior, incluindo cursos livres de inglês. O NeuroEduca também realiza palestras e eventos sobre o tema, não só em Belo Horizonte, mas em diversas cidades no interior de Minas Gerais e também em outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Pernambuco e no Distrito Federal.


A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) também oferece curso de extensão dedicado ao tema, intitulado Contribuições das Neurociências para o Fazer Docente, sob coordenação da professora Neide Barbosa Saisi. Organizado em dois módulos, o curso se propõe a proporcionar condições para que os participantes compreendam, de forma integrada, as dimensões biológicas, sociais e psicológicas dos processos de aprendizagem e desenvolvimento do educando. De acordo com a coordenadora, a instituição pretende desenvolver um curso de especialização sobre o tema nos próximos anos.


Em 2006, o Instituto de Pesquisas em Neuroeducação (IPN) se uniu ao Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo (Sieeesp) e ao Centro Universitário Ítalo-Brasileiro para abrir a primeira turma de pós-graduação em Neuroeducação. O curso hoje é ministrado também em Sorocaba e no Rio de Janeiro.


“Todas as pessoas envolvidas na educação de crianças e adultos deveriam conhecer as etapas do desenvolvimento cerebral para ter condições de estimular seus alunos a desenvolver suas potencialidades ao máximo”, defende Denise Pirillo Nicida, fisioterapeuta e professora de graduação e pós-graduação no Senac-SP,  que fez o curso do IPN.


Pensar cansa
O fascínio pela neurociência é fundamentado. “Nos últimos 25 anos aprendemos mais sobre como a mente funciona do que nos últimos 250”, afirma o doutor em psicologia cognitiva pela Universidade de Harvard, Daniel T. Willingham, no livro Por Que os Alunos Não Gostam da Escola? (Editora Artmed, 2011). Ainda assim, o que se vê em muitas escolas são aulas expositivas tradicionais, com pouca interação entre professores e alunos. “A repetição beneficia a aprendizagem, porém prejudica terrivelmente a motivação”, prossegue o autor.


Ao contrário do que se pensa, o cérebro não funciona para favorecer o pensamento, mas de modo a evitar sempre que possível esse esforço. Na verdade, o cérebro não é muito bom em pensar – o processo é demorado, cansativo e pode não dar em nada.


O cérebro se presta a diversos propósitos. Em comparação com as capacidades de ver e se movimentar, pensar é muito desgastante. Por isso, requer motivação e compensação. Sabe-se hoje que um problema escolar precisa ser desafiador para despertar o interesse, para que os alunos se sintam motivados a buscar o prazer (este, sim, existe) de resolver e/ou compreender.


“Princípios neuropsicológicos básicos podem ser muito valiosos para professores dispostos a adequar seus processos de ensino às necessidades do aluno”, afirma o neuropsicólogo norte-americano Steven Feifer, professor da Universidade George Washington (EUA), que esteve recentemente no Brasil para uma palestra sobre acompanhamento de alunos com dificuldades de leitura, escrita e matemática, promovida pelo Instituto ABCD.


Múltiplas abordagens
Questões relacionadas a dificuldades de aprendizagem ou deficiências costumam ser a porta de entrada para muitos professores que buscam na neurociência  respostas para suas práticas profissionais. A pedagoga Marcia Maria do Nascimento, que atua nas redes municipal e estadual de São Paulo, começou a buscar esse tipo de capacitação quando se deparou com um aluno com transtorno do espectro autista. Além da especialização em psicopedagogia, ela fez também outra, em ensino especial.


Para ela, as informações a que teve acesso em suas especializações (que não são de neurociência propriamente dita) são úteis não apenas no estímulo ao aprendizado de crianças com deficiência, mas para os alunos em geral, de qualquer idade. “O planejamento fica mais detalhado quando pensamos em uma organização programática, a fim de sequenciar atividades para contemplar os processos necessários de apreensão dos conteúdos”, avalia.


Essa percepção também transformou o modo de ensinar da professora Andreia Fernandes Souza, da rede pública estadual de São Paulo. Ela atua em sala de aula há nove anos, mas só descobriu a neurociência há três.


“Como as coisas demoram a chegar aqui!”, lamenta. “Com a descoberta de que a neuroplasticidade (capacidade de ampliação das estruturas cerebrais) pode ocorrer até o fim da vida, temos mais esperança em casos de dificuldade de aprendizagem”, afirma. Depois de fazer cursos livres sobre o assunto, suas aulas são mais complexas e variadas.


Com múltiplas abordagens (aula expositiva, vídeos, pesquisa, atividades individuais e em grupo), ela atinge com diferentes tipos de inteligência uma mesma turma. Uma de suas principais referências no assunto é o livro Inteligências múltiplas (Artmed, 1995), do psicólogo cognitivo educacional Howard Gardner, professor de pós-graduação da Universidade de Harvard (EUA).


Em sua Teoria das Inteligências Múltiplas, Gardner subdividiu a mente humana inicialmente em sete tipos, de acordo com tendências individuais: linguística (habilidades verbais mais acentuadas), musical (alta sensibilidade a sons e ritmos), lógica (talento para matemática e outras ciências exatas), visual (ou espacial), corporal (muito sensível às sensações do corpo), interpessoal (associada à empatia e ao contato com o outro) e intrapessoal (relacionada à introspecção e à capacidade de reflexão ensimesmada).


Anos depois, o psicólogo incluiu outros dois tipos, naturalista (propensão a temas ecológicos e a uma melhor compreensão dos sistemas da biologia) e existencialista (tendência ao pensamento filosófico).  São, portanto, nove ao todo. A Teoria das Inteligências Múltiplas é criticada por se sustentar apenas por experiências empíricas, sem comprovação científica em larga escala. Por outro lado, estimula a reflexão de médicos, psicólogos e professores sobre a necessidade de reconhecer e estimular diferentes estilos de aprendizado.


Neurociência aplicada
Implantado na rede municipal de educação de Juiz de Fora (MG) em 2008, o projeto Escrita para todos levou a escolas públicas de ensino fundamental estratégias pedagógicas baseadas na neurociência para combater déficits de alfabetização, leitura e escrita. Cerca de sete mil alunos foram beneficiados diretamente até 2012, quando o projeto seguiu para outros municípios mineiros.


A metodologia foi desenvolvida pela educadora, consultora e pesquisadora educacional brasileira Elvira Souza Lima, com doutorado na Universidade Paris-Sorbornne­ e pós-doutorado na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. As atividades de língua portuguesa são combinadas com elementos de arte e cultura, e correlacionadas a outras disciplinas escolares, como ciências e matemática, favorecendo a convivência entre colegas e a interação entre alunos e professores.


“A neurociência em si não cria um método”, pondera Elvira. “Ela esclarece processos biológicos e culturais que podem contribuir para o aperfeiçoamento pedagógico.” Os conhecimentos de neurociência são aplicados também na capacitação continuada dos professores envolvidos – ou seja, com base no que se sabe hoje sobre o funcionamento do cérebro adulto.








Software reforça aprendizado


Sinapse é a troca de impulsos nervosos que ocorre entre um neurônio e outro. O Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI) escolheu Sinapse como o título de um software com atividades escolares eletrônicas, desenvolvido para empregar princípios de neurociência no reforço educacional de alunos da primeira fase do ensino fundamental do município de Santa Luzia do Itanhy (SE), a cerca de 80 quilômetros de Aracaju (SE).


O piloto do projeto, quando o software ainda se chamava EnsCer (uma  contração de “ensinando o cérebro”), foi implantado em 2012. Naquele ano, dos 1.271 alunos participantes, cerca de 30% apresentaram algum tipo de transtorno de aprendizagem – principalmente, dislexia e discalculia. “A média mundial é de 10%, mas a incidência pode ser maior em comunidades mais vulneráveis, como é o caso de Santa Luzia”, afirma o coordenador do projeto, o linguista Fábio Theoto Rocha, doutor em ciências pelo Departamento de Patologias da Faculdade de Medicina da USP. 


Esses 382 alunos foram monitorados ao longo do ano letivo de 2010 e apresentaram uma melhora de desempenho de 16% em português e 12% em matemática. As atividades são multissensoriais – isto é, combinam escrita com imagens e sons, o que favorece os diferentes tipos de aprendizagem.


O Sinapse foi desenvolvido com base no mapeamento cerebral dos alunos e com a coautoria de professores e pais. Como IPTI é uma organização social sem fins lucrativos, a tecnologia é de uso livre – a instituição só cobra pela consultoria.


PARA SABER MAIS
Curso de extensão da UFMG:
www.icb.ufmg.br/neuroeduca
Curso de extensão da PUC-SP: http://migre.me/gUgqi
Pós-graduação em neuroeducação:
www.neuroeducacao.com.br
Instituto de Pesquisas
em Tecnologia e Inovação:
http://www.ipti.org.br

Autor

Leandro Quintanilha


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